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Redução de danos: dispositivo da reforma?
Por: Dênis Roberto da Silva Petuco e Rafael Gil Medeiros
Data: 18/03/2009


Resumo
Em 1989, tem início, na cidade de Santos, a experiência brasileira com a Redução de Danos, durante o período de gestão frente à área da saúde do sanitarista David Capistrano, que também ousou ao abrir os portões do manicômio da cidade, num dos grandes momentos do movimento antimanicomial no Brasil. A Redução de Danos, porém, sofreu com a incompreensão: os coordenadores foram processados judicialmente, e todo o material adquirido para realização dos trabalhos foi apreendido.
Foi apenas em 1995, em Salvador, que foi possível constituir ações de Redução de Danos com sustentabilidade. A partir de 1996, outras cidades entraram na roda (Porto Alegre, Rio de Janeiro, Campo Grande, Itajaí). E desde o início, uma certeza: a criminalização das pessoas que usam drogas tornadas ilícitas tornava muito difícil sua chegada nos serviços de saúde, mesmo de caráter comunitário, como UBS’s e PSF’s. Fazia-se necessário o surgimento de um novo trabalhador de saúde.
Os redutores de danos atuam junto a pessoas que usam drogas, nos locais onde estas vivem e convivem, operando estratégias de promoção de saúde que tem como base o acolhimento, a construção de vínculos e a busca de construção de itinerários terapêuticos que privilegiem o sujeito. Trata-se de “construir com”, e não de “construir para”.
Ora: sabe-se que o uso de álcool e outras drogas, sempre esteve sob a lente dos dispositivos de disciplinamento e controle do modelo manicomial. Entretanto, a reflexão emergente no território clínico-político-reflexivo da Reforma Psiquiátrica, demorou muito para começar a se debruçar sobre os problemas das práticas de cuidado dirigidas a pessoas que usam drogas, inscritas no campo da Saúde, e especificamente da Saúde Mental. Há, neste sentido, uma dívida do movimento de Reforma Psiquiátrica, para com esta população tão discriminada.
O objetivo deste trabalho é refletir sobre as aproximações entre Acompanhamento Terapêutico e Redução de Danos, compreendendo a ambas como dispositivos da Reforma Psiquiátrica. Desta reflexão, emergem novas possibilidades teóricas e práticas, que podem contribuir efetivamente para a melhoria dos serviços de atenção a pessoas que usam álcool e outras drogas, e para o desenvolvimento da experiência brasileira de Reforma Psiquiátrica.

Abstract:
In 1989, opened in the city of Santos, the Brazilian experience with the Harm Reduction, during this time in charge was a health the sanitarian David Capistrano, who also dared to open the gates of the asylum of the city, a major antimanicomial moment of movement in Brazil. The Harm Reduction, however, suffered a misunderstanding: the coordinators were prosecuted, and all the material acquired for carrying out the work was seized.
It was only in 1995 in Salvador, where they succeeded implementing Harm Reduction with sustainability. Since 1996, other cities joined the wheel (Porto Alegre, Rio de Janeiro, Campo Grande, Itajaí). And since the beginning, one was for sure: the criminalization of people who use illicit drugs become very difficult to make their arrival in the health services, community character even as UBSs and PSFs. It was necessary to the emergence of a new employee health. Reducing the damage of working with people who use drugs, where they live, operating strategies of health promotion that is based on the reception, the construction of links and the search for therapeutic construction of routes that favor the subject. It is “built with”; and not “build to”. However: it is known that the use of alcohol and other drugs, has always been under the lens of the devices for disciplining and controlling the asylum model.
However, discussions within the medical-political-reflective of the Psychiatric Reform, long to begin to address the problems in the practice of care directed to people who use drugs, entered the field of health, and specifically of Mental Health. There are, in effect, debts of the Psychiatric Reform movement, with this population so broken. This paper reflects the approaches of Therapeutic Monitoring and Harm Reduction, including two devices as the Mental Illness. This, new possibilities emerge theoretical and practical, which can contribute effectively to the improvement of services to the people who use alcohol and other drugs, and the development of the Brazilian experience of Mental Illness.

1. Introdução
Este artigo busca compartilhar um certo olhar sobre os esforços político-reflexivos da Redução de Danos (RD) e do Acompanhamento Terapêutico (AT), e suas contribuições para questões que ainda pesam sobre a clínica antimanicomial, e sobre o próprio movimento de Reforma Psiquiátrica. Com a ajuda das noções de dispositivo e revolução em Gilles Deleuze (1990; 1988/1989), vamos nos aproximar das contribuições da RD e AT, percebendo de que maneiras suas práticas cotidianas constituem discursos que, simultaneamente, constroem e questionam o próprio movimento de Reforma Psiquiátrica.
As reflexões aqui presentes não se desdobram de uma pesquisa científica específica, mas da vivência - cotidianamente implicada e problematizada - de dois cientistas sociais envolvidos com o trabalho em Redução de Danos, e com a Luta Antimanicomial. Nesta problematização cotidiana, assumida aqui como condição para intervenção clínica e política na vida vivida (GEERTZ, 1989), emergem conceitos que possibilitam distintas miradas sobre o cuidado, especialmente em face da complexidade colocada pela clínica produzida no cotidiano dos serviços e programas de Redução de Danos. Esta clínica do movimento clandestino instiga novas práticas, que excitam novas problematizações, em dois sentidos: tanto produzindo respostas da Reforma para questões colocadas pela sociedade (o que chamaremos de movimento exógeno), como produzindo questionamentos e desacomodações dentro do próprio movimento de Reforma Psiquiátrica (o que chamaremos de movimento endógeno).

2. O dispositivo “droga” e a Redução de Danos como dispositivo da Reforma
Para acompanhar nossa reflexão diante das possibilidades da clínica da RD e do AT, escolheremos uma dentre as diversas questões que interpelam o campo político-reflexivo da Reforma Psiquiátrica: o fenômeno das drogas, compreendido como especialmente problemático devido à sua situação social, política e econômica específica: uma rede ilegal e o seu alto lucro, em um contexto de miséria. Diante deste contexto de alta fluidez lucrativa, há, no âmbito das políticas públicas, a eleição de um combate às drogas (ou seja, a reificação da ilegalidade). Neste ambiente social de combate, georeferenciados em comunidades mais pobres, a intervenção repressiva situa as relações com a droga a partir da violência. É neste ambiente que muitos dos usos problemáticos também costumam se dar, hoje sendo encarados grosseiramente como “epidemia”. Ora, dizer que há uma “epidemia” de abuso de drogas nos fala muito mais sobre uma certa fragilidade conceitual na problematização do fenômeno, do que sobre o conjunto de casos problemáticos em si mesmos. Em outras palavras, as próprias medidas adotadas diante do fenômeno das drogas são como que recusas ao acolhimento deste fenômeno, em uma espécie de contenção social comparável, em sua brutalidade, àquelas medidas que no ideário do manicômio clássico constituíam a regra, quais sejam: as contenções físicas ou químicas.
As drogas tornadas ilícitas, devido à sua ilegalidade, são aquelas cuja inserção em nossa sociedade excluem qualquer esforço de acolhimento, motivo pelo qual esta questão precisa fugir às limitações da clínica convencional, e das próprias tecnologias de cuidado. Não se pode conceber mudanças sérias somente a partir do cuidado em Saúde em um contexto de políticas repressivas, que fazem apologia da guerra, da adulteração e do crime nos territórios onde se dão a produção, a circulação, o comércio e o uso de drogas. Todavia, há quem trilhe estes caminhos justamente pensando em promoção de saúde e autonomia, e afirmando que, entre a opção de trabalhar ou não em tais configurações, haveria uma série de revisões necessárias, no âmbito da moralidade de trabalhadores e trabalhadoras consigo mesmos/as.
Os pressupostos da Redução de Danos apontam para a concreta possibilidade de atuação nestas redes. Explorar as experiências acumuladas neste sentido é algo muito interessante, e ao mesmo tempo uma tarefa fadada ao anedotário. Entretanto, é preciso dizer que não é através destas histórias de campo que nos sentimos mais à vontade para falar a respeito de nossas barreiras internas. Sobretudo, nos parece que diante de redes extremamente marginalizadas e criminalizadas, o ideário da Saúde Coletiva - notadamente a relação direta entre saúde e autonomia - se confunde com medidas assistencialistas (crítica à RD que pode ser encontrada tanto fora quanto dentro da luta antimanicomial). É que, na intersetorialidade das demandas, o significado de um programa de troca de seringas está muito mais ligado à questão antropológica da dádiva (MAUSS, 2003), do que foi possível a nossa epidemiologia sugerir, assim como nossa crença em uma educação em saúde enquanto mera transmissão de conteúdos.
O que nos interessa, portanto, não é contar histórias da Redução de Danos, já que ela mesma não precisa se justificar a ninguém; interessa-nos afirmá-la como dispositivo da Reforma, afinal, é justamente a RD que vai levar os compromissos éticos e estéticos da Reforma para as pessoas que usam drogas, assumindo posições claras dentro das arenas biopolíticas. Interessa-nos aqui situar a RD, para aqueles que a amam ou a deixam, como exemplo de clínica que se permite, com a propriedade da audácia, lidar com questões que fogem do próprio escopo da clínica convencional, desenvolvendo uma escuta radical que está além da ética neutralizadora encontrada em muitos serviços tidos como referência da própria Reforma. Ou seja: além de constituir-se em dispositivo da Reforma, a RD traz contribuições que esgarçam os próprios conceitos da mesma.
A RD não é uma clínica do caos, mas ela fornece respostas para as quais não estamos preparados, na exata medida em que consideramos o preparo técnico excessivo de trabalhadores e trabalhadoras da saúde como algo indispensável. Suas caminhadas heterodoxas se unem em direção a problemas sem solução aparente, na medida em que redutores e redutoras dispensam a formalização de suas regras; na medida em que lutam contra todo e qualquer engessamento, tensionando as próprias estruturas gestoras da Saúde, ainda muito apaixonadas pelo poder da estatística e da epidemiologia.
Nosso comentário aceita riscos, mas de modo despretensioso; não desejamos abrir o diálogo com perguntas que, muitas vezes, levam à leitura de artigos como este (sobre tecnologias de cuidado em Saúde Mental). Não queremos aqui responder que clínicas são mais importantes para tal ou qual demanda. Tampouco, temos por objetivo situar historicamente as clínicas da RD e do AT em uma linha horizontal, rotulá-las e assinar embaixo. Queremos poder fazer isso também, mas preocupando-nos menos pela história destas tentativas, e mais por suas relações com a antropologia, num contexto de luta antimanicomial; interessa-nos saber de que maneira RD e AT são porta-vozes de uma série de outras idéias marginais, dentro e fora da academia e da própria Reforma, tensionando-as, assim como também ocorre com outros agentes. Antes de tratarmos sobre o que consistiriam, de fato, os tensionamentos específicos da RD e do AT para a Reforma, abriremos um pequeno parágrafo quanto a suas condições de reprodutoras da mesma.

3. Reformas cíclicas
Entendemos que RD e AT são dispositivos da Reforma Psiquiátrica, que têm por principal mérito a idéia de um devir revolucionário. O que queremos dizer com isto? Deleuze, na famosa entrevista do Abecedário, diz das revoluções que o que há de constante (e interessante) nas mesmas, é o fato de existirem, num dado momento histórico, pessoas revolucionárias, ou seja, com um devir (vir a ser, desejar tornar-se) revolucionário. As revoluções, em si, não serão mais que algumas bandeiras fincadas nalgum território; os buracos que estas bandeiras abrem no solo para permanecerem hasteadas deverão ter, entre nós, a atribuição simbólica de “pontos finais”: sinais gráficos que põem fim às discussões mais acaloradas. O desfecho de uma revolução, portanto, após sua grande abertura de diálogos e tensões, é mais uma vez o fechamento, a formação de estruturas duras, parciais, desenvolvendo-se outros regramentos aos diálogos, outros limites para a crítica. Tomemos exemplo, como Deleuze, em revoluções no nível mais amplo da nação: no caso de uma ditadura militar, o desfecho da revolução é o monopólio explícito da violência; no caso de uma social-democracia, um monopólio implícito. Estas distinções entre o que é uma revolução e o que a torna possível (a instituição e seus instituintes), nos interessa muito ao pensarmos as clínicas da RD e do AT, e na distinção entre o que significa a luta antimanicomial, e o que simbolizam as conquistas da Reforma Psiquiátrica. Deleuze nos ensina a relativizar as conquistas (ou seja, os desfechos) de uma revolução, dando mais ênfase ao contexto da mesma e às pessoas que a tornaram possível, em um tom que se descobre otimista: não há outra vida política senão na vida vivida, pois tudo que a movimenta é político, crítico e instituinte.
Entendemos que toda luta contrária a institucionalização de uma clínica constitui-se em luta antimanicomial. Ora, a Reforma Psiquiátrica é movimento institucionalizante: dialoga com as instituições, e não poderá ser de outro jeito, uma vez que representa uma conquista que se dá no eixo da Gestão, das políticas públicas. A Reforma abrange os serviços de saúde e suas regulamentações e diretrizes, muito mais do que às práticas e saberes das pessoas que trabalham nestes serviços. A Reforma, como toda e qualquer lei, não atinge diretamente a ponta. A Luta, ao contrário, se mantém viva através de pessoas, voltando-se igualmente para pessoas. A Reforma representa o acomodamento sempre precário de um processo em constante movimento. E, interessante observarmos, todas as relações construídas com a Reforma são relações de lutas através de pessoas - valendo o mesmo tanto para os movimentos contrários ou favoráveis a ela, e até para aquelas posições não consensuais que dividem cada um destes dois grandes grupos.
Apontamos para a contingência da vida, e dos processos políticos, portanto, ao olhar para esta crítica incessante às revoluções. No caso da clínica, entendemos que sempre haverá momentos em que o cuidado correrá o risco de se institucionalizar, em que o sofrimento do outro será concebido à revelia deste outro. Tais impasses, enquanto impasses de comunicação e de conflito de interesses (principalmente, os interesses de gênese moral, como a moral antidrogas), são conflitos da condição humana em uma sociedade complexa e diversa. É um grande engano e uma grande utopia desejarmos a conquista de uma alteridade ausente de preconceitos, ainda mais através de reformas prescritas juridicamente. A grande conquista da Reforma, às pessoas que se apropriam dela, são as ferramentas de luta que ela garante; a lei é o conjunto de referências que devem ser construídas no cotidiano – como o SUS. Confrontando-se com tais impasses no âmbito moral e cultural, podemos situar a RD e o AT como experiências clínicas porta-vozes da Reforma (referentes a ela). Vamos tentar abordar, agora, uma outra leitura destas mesmas experiências em seus devires revolucionários que tensionam a Reforma: movimentos endógenos, instituintes.

4. Redução de Danos e Acompanhamento Terapêutico: dispositivos na reforma?
Abrimos aqui uma leitura das caminhadas da Redução de Danos e do Acompanhamento Terapêutico, enquanto tecnologias instituintes de um novo compromisso ético e estético no cuidado. Para além do tom de registro, interessa-nos situar o que simbolizam estas tecnologias, no campo político-reflexivo do cuidado: em relação a que outras tecnologias são instituídas? No lugar de quais clínicas emergem como alternativas? Em resposta a que demandas?
Em 1989, tem início, na cidade de Santos, a experiência brasileira com a Redução de Danos, durante o período de gestão frente à área da saúde do sanitarista David Capistrano, que também ousou ao abrir os portões do manicômio da cidade, num dos grandes momentos do movimento antimanicomial no Brasil. A Redução de Danos, porém, sofreu com a incompreensão: os coordenadores foram processados judicialmente, e todo o material adquirido para realização dos trabalhos foi apreendido.
Apenas em 1995, em Salvador, foi possível constituir ações de Redução de Danos com sustentabilidade. A partir de 1996, outras cidades entraram na roda (Porto Alegre, Rio de Janeiro, Campo Grande, Itajaí). E desde o início, uma certeza: a criminalização das pessoas que usam drogas tornadas ilícitas tornava muito difícil sua chegada nos serviços de saúde, mesmo de caráter comunitário, como UBS’s e PSF’s. Fazia-se necessário o surgimento de um novo trabalhador de saúde, e de novas aberturas criativas, inovadoras (e eventualmente transgressoras), diante da carência de dispositivos de promoção de saúde para as pessoas que usam drogas.
Os redutores de danos atuam junto a pessoas que usam drogas, nos locais onde estas vivem e convivem, operando estratégias de promoção de saúde que tem como base o acolhimento, a construção de vínculos e a busca de construção de itinerários terapêuticos que privilegiem o sujeito. Uma proposta de busca ativa, cujo desenho é diferente daquele traçado por agentes comunitários de saúde, na medida em que os territórios da RD são concebidos pelos usuários dos serviços, e não pelos profissionais de saúde, numa fluidez que é a do tempo real, assim como com o AT. Trata-se de “construir com”, e não de “construir para”. Neste sentido, a prática da Redução de Danos, assim como a de AT, surge em uma clínica que é avessa àquilo que traduz a essência dos manicômios: a construção prévia do acolhimento, antes do próprio contato com a demanda. Ou, tal como na leitura antropológica, a pretensão de traduzir o mundo do “outro” à revelia de suas visões de mundo.
Neste sentido, se reconhecemos as conquistas da Reforma Psiquiátrica (inclusive quando esta nos ensina não se tratar somente de reforma na Psiquiatria, mas em todas as áreas do cuidado), e se desejamos a extensão destas conquistas para as pessoas que usam drogas, devemos pensar a natureza do surgimento destas figuras, que despertam experiências radicais de estranhamento do “outro” que usa drogas.
Para situarmos a mobilidade instituinte destas tecnologias de cuidado, é lícito nos perguntarmos sobre que processos tornam possíveis tais estranhamentos, olhando para eles mais como processos sociais e culturais do que como processos de uma moralidade particular. Falemos, portanto, um pouco mais da droga como dispositivo. Entendemos que a construção de estigmas sobre pessoas que usam drogas nasce, sobretudo, da omissão sobre os vários usos de drogas socialmente aceitos em nossa sociedade, em seus papéis que cumprem - nem sempre como vilões (assim como os usos de fármacos, nem sempre terapêuticos e muitas vezes recreativos). Omitimos a condição de ambigüidade que a palavra “droga” sugere desde tempos imemoriais: segundo Carneiro (1994), situa-se a droga como veneno ou remédio a partir de suas relações sociais e dos sentidos conferidos ao uso. Ao invés disso, em nosso ideário de combate às drogas, permitimos e damos lugar tão somente às suas condições de veneno. Tais representações são compartilhadas tanto entre profissionais de saúde quanto pelos usuários dos serviços, mesmo dentro das clínicas médicas mais institucionalizadas: é a demanda pelas prescrições (FIORE, 2004), como termômetro de uma consulta bem feita (BOLTANSKY, 1989), podendo ter a droga prescrita hoje em dia as mesmas funções daqueles “pontos finais”, os buracos de bandeiras de que falávamos anteriormente: muitas vezes, são o fim do diálogo, no território de uma clínica médica saturada em sua demanda.
Dada as relações extremas até mesmo com os fármacos, mesmo numa sociedade em que diversas drogas concorrem para usos diversos, parece não haver lugar para a idéia de que drogas possam fazer bem. Aceitamos mal a evidência dos usos controlados, e temos um pavor calado diante da esfera do prazer. Assim como o dispositivo da sexualidade faz calar certos discursos sobre o sexo, o dispositivo “droga” faz funcionar certas dinâmicas de afirmação e de silenciamentos discursivos (FOUCAULT, 2005). Neste sentido, tal como acolhemos a realidade do sexo, acolher os usos de drogas, em sua evidência histórica e sua naturalidade, não significa fazer um elogio das mesmas como sendo remédios absolutos. Torna-se necessário, portanto, constituir pontes para que os movimentos e discursos emergentes no âmbito da vida vivida tensionem os saberes constituídos das ciências da Saúde, cada vez mais comprometidos com o ideário curativo e o pragmatismo de um complexo médico-científico. A partir destes movimentos, torna-se imprescindível que a clínica pense sobre contextos de uso associados mais ao prazer do que ao sofrimento psíquico (ou ao utilitarismo farmacológico da clínica da doença), incluindo estas possibilidades de vivência das drogas num possível repertório de caminhos terapêuticos para as pessoas que as usam. Não seremos menos moralistas do que já somos: apenas deixaremos de fazer apologia ao sofrimento, pensando a promoção de saúde.
Ora: sabe-se que o uso de drogas emerge de modo diferenciado sob a lente dos dispositivos de disciplinamento e controle do modelo manicomial. Não somente usos problemáticos, como também o mero uso (não associável a sofrimento psíquico), numa lógica normativa e positivista, são vistos como sintomas de uma saúde mental e social desequilibrada. Diante da droga, há uma veneração constante das generalizações: desde as contenções químicas até o abuso de drogas contra a “fissura” (que muitas vezes acabam tomando o papel principal da terapia em casos abusivos), o que vemos, substancialmente, são impasses epistemológicos diante do fenômeno da droga, e é importante que nos demos conta de que isto está absolutamente implicado nas más práticas com que nos deparamos nos serviços de saúde, cotidianamente. E mesmo aqueles trabalhadores implicados na luta em defesa da Reforma, diante da droga, acabam por reproduzir discursos e práticas manicomiais, revelando barreiras morais e culturais. A problematização do cuidado dirigido a pessoas que usam drogas emerge, de fato, como um dos últimos desafios para a quebra definitiva das paredes do manicômio. Há uma dívida da Luta Antimanicomial para com as pessoas que usam drogas.
Em um artigo sobre barreiras na relação médico-paciente sob o olhar da RD (FONTANELA & TURATO, 2002), os usuários dos serviços falam de um receio diante dos profissionais de saúde, e de temores inspirados pelo espaço dos serviços, interpretados como espaços essencialmente de punição3. Com efeito, as políticas de drogas atuais, embora objetivem a proteção da saúde pública como bem tutelado maior, articulam esforços mais ligados à área da Segurança Pública do que ligados à própria área da Saúde. A guerra às drogas tornadas ilícitas, que na prática é executada através de efetivos policiais, é uma guerra sobretudo às pessoas que as produzem, distribuem e usam. Esta ideologia de combate abrange o imaginário sócio-cultural sobre drogas desde a metade do século XX, se estendendo às diversas instituições estatais que dialogam com estas pessoas, incluindo os serviços de saúde. Não obstante, diante de uma nova lei (Lei 11.343/2006) que revê a figura das pessoas que usam drogas enquanto criminosas (recolocando-as como cidadãos e cidadãs de direitos), e diante de um já não tão novo conjunto de diretrizes a nortear o agir em saúde coletiva, convém estudar os atravessamentos de algumas questões: qual o lugar, no âmbito da gestão em saúde, para serviços de atenção organizados numa lógica repressiva e persecutória? Qual o lugar, do ponto de vista epistemológico, dos discursos que organizam práticas de promoção de saúde mental a partir de veredictos, e não de diagnósticos? De que modo os diferentes campos em questão – justiça, segurança e saúde – lidam com a excessiva relatividade quanto à suas respectivas autonomias? Para falar destas outras éticas e estéticas, tentando resgatar os seus discursos no que caberia a nossa análise, olhemos para algumas outras representações possíveis da RD e do AT, em imbricações suas que se identifiquem como deslocadas da luta ou da Reforma.

5. Contraposições na arena político-reflexiva e na vida vivida
Tentamos, aqui, um diálogo com a academia, elencando dois momentos em que as clínicas abertas seriam associadas, em sua história, com outras éticas e possibilidades, diferentes daquelas que estamos trabalhando.
A) O primeiro momento é o próprio surgimento do AT como desdobramento dos papéis da psicanálise sobre a clínica biomédica desde os idos de 1961 e, portanto, livre da associação com o advento da Reforma Psiquiátrica. Segundo o relato do psiquiatra Walmor Piccinini (2006):
“Enquanto estudante de medicina, fui atendente psiquiátrico, acompanhante terapêutico, instrutor de atendentes. Depois de formado e especialista em psiquiatria, fui titular da cadeira de Psicopatologia no Instituto de Psicologia da PUC/RS e ainda dei aulas de Técnica de Entrevista e de Psicologia Clínica. Essas vivências todas me permitem afirmar que o surgimento do acompanhamento terapêutico não tem nenhuma relação com o movimento da antipsiquiatria e muito menos com o movimento de reforma psiquiátrica como tenho lido em vários sites dedicados ao assunto de AT”.
Aqui, mais especificamente, o AT é visto como desdobramento da figura do “atendente psiquiátrico”, presente em equipes multidisciplinares com uma origem datada desde a vigência mais explícita e concreta dos manicômios. Ainda segundo o autor,
“(...) a Clínica Pinel de Porto Alegre, fundada por Marcelo Blaya em 28 de março de 1960 introduziu, no Brasil, uma nova maneira de encarar o tratamento dos doentes mentais. Equipe multiprofissional focada nas necessidades reais ou imaginárias dos pacientes, mantinha-se em atividade permanente nas 24 horas do dia. Isso só era possível devido à presença da figura do atendente psiquiátrico. O nome pode variar, auxiliar psiquiátrico, acompanhante terapêutico, enfermeiro psiquiátrico, mesmo que não seja um profissional de enfermagem dentro dos conceitos tradicionais.”
É necessário dizer que Piccinini, a partir do relato de sua própria trajetória profissional, surge a nós como uma figura emblemática destas diversas concepções sobre clínica. A lógica destas concepções vão além daquelas nomenclaturas surgidas no seio de movimentos sociais como, por exemplo, a Luta Antimanicomial. Sua experiência nos reafirma, sobretudo, a importância de arriscar o novo, de cruzar fronteiras no cotidiano dos serviços. Ponto importante: quando falamos de clínicas abertas, apontamos a RD e o AT somente como os exemplos mais facilmente identificáveis. Mas devemos lembrar que estas clínicas são imemoriais, e imaginamos que seus pressupostos poderiam ser encontrados até mesmo dentro dos leprosários de Foucault, cujo alcance historiográfico se deu através de documentos, dos quais as clínicas abertas são fugidias. Estão além de rótulos profissionais, e a própria RD reconhece isto: para além da prática que se institui nos trabalhos de campo, seu arcabouço teórico apresenta-se não como um conjunto de técnicas, mas como paradigma ético e estético. Como trabalho vivo em ato, para usar a expressão de Emerson Merhy (1997).
Todavia, nos parece que a figura do AT, tal como se inscreve hoje, permanece sobre nós muito especialmente ligada à Luta Antimanicomial, no momento em que, ao contrário do que nos mostra a vivência de Piccinini, este profissional não parece estar mais submetido ao plano terapêutico institucionalizado. Pelo contrário: o AT, justamente por distanciar-se da clínica tradicional, possui uma potência transgressora de difícil captura, que possibilita novos agenciamentos terapêuticos, lá onde a vida acontece. A clínica do AT, hoje, surge não no lugar do tratamento de uma demanda pré-concebida (tarefa atribuída ao atendente psiquiátrico), mas no lugar do vínculo com o “outro”. O vínculo não está dado, e sua construção e manutenção são terapêuticas.
Quanto a estes vínculos entre profissionais de saúde e usuários dos serviços, a Redução de Danos pode conferir contribuições essenciais. Primeiramente, as experiências da RD formam um vínculo cuja metáfora predominante não é a do olhar de um juiz, mas de um amigo: o olhar radical que sabe ser o sofrimento psíquico uma condição humana, e que se permite desafiar estigmas, concedendo aos objetos inanimados (no caso, a droga) o papel menos relevante no trabalho das relações entre os seres humanos. A RD também demonstra, em ato, uma concepção ética que reconhece nossa inserção em uma sociedade normativa (em busca do anormal, do louco, drogado, viciado). Diante disto, é preciso não apenas aceitar nossos preconceitos, mas também, assumi-los diante do outro (e mesmo diante do usuário dos serviços). As barreiras que a RD e o AT ultrapassam são as mesmas que impedem a concepção de uma nova ética do cuidado dirigido a pessoas que usam drogas.
B) O segundo momento refere-se ao surgimento do AT como um esforço clínico para trabalhar “casos de intenso sofrimento psíquico” (SCHUBERT, 2006). As vivências de acolhimento simpáticas à RD (vivências não somente de redutores e redutoras), enquanto esforços sinceros de construção de vínculos diante de um universo por todos considerado problemático ou intrinsecamente violento, podem fornecer a esta concepção de clínica do AT uma certa experiência sobre a complexidade das dinâmicas que envolvem os processos de uso abusivo de drogas. Dentre estas dinâmicas, encontramos a própria exclusão social, implícita nos pressupostos da clínica manicomial, segundo a qual o uso de drogas implica necessariamente em uma doença cuja terapêutica inclui contenção (física ou química) de corpos e vontades, negando o próprio processo de construção da autonomia - mesmo entre trabalhadores comprometidos com o ideário da Luta Antimanicomial. Podemos incluir nestas dinâmicas manicomiais o próprio impasse das políticas de Saúde Mental quanto à adoção do paradigma de promoção de saúde: como aprende a promover saúde um terapeuta cujo olhar é formado a partir da doença? Concordamos com a visão de Schubert quanto às possibilidades do AT ao acolher demandas mais urgentes, pontuais. Porém, nosso entendimento do AT como dispositivo da Luta se encontraria em sua amplitude, na promoção de saúde.
Se o paradigma da promoção de saúde em Saúde Mental é mesmo a essência daquilo que nos preconiza a Luta Antimanicomial, não é por outro motivo que podemos aproximar esta luta daquelas que construíram o Sistema Único de Saúde em um viés garantista. Tais enfrentamentos morais e legais, na tentativa de promover saúde às pessoas que usam drogas, em práticas de um cuidado humanizado e não punitivo, podem ser claramente observados no relato de trabalhadores e trabalhadoras da Redução de Danos:
O policial me pegou pelo pescoço: “Tem documento aí? Tem ficha na polícia?”, e insistia para saber porque eu queria o nome dele. Eu dizia: “pra fazer meu relatório. O senhor agiu errado: aquele material é dinheiro público, e o senhor pisou em cima”. E ele dizia: “Olha bem magrão, o que tu vai fazer! Agora eu sei onde tu mora, e qualquer coisa eu vou lá na tua casa!” (PETUCO, 2007)
Os redutores e redutoras de danos se vêem dificultados justamente porque os contextos sócio-culturais implícitos na guerra às drogas impediriam o seu empoderamento. Com efeito, temos teorias e análises acadêmicas de sobra (inclusive epidemiológicas) para falar da efetividade da RD, mas o desenvolvimento desta clínica, em seu saber e sua prática, depende até certo ponto deste empoderamento contra uma moralidade antidrogas. Situemos um relato sobre estas tensões no trabalho em campo:

Tive um entrave, vivenciei na pele apenas um ponto e aí foi um aprendizado. Foi no hospital N, a gente começou a trabalhar no hospital N no início de março de 2004 e a gente constituiu uma prática de ir semanalmente [...] e... tá, tudo bem, a nossa entrada era permitida, mas eu achei que aquilo tinha de estar mais amarrado: “Não é assim, a gente vem aqui... a gente tem mais contato com a galera do que algumas pessoas daqui, a gente tem que participar um pouco mais ativamente deste negócio”. E aí a gente solicitou a algumas pessoas da equipe o direito de participar das reuniões de equipe da unidade de desintoxicação do hospital. A resposta que a gente teve foi a seguinte, foi a de que... algum tempo antes, eu conheci esta pessoa inclusive, um agente redutor de danos de uma cidade, ele internou-se lá no N para fazer desintoxicação. E esse cara, enfim, ele aprontou algumas lá dentro, ele fugiu, conseguiu levar droga lá pra dentro, aprontou... incomodou, digamos assim. A postura do chefe da unidade, do médico lá foi que ele não queria redutores de danos participando da reunião de equipe porque enfim, ele não queria mais saber de redutor de danos, que redutor de danos era aquilo ali mesmo. Eu me lembro que aquilo ali me despertou muita ira, assim, eu disse “Pô, cara...”. Porque na verdade o cara não aprontou essas coisas por ser um redutor de danos, ele aprontou estas coisas porque é um usuário de drogas em síndrome de abstinência. Enfim, qualquer outra pessoa humana aprontaria isto: um advogado, um médico, enfim. Eu me lembro que na época cheguei a escrever uma cartinha pra ele, bem desaforada. Enfim, era um médico psiquiatra, e eu falei que se ele não queria mais trabalhar com redutores de danos em função disto, eu também não queria mais trabalhar com psiquiatras em função de mais de um século de barbaridades cometidas por esta classe profissional (risos). Aí enfim, as coisas ficaram bastante estremecidas durante alguns meses. Depois eu me dei conta de que não tinha sido uma boa estratégia política. Mas com o tempo a gente estava fazendo dois encontros semanais. (RIGONI, 2006)

Muitas das respostas negativas diante das experiências da RD e do AT podem ser lidas como resultado do enfrentamento entre paradigmas epistemológicos distintos, em que a ética profissional do cuidador o impede de construir vínculos. Com efeito, nem todas as pessoas que trabalham com RD constituem ativamente a Luta Antimanicomial, ou vêem a RD na Reforma Psiquiátrica, e o protagonismo político na construção de redes é visto muitas vezes como obstáculo direto, não referenciado na cultura de uma sociedade. É comum que a RD não encontre interlocutores, tanto no âmbito da gestão quanto nos espaços de controle social, e de lutas como a própria Antimanicomial, e disto fica uma certa impressão de que os saberes que tornam possíveis estas clínicas seriam tão esotéricos quanto aqueles especializados, acadêmicos. As dificuldades no entendimento de uma proposta que opera sobre moralidades constituídas parecem insuperáveis, restando o isolamento da figura de redutores e redutoras como seres privilegiados – elogio que, sobretudo, atesta e reifica a distância entre clínicas ideais e clínicas possíveis no SUS.

Esta distância está presente, por exemplo, nos discursos que constituem as drogas como “epidemia”, em uma edição contemporânea de lógicas campanhistas que muitos dentre nós julgavam extintas. Diante do florescimento destas formas contemporâneas de higienismo relacionadas ao uso de drogas, o antropólogo Edward Macrae costuma dizer, em suas aulas de socioantropologia do uso de drogas, na UFBA: não podemos acabar com a cultura das drogas. Concordamos: são justamente estas culturas, estas trocas de informações - hoje criminalizadas - que possibilitam a promoção de saúde entre pessoas que usam drogas, incluindo aí as experiências de RD e AT, sempre que não confundidas com forças naturalizantes das culturas de uso: RD e AT podem (e devem!) transitar nestas culturas, operando os tensionamentos da promoção de saúde, justamente por não desejar combatê-las.
Mas, que tensionamentos RD e AT podem operar, em relação às clínicas higienistas? Falemos agora das dificuldades que se dão durante as tentativas de apropriação destas clínicas, e que pontos de fuga nos são sugeridos.

6. Possíveis limites para a apreensão das clínicas abertas
Na prática, RD e AT são mais produtivas ao fornecer tais ferramentas na exata medida em que atuam em contextos mais abertos, contextos em que o profissional se vê livre para tentar outras propostas. Afinal, a clínica da RD e do AT são pensadas caso a caso, no exercício do movimento e da improvisação. Este exercício flui através de sua própria ética (uma ética antimanicomial). Encontramos paralelo aqui em Paulo Freire, com sua prática educativa na qual o foco do educador é possibilitar a construção de um caminho pelo educando, a partir de seus próprios referenciais. E aproximamos a prática de Educação Popular do ensinamento do Dharma Budista, segundo o qual somos inseparáveis daquilo que vemos no mundo. Neste sentido, temos a opção de dar um nascimento elevado aos seres, vendo-os como os seres libertos que são. Com efeito, se prendemos uma pessoa na identidade de usuário de crack, já estarão cumpridas as funções daquelas paredes manicomiais que tanto nos causam ojeriza.
Há uma idéia que perpassa tanto Dharma quanto o ensinamento de Paulo Freire: a idéia de uma autonomia fundada em uma nova ética, que é pensada não na relação do sujeito para consigo próprio, mas na relação sujeito/objeto. E, aqui, como contraposição, lembramos Foucault (2001), em seu acompanhamento do olhar sobre a doença, dizendo que a medicina exerceria um papel de mediação entre “sujeito e objeto que também é sujeito” - médico e paciente. “Não é o patológico que funciona em relação à vida, mas o doente em relação à própria doença” (Pág. 07). Ou, devemos dizer, funcionará o sujeito/doente em relação à idéia de doença, inferida no saber do sujeito/médico - que busca, através da medicina, enquadrar a doença...
Esta clínica do pré-acolhimento não é privilégio do século XVIII; a encontramos nos CAPS de hoje em dia. Não se trata aqui de relativizar as conquistas da própria Reforma ao âmbito das instituições, dos serviços; mas sim de apontarmos para os lugares nos quais as reflexões das clínicas abertas se dão. Lugares da subjetividade.
Na prática, podemos situar o lugar destas novas clínicas a partir do surgimento de novas éticas do cuidado em Saúde Mental, no sentido de eliminar duas pretensões: a de neutralidade (neste caso assumir nossos preconceitos sobre drogas e poder usar deles, como o redutor que faz piadas sobre drogas); e aquela pretensão paternalista do cuidador, pois afinal estamos olhando para RD e AT enquanto dispositivos da Reforma, da promoção de autonomia, e a última barreira deste posicionamento é conceber que o outro não pode “depender” de nosso “conhecimento” – e aqui, a utilização de aspas homenageia novamente a Paulo Freire.

7. À guisa de conclusão...
Os métodos da RD e do AT não servem ao conhecimento acadêmico. Ao contrário da experiência das leis do SUS e da Reforma Psiquiátrica, as experiências das clínicas abertas não têm como maior mérito as suas ferramentas ou metodologias (e assumir isto não significa diminuí-las). Eis aí o motivo de boa parte dos pontos de interrogação, bastante visíveis no semblante de muitas pessoas, mesmo após uma reunião de sensibilização sobre as clínicas abertas. Elas - as clínicas abertas – são sobretudo uma experiência interna a trabalhadores e trabalhadoras de Saúde. Só se resolvem na práxis, e não nos parece aconselhável a alguém que queira se apropriar destas clínicas, a leitura metódica de diários de campo de um redutor de danos, por exemplo. A informação essencial contida nestes diários costuma ser tão somente a confirmação de que é possível e muitas vezes necessária uma clínica aberta.
No que diz respeito ao fenômeno das drogas, que tomamos como analisador para este artigo, a RD nos ensina que já estamos saturados de especialidades, ao mesmo tempo em que nos faltam escuta e acolhimento. Falta trabalhar nossas barreiras, desafiando o imperativo legal e a moral antidrogas, por meio de uma clínica essencialmente política. Afinal, os usuários de serviços de atenção a pessoas que usam drogas, públicos ou privados, não são criminosos, e afirmar isto constitui, necessariamente, uma clínica política.
Neste sentido, só nos parece possível atribuirmos o papel de dispositivos da Reforma Psiquiátrica às experiências das clínicas abertas, enquanto suas contribuições forem a da crítica constante a todo tipo de institucionalização. É desse movimento vivo que pensamos ser necessária uma apropriação, enquanto trabalhadores e trabalhadoras da Saúde - uma apropriação da autocrítica, que poderá nos transformar, enfim, em agentes da luta contra tudo aquilo que representa uma clínica manicomial.

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Notas:

1 Dênis é educador popular, redutor de danos e cientista social. É ligado ao Rizoma Princípio Ativo, e membro do Colegiado Nacional da Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA), onde também integra o GT de Política internacional. Atualmente, é mestrando em Educação Popular na Universidade Federal da Paraíba.

2 Rafael é redutor de danos, acadêmico de Ciências Sociais, e militante do Rizoma Princípio Ativo. É integrante do GT Marcha da Maconha na Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA). Atualmente, acompanha o trabalho do Coletivo Balance, que realiza ações de Redução de Danos junto ao público frequentador de festas rave na cidade de Salvador, Bahia.

3 Por essencialmente de punição, leia-se “punição no âmbito pessoal”, que se dá por meio da imposição de moralidades específicas de nossa sociedade (moralidades antidrogas), naquilo que Pierre Bourdieu (2006) categorizou como Violência Simbólica.