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De Gaudí aos produtores de cultivos declarados como ilícitos
Por: Maria Priscila Lisa das Chagas
Data: 16/03/2009


Resumo
O texto apresenta um breve relato sobre a participação no Fórum Mundial de Produtores de Drogas Ilícitas, sob o título: De Gaudí aos produtores de cultivos declarados como ilícitos. O artigo apresenta os principais pontos que foram debatidos durante o fórum para a perspectiva da avaliação da última década de continuidade da atual política de drogas internacional que será feita em Viena, Áustria, em março próximo. O Fórum tinha o objetivo de reunir os produtores de cultivos declarados ilícitos e dar voz a estes produtores apresentando os efeitos danosos de uma política proibicionista que desconsidera os direitos dos produtores e as questões culturais destas comunidades. O texto apresenta os pontos principais da Declaração do FMPCDI, que foi elaborada durante o fórum e que será levada a Viena, para assim reivindicar os direitos dos produtores.

Abstract
The article presents the principal points discussed at the Forum of Producers of Crops Declared to be Illicit to a evaluated perspective of the last decade with the continued policy of international drugs. The Forum had a goal to bring together the producers of crops declared illicit and give them a voice, which represents the poor effects that the actual policy has on them. The conclusions of the Forum will be submitted to the UNGASS on Countering World Drug Problem, to be held in Vienna on March, which international strategies against this kind of crops will be decided.

 

Barcelona é uma cidade ensolarada, com ruas amplas. As pessoas da cidade são muito acolhedoras e simpáticas. Muito interessante a forma de se vestir, com roupas sobrepostas, bastante diferente de nossos hábitos brasileiros. Quando a delegação brasileira chegou ao aeroporto havia um voluntário do CERAI nos aguardando. Fomos levados até o Centro de Convenções, no qual também ficamos hospedados. Javier, coordenador do FMPCDI, e Anabelle, que cuidou da logística, nos recepcionaram. Indicaram o funcionamento da programação, que recebemos naquela ocasião. A impressão que isso nos causou era de um Fórum bem organizado. Havia várias delegações chegando simultaneamente, todos precisavam ser alocados e foram. Isto para que no dia seguinte tudo pudesse começar a contento.
Nosso grupo brasileiro era formado por três camponeses, vinculados ao Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco. Eles vivem numa região de alto risco social decorrente dos efeitos da política de drogas brasileira e da existência de áreas de conflito entre plantadores de cannabis e camponeses de cultivos lícitos. Uma dessas lideranças têm acompanhado os casos de jovens camponeses que têm sido assassinados por grupos de extermínio na cidade de Belém do São Francisco, que tem se especializado em matar suspeitos de envolvimento com o cultivo de cannabis. As outras duas lideranças têm acompanhado os processos conflituosos entre o aparelho de repressão do Estado e os camponeses, bem como denunciado situações de violência letal geradas por toda essa situação. Aliás, esses camponeses estão no epicentro de uma das maiores conquistas camponesas do sertão: o reassentamento irrigado de Itaparica. Conquista da qual foram protagonistas. E na mesma região estão os projetos polêmicos da Transposição do São Francisco e da construção de novas barragens, como a de Riacho Seco. Além deles estávamos dois pesquisadores, Maria Priscila Lisa das Chagas, de KOINONIA; e Paulo César Pontes Fraga, professor da UESC (Ilhéus, BA).
A abertura do encontro foi aos 29 de janeiro. Durante os três dias ocorreram 21 sessões de trabalho. Nelas temas referentes ao cultivo de cannabis, coca e papoula foram debatidos. Havia quatro temas principais: - impacto e conflitos gerados devidos à erradicação dos cultivos declarados ilícitos; - desenvolvimento rural alternativo; - organização social e relações com governos e instituições; - usos tradicionais, culturais e medicinais. A principal característica do FMPCDI foi a participação intensa dos produtores de 10 países, em especial da América Latina, África e Ásia. Participaram ao todo 60 pessoas. As instituições que coordenaram o fórum eram ALMEDIO e CERAI, ambas catalãs, e quem apoiou a participação da delegação brasileira foram o TNI, por meio do CERAI, e a ICCO. Na abertura houve a apresentação de todas as delegações, as quais expressaram como expectativa central a liberdade de cultivo das plantas sagradas e a preservação de direitos humanos e socioambientais dos produtores.
Na primeira sessão houve destaques para dois pontos, a política internacional de drogas e seus efeitos para os produtores e o processo de construção do FMPCDI. Foi destacado que no governo Richard Nixon houve uma atitude mais severa em relação às cadeias produtivas das drogas. Se por um lado a guerra do Vietnam estimulou maior consumo de drogas, por outro a perseguição à cadeia produtiva, em especial da maconha, coca e heroína cresceu no mesmo período. Na década de 1980, esta situação fez com que vários estudiosos buscassem construir uma alternativa à guerra às drogas, que cresceu ainda mais na administração Reagan.
Por isso, num seminário internacional, em 1987, Evo Morales despontou como a principal liderança cocalera andina e latino‑americana. Naquela ocasião ele expressou para o mundo que a folha de coca é, antes de mais nada, um ente sagrado para o povo indígena andino. Este seminário foi fundamental para iniciar um processo que deu origem à busca de outra lógica da política de drogas. Não faz sentido uma política de drogas que penalize os camponeses, que usurpe seus direitos, que os assassine. Se faz necessária uma política de drogas que respeite direitos dos povos tradicionais, que faça valer a possibilidade dos vários usos dos cultivos dessas plantas. Este caminho trouxe-nos até o FMPCDI.

A caminho da UNGASS 2009

Entre 1998 e 2008 a ONU havia pautado como propósito da política de drogas a eliminação das plantas malditas. Martin Jelsma ofereceu uma análise dos resultados dessa década e além de uma visão sobre as expectativas referentes à UNGASS 2009.2 Para avaliar a década realizou-se no ano de 2008 uma série de consultas regionais de setores da sociedade civil. Este processo foi chamado Beyond 2008. Nestas consultas constatou-se que não houve a eliminação das plantas, ao contrário houve aumento da produção mundial destas plantas. Este insucesso foi suficiente para vários adiamentos da data da UNGASS. Ao que parece, para os produtores dos cultivos qualificados como ilícitos, a UNGASS 2009 não trará mudanças. Ou seja, estes cultivos muito provavelmente permanecerão qualificados como ilícitos. Por isso, no FMPCDI espera‑se que o manifesto elaborado pelos produtores seja um instrumento que manifeste na ONU a voz dos produtores. Ao menos para indicar o despropósito da manutenção de tal ilicitude.

Declaração política do FMPDCI e sua elaboração

A dinâmica de elaboração da declaração incluiu diferentes etapas. Cada um dos temas teve quatro grupos de trabalho. Em cada um deles discutia-se os temas a partir das experiências dos produtores dos diferentes países. Nos grupos havia um relator e um assessor para sistematizar os relatos, indicando constatações e propostas. Nos grupos de trabalho era possível perceber semelhanças e diferenças nas vivências dos produtores. Era muito parecido, por exemplo, em relação aos usos tradicionais, reconhecer que as diferentes plantas tinham efeitos semelhantes, por exemplo, para combater dor de cabeça. Também em relação à erradicação se notava que as pessoas ficavam muito vulneráveis diante da repressão aos cultivos, em geral por serem conduzidas sob violência, quer no caso da erradicação manual, quer no caso das fumigações. Os camponeses, diante disso, manifestavam o desejo de cultivar suas plantas como uma questão de direito, direito de manter seus costumes, direito de uso dos conhecimentos tradicionais, de manter organizada e viva a comunidade.
Depois das construções das sínteses elas eram discutidas em plenária. Houve correções, complementações e anuências. Foram dezesseis grupos de trabalho. Um acordo fundamental coletivo é o direito do cultivo das plantas tradicionais. Ou seja, para os camponeses é necessário que se retire o estigma das plantas declaradas como ilícitas. Para as comunidades é importante que se respeite o direito de cultivo para usos tradicionais, culturais e medicinais. Fica com isto indicado que se repele toda e qualquer criminalização dos camponeses que cultivam tais plantas. Isso também é uma referência para que os camponeses detenham o direito sobre tais plantas, não ficando reféns dos Conglomerados Transnacionais das indústrias farmacêutica e alimentícia, sobretudo.
A constatação dos efeitos sociais danosos da erradicação dos cultivos foi outro consenso. Quer por meio de fumigação, quer por meio manual as operações de erradicação geram enorme preconceito contra os produtores dos cultivos declarados ilícitos. Eles são submetidos à violência policial e de milícias, que lhes quita o fundamental direito à vida. As comunidades camponesas nesta situação são privadas de segurança humana. Em especial as fumigações provocam danos à saúde, cegando ou provocando a necessidade de amputação de membros. Os camponeses se vêem assim privados de seus direitos mais fundamentais. Por isso os produtores de cultivos declarados ilícitos rechaçam com veemência as fumigações aéreas, assim como a criminalização dos pequenos produtores, seja em cultivos para usos tradicionais ou não.
No caso brasileiro as operações de erradicação se dão por meio manual. São ações policiais, em geral violentas, que desrespeitam direitos dos cultivadores de produtos declarados ilícitos e mesmo daqueles que cultivam produtos lícitos e se encontram na mesma região. Uma consequência nefasta dessas operações é o assassinato de jovens nos interiores do Brasil. Uma morte silenciosa muitas vezes conduzidas por grupos de extermínio, como no caso da cidade pernambucana de Belém do São Francisco. Nos países andinos, como o Peru e a Colômbia, as operações de erradicação se dão por fumigação. Em todos os casos o resultado de tais políticas se provaram ineficazes, porque quanto mais se erradica maiores têm sido as áreas ocupadas por esses cultivos declarados como ilícitos no mundo.
Os produtores constataram que os seus cultivos declarados ilícitos não são causa dos problemas de desenvolvimento local, regional ou nacional. Senão que são fruto de problemas de desenvolvimento e crise do sistema internacional e dos Estados nacionais. Em geral, os cultivos declarados ilícitos, quando em seus usos tradicionais, são um instrumento de geração de bem‑estar das comunidades produtoras. Isso, entretanto, não é de conhecimento público. São essas comunidades as que primeiro detêm o conhecimento dos usos medicinais e terapêuticos dessas plantas, e mesmo alimentares, sem com isso gozar das benesses dos direitos de patentes. Finalmente, as comunidades quando submetidas a processos de substituição de cultivo (desenvolvimento alternativo), não são consultadas. Tem que aceder a imposições por parte do Estado, ou até mesmo de empresas privadas.
Para os camponeses o desenvolvimento alternativo não deveria estar focado prioritária e exclusivamente no aspecto econômico. Deveria estar calcado numa proposta de desenvolvimento humano integral. Isso requer um direito cidadão que inclua o acesso à saúde, à educação, transporte, tecnologia e comunicações, acesso à terra e a sua titulação, fomento para produção, segurança alimentar, acesso aos canais de mercados que retribuam o melhor preço aos que produzem.
Na maior parte dos países inexiste ou se proíbe a associação e organização de produtores de cultivos declarados ilícitos. Nos países em que tais associações existem, elas são perseguidas. Em muitos países, como as autoridades cumprem as convenções internacionais de drogas, as relações entre o Estado e os produtores são conflitivas. Quando existem as organizações camponesas para defesa dos direitos dos produtores, as lideranças são muitas vezes pressionadas e perseguidas por chantagens, ameaças e violência. Para os camponeses é necessário que eles sejam considerados nos debates nacionais e internacionais sobre política de drogas. As diferenças específicas de cada país devem ser respeitadas nas convenções internacionais.

Considerações finais a partir da experiência da delegação brasileira

O Fórum, como um todo, foi considerado pelos camponeses da delegação brasileira uma proposta ousada e certeira. Para uma parte da delegação brasileira foi uma surpresa que o tema da violência não estivesse presente em todas as discussões e debates. Porque para os camponeses na região do Submédio São Francisco a relação entre cultivo de produto declarado ilícito e ação do Estado tem como resultado violência letal. Por isso, o fato de poder partilhar situações de violência vividas no Brasil a partir desse tema foi muito relevante para o grupo. Para os camponeses brasileiros as discussões do Fórum eram bastante novas. Elas não traduzem as principais preocupações do sindicalismo rural ou do movimento camponês no Brasil. Por isso, o relacionamento com outros setores camponeses, como os da América Andina provocou impacto para os camponeses da delegação.
Foi uma surpresa para os camponeses brasileiros que Estados como Espanha, Itália, Alemanha, Portugal e Holanda tenham políticas de redução de danos muito diferentes do Brasil. Além disso, a constatação da relação com a cultura que tem o cultivo da folha de coca nos países da América Andina revelou para os camponeses brasileiros uma questão de direito tradicional, que merece respeito. Por outro lado, no Brasil, é necessário, segundo esses camponeses, que surgam políticas agrárias capazes de gerar verdadeiras alternativas de desenvolvimento integral e humano para as comunidades rurais.
Para os cientistas sociais do grupo o Fórum permitiu notar uma vez mais que o debate sobre política de drogas pode ter diferentes enfoques conforme o proponente do discurso. Para os camponeses, o discurso a partir da produção, do direito ao cultivo, da valorização cultural é fundamental. Já no caso dos usuários recreativos o discurso passa pela questão dos direitos individuais. Os debates no Fórum não trouxeram muitas surpresas, nem em relação aos direitos pleiteados, e nem em relação às expectativas futuras quanto às possibilidades de intervenção na UNGASS 2009. Porém, a possibilidade de intercambiar a experiência brasileira, do Submédio São Francisco, com outras permite analisar quão comum é a violação de direitos construída a partir da ação do Estado, em respeito a pactos firmados por meio de convenções internacionais de política de drogas. Isto provoca a necessidade de refletir sobre estratégias camponesas que se componham com a Reforma Agrária para a superação dos dilemas rurais.
Pudemos fazer algumas constatações. Notamos que existem modelos de organização de produtores de cultivos declarados ilícitos, como os da América Andina, para os quais a coca é um elemento da cultura indígena. A folha de coca é a vida deles. Percebemos, também, que na Ásia a produção de papoula implica em condições quase subumanas para os produtores em função da estigmatização gerada pela política proibicionista. Identificamos que no Marrocos a grande produção de cannabis também é sustentada por condições precárias dos camponeses que a produzem. E concluímos que todos estes camponeses estão em sofrimento nessa cadeia produtiva, na relação com o Estado, com a sociedade. No entanto, eles apenas querem trabalhar.

Notas:

1 Socióloga, assistente do Programa Trabalhadores Rurais e Direito, de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço.

2 UNGASS é a abreviação de United Nations General Assembly. A Assembléia Geral de 2009 tem como objetivo a revisão das convenções internacionais sobre drogas. Será realizada em março, na cidade austríaca de Viena.