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Militarização da política de drogas no governo Lula?


Por: Jorge Atilio Silva Iulianelli
Data: 01/09/2004


 

Nossa análise se debruça sobre o fenômeno das políticas de drogas elaboradas no âmbito do governo federal do Brasil. Pretendemos demonstrar que o governo Lula optou pela constituição de um projeto de política externa de “Brasil potência-regional” e de um projeto de desenvolvimento nacional que inclui a repressão ao ciclo econômico das drogas no capítulo da segurança pública. Isso o deixou diante de um embate e de alguns compromissos. Os compromissos são, no plano internacional, o de exercer uma liderança Sul-Sul nos processos de negociação econômica, política e até mesmo militar. No plano regional, da América do Sul, dentre outras coisas ficaram os compromissos do fortalecimento do Mercosul e do apoio às democracias vizinhas. O embate é com o projeto hegemônico de segurança continental emanado a partir de Washington.

 

Esse marco de referência é que permite entender como a coordenação da política de drogas do governo Lula está num espaço contraditório. Podemos identificar pelo menos três tendências. A primeira delas é a que propugna pela redução de danos. Nessa tendência encontramos sobretudo setores do Ministério da Saúde que vinham exercendo influência sobre esse tema devido à luta em favor dos soropositivos. Como o programa brasileiro de redução dos efeitos do HIV/AIDS se mostrou, pela força do apoio da sociedade civil nacional, um dos melhores no mundo, a política de redução de danos tem conquistado alguns espaços. Ela conseguiu, por exemplo, favorecer a alteração do nome da Secretaria Nacional de Política de Drogas (anteriormente Anti-Drogas), a SENAD.

 

Uma outra tendência é aquela que está na vertente da segurança pública. Aqui há um conjunto de atores governamentais: SENAD, Ministério da Justiça, Ministério da Defesa, Ministério do Exterior. Nesse entroncamento temos ações que visam à redução da oferta e da demanda pela via legal e pela via repressiva e militar. É nesse campo que estão as ações de militarização e enrijecimento legal. Nela é que encontramos uma nova lei, que ainda está em discussão no Congresso, mais repressiva em relação ao usuário que a anterior. Nesse meio de campo temos as ações militarizadas, de uso do Sistema de Vigilância Aérea da Amazônia (Sivam) para o combate às Farc e aos comerciantes de drogas. Temos, também, mais recentemente, a aprovação de reforços de efetivos nas fronteiras, e de leis como a do abate de aviões. É também parte dessa tendência o apoio interestatal no combate ao tráfico de drogas, o que explica os acordos com o Paraguai para o combate ao plantio de maconha, e com o governo do presidente Álvaro Uribe, da Colômbia.

 

Finalmente, há uma tendência que poderíamos chamar de debatedora do controle social das drogas, ainda mais enfraquecida que a primeira da redução de danos. Nela temos como atores a Secretaria Especial de Direitos Humanos, o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça. Esses atores estão dispostos a discutir a necessidade de uma legislação mais atenciosa com o usuário, quiçá despenalizando o uso de drogas. Nela se encontra a atual discussão, no Brasil, sobre o uso terapêutico da maconha. Essa tendência provocou no debate promovido pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) uma indicação para que a maconha seja retirada da Lista I, dos entorpecentes, da Convenção de 1961, e colocada na Lista IV, de fármacos controlados.

 

Portanto, ao falarmos de uma suposta militarização da política de drogas do governo Lula devemos considerar esse debate político que se dá no interior mesmo do governo. As declarações dos senhores ministros, que podem ser encontradas na imprensa, ratificam essa multifacetada posição política. Porém, como podemos observar das notas precedentes, há uma posição central e rígida que possui mais vigor político e institucional. Esse posicionamento político mais forte corresponde a um projeto de militarização da política de drogas do governo Lula?

 

Nossa hipótese é que há uma tal militarização. Porém, é necessário compreendê-la na medida em que ela representa um determinado projeto político mais amplo para o papel do Brasil como articulador Sul hemisférico. Nossa hipótese é que no plano político internacional, dado o papel de potência regional que o País quer alçar, ficou delimitado um posicionamento militarizado para a política de drogas. Assim como tal postura implica uma intervenção continental de defesa de fronteiras, fortalecimento das forças armadas e, no limite, de invenção de uma comunidade de segurança regional – ao menos na América do Sul.

 

O embate de um projeto de desenvolvimento nacional soberano com a doutrina dos conflitos de baixa intensidade (Low Intensity Conflict)

 

No governo Lula se reabilitou um sonho adormecido: aquele sobre o papel do Brasil no desenvolvimento mundial. No pronunciamento do então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, sobre o resultado de 18 meses de governo, foi dito: “O Brasil é uma grande nação não só pelo seu povo, pela sua dimensão sócio-econômica, territorial, pelas suas riquezas, mas pela sua presença no mundo, na América Latina, na América do Sul e no Mercosul. A liderança do presidente Lula se expressou e expressou o sentimento nacional de maneira, acredito, mais precisa na política externa, com uma inserção soberana do Brasil no mundo, com o fortalecimento do Mercosul, com o início da construção da unidade sul-americana, concretizado investimentos na infra-estrutura que vai permitir o comércio e a integração física, cultural e política os nossos países.” (Min. José Dirceu: 2004, p.3).

 

O discurso governamental enumera um conjunto de ações de fortalecimento desse papel. No nível interno, o País aposta na manutenção de uma economia de livre mercado, com controle estatal das políticas macroeconômicas e com um fortalecimento de setores econômicos estratégicos (como a informática, por exemplo). Esse investimento econômico geraria, segundo o Palácio do Planalto, respostas graduais, porém certeiras, para as dívidas sociais (Reforma Agrária, Educação, Saúde, etc). Em segundo lugar, se prevê, no plano da política externa mais geral, essa inserção soberana, da qual falava o ministro Dirceu. Tal inserção implica numa política regional para a América do Sul, e na construção de pontes entre os países do Sul. O G-20 é uma aposta nessa direção. Finalmente, há a aposta num papel do Brasil na coordenação de empenhos para a segurança regional da América do Sul e para a democratização do sistema ONU, pelo menos com a possibilidade de um assento permanente do Brasil no Conselho de Segurança.

 

Em entrevista ao jornal Correio Popular o presidente do Partido dos Trabalhadores fez algumas reflexões sobre o papel estratégico que tem um projeto de defesa no governo Lula. Segundo ele, a liderança regional do Brasil é aceita pacificamente na América Latina. Isso é, de certo modo, explícito na condução de negociações de conflitos como nos casos da Venezuela, ou da crise constitucional boliviana, ou na mediação do conflito entre Chile e Peru. Isso explicaria a importância da missão de paz do Brasil no Haiti. Essas notas iniciais mostram que há uma visão de um papel arbitral do Brasil na região. Isso faz parte do projeto de uma política de defesa do atual governo.

 

Falando especificamente sobre a defesa – de uma política nacional de indústria da defesa – José Genoíno afirma nessa entrevista: “O Brasil tem que ter nessa área uma política agressiva, ofensiva, pois atende a três objetivos. Primeiro, projeta a força do Brasil no mundo; segundo, gera emprego; finalmente, há o fortalecimento das marcas brasileiras. A disputa do mercado internacional se faz com marcas. (...) A disputa no mundo, hoje, não é só no campo diplomático e econômico. É preciso juntar a diplomacia, a defesa, o comércio e a tecnologia.” (Genoíno, J. : 2004, 2). Uma indústria de defesa deve incluir em sua agenda a geração de emprego, nova base energética, conhecimento, tecnologia e segurança.

 

Genoíno claramente expõe que o papel do País não é fazer guerra. Diz ele: “O Brasil não deve se preparar para fazer guerra, no sentido de invasão e ocupação, mas estar preparado para que caso alguém entre aqui, saiba de antemão que não fica barato. Ter uma política de defesa que deixa claro que, se entrar aqui, tem estrago. Investir em defesa é como fazer seguro. É bom ter o seguro e é bom não usar.” (Genoíno, J.: 2004, 4). O papel do País é fomentar na área da defesa uma convergência de ações que abone essa liderança regional e projete o País para um protagonismo em relação a governança das forças armadas.

 

Esse projeto de um país coordenador da possível formação de uma comunidade de segurança regional se vê confrontado pelo papel que os Estados Unidos compreendem ter na região. Com efeito, o Comando Sul tem recebido a aprovação de amplo investimento militar. Os principais países a quem esse apoio tem sido dirigido, como se sabe, são Bolívia, Peru e Colômbia. O Brasil recebe um apoio pequeno, da ordem de alguma dezena de milhões de dólares. Para os Estados Unidos existem redes de terroristas e narcotraficantes que representam uma ameaça à segurança interna daquele país. O Comando Sul estabelece cooperação militar-militar. O relatório de 2004, do General James Hill e o pronunciamento de seu substituto o Tenente-Coronel Bantz J. Craddock nos oferecem uma noção dessa política.

 

O primeiro deles nos indica que a região possui dois perigos que ameaçam a segurança dos Estados Unidos Primeiramente, está o narcotráfico. Ele é uma ameaça porque atrai consumidores nos Estados Unidos. e representa uma força desestabilizadora das democracias. O segundo, é o “populismo radical insurgente”. Neles “o processo democrático é sabotado para minguar, mais que para proteger, os direitos individuais”. Esses líderes, que não  conseguem criar mecanismos de superação das desigualdades sociais, aprofundam um sentimento anti-estadounidense. Por isso, o general recomenda que se mantenham e estreitem a cooperação militar-militar na região.

 

Hill indica, em relação ao narcoterrorismo, que caberia aos governos dos países latino-americanos distinguirem os papéis das forças armadas e das polícias. Entretanto, como observa Tom Barry, foram os próprios Estados Unidos que contribuíram para essa confusão. São interessantes as avaliações das ações no continente que faz o General Hill. Em relação à Colômbia, ele indica que ela está caminhando para uma sociedade pacificada, graças aos investimentos feitos durante esses últimos três anos e meio pelo Plano Colômbia. A Venezuela, por sua vez, é uma sociedade muito polarizada. Essa polarização seria fruto, segundo nosso general analista, das ações autoritárias de Hugo Chavez.

 

O Tenente Coronel Craddock indicou ao Senado dos Estados Unidos que sua principal missão, ao substituir Hill no Comando Sul será dar continuidade à guerra contra o terrorismo no Cone Sul. Para ele, o papel dos Estados Unidos é apoiar aos demais países da América na defesa da democracia. Já não mais são aplicáveis termos como insurgentes e guerrilheiros, na lógica de Hill e Craddock. Agora é necessário referir-se a narcoterroristas, e isso está relacionado com o processo completo de cultivo, manufaturação e tráfico de drogas ilegais.

 

Igualmente, na reunião com os ministros de defesa de doze países da América do Sul pontuou essa luta como ação do Brasil. Em 2003, no Brasil, durante a reunião multilateral entre os ministros da defesa, o Ministro Viegas disse que existe uma identidade estratégica entre os países sul-americanos. Por isso, é necessário promover um intercâmbio de informações entre os países no que tange à questão da defesa. E isso é para o enfrentamento de questões de segurança internacional na América do Sul. Segundo o Ministro, são os crimes transnacionais que merecem essa atenção. Quais são eles? O terrorismo e o narcotráfico. Poderíamos, então, afirmar que com o governo Lula se inicia uma estratégia de criação de uma doutrina de segurança para a região.

 

Das ações militarizadas em relação às drogas

 

Terrorismo e narcotráfico na América do Sul são um confronto com as drogas. As drogas foram erigidas à substância inimiga. O combate a elas implica num estabelecimento de estratégias de coordenação de ações na sociedade doméstica com intervenções na comunidade regional. Esse multilateralismo do governo Lula em relação ao tema das drogas parece, por um lado, corresponder ao senso comum que se estabeleceu com a vigência das Convenções. Efetivamente se criou uma mentalidade do mal das drogas e, assim, elas passaram a ser vistas como um elemento que dificulta ou impossibilita o trabalho produtivo, criativo e a construção de ações políticas democráticas.

 

Quando o Presidente Lula foi empossado, em uma de suas primeiras entrevistas, ele afirmava que uma das ações prioritárias de seu governo seria combater às drogas. A primeira-dama, D. Marisa, também indicou, numa entrevista, que era necessário construir alternativas para a juventude a fim dela poder escapar ao mal das drogas. Certamente, esse componente de uma visão que corresponde à mentalidade hegemônica, a essa fantasmagoria droga-mal está à base dessa perspectiva da Presidência da República.

 

Porém, há algo mais político. Um projeto político de inserção soberana no mundo tem certos custos. Há que se ceder em determinados pontos. Parece que esse é o caso em relação à política de drogas. O discurso do governo Lula em relação aos temas comerciais entre Brasil e Estados Unidos; Brasil e Comunidade Européia é o de paridade. O Brasil, diz o governo, deve ser tão inflexível na defesa dos próprios direitos como os países centrais do Capitalismo o são. Isso tem gerado alguns ganhos na Organização Mundial do Comércio, de certo modo isso abriu o debate sobre o papel do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, assim como retarda o processo de definição da ALCA.

 

A hipótese que defendemos aqui é que o custo dessa inserção soberana é a manutenção de determinados padrões políticos subordinados. Ao que nos parece é exatamente o caso da política de drogas e de sua militarização. No caso da redução de danos, por exemplo: como se sabe, a inflexão do governo de Washington é favorável, exclusivamente, a uma política de abstinência. O governo brasileiro, por meio do Ministério da Saúde, apóia, praticamente, com exclusividade, ações de redução de danos. Porém, por meio da SENAD, apóia, também, ações de política de abstinência – o que, aliás, agrada a muitos grupos religiosos.

 

Em relação à política de segurança pública, por exemplo, o governo brasileiro mantem uma ação de contenção dos grupos empresariais das drogas. Como efeito, há uma componente que não se pode deixar de lado aqui. Existe nesse campo uma clara conexão entre comércio de drogas, de armas e outras formas de ações ilegais e imorais. Rodrigo Umprimny, em Cartagena, 2003, chamava a atenção para uma necessária distinção. Se alguém é homicida e usuário de drogas, deve ser julgado porque infringiu mal a terceiro com o homicídio e não porque se autolesionou – se o fez – com o uso de drogas. Algo análogo deve ser feito aqui. Se existem as conexões elas não podem impedir as necessárias distinções.

 

Efetivamente, porém, as ações de segurança pública no Brasil, seguindo um rasto histórico, especialmente no que tange à política de drogas, têm uma componente racista e classista. São as pessoas empobrecidas e afrodescendentes as que mais sofrem as penas da lei. Isso é assim no geral, mas também particularmente em relação às drogas. Isso vale para a questão da comercialização nos centros urbanos, na qual são os jovens negros de 15-24 anos que são detidos, mortos e são, também, infelizmente, os autores de assassinatos. Também vale para a questão do plantio de maconha no Nordeste, na região do Submédio São Francisco, na qual os cultivadores são jovens e afrodescendentes, sobretudo.

 

Uma resultante desse processo de um tratamento criminalizador e repressivo ao circuito econômico das drogas, no Brasil, é o alto índice de mortes de jovens, homens, entre 15-24 anos. Um verdadeiro genocídio. Diversos estudos já demonstraram esse fato. Um deles é o de Paulo César Pontes Fraga que discute como a institucionalização da delinqüência é um fator agravante nesse processo. De qualquer maneira, o que precisa ser destacado nessa nossa discussão é o recurso às forças armadas para o trabalho de combate ao crime.

 

No caso brasileiro, a polícia militar é uma força auxiliar das forças armadas. A Polícia Militar, que faz o policiamento ostensivo, deve obediência aos governadores dos Estados e ao Estado-Maior do Exército. Essa ambigüidade vez por outra faz com que a população – especialmente as classes médias e as elites – exija uma intervenção das forças armadas para apaziguar as situações desmanteladas nos centros urbanos. Isso tem sido mais visível no Rio de Janeiro. Com efeito, desde que Fernando Henrique Cardoso lançou mão das forças armadas para a proteção dos chefes de Estado durante a Cúpula Mundial sobre o Meio Ambiente, em 1992, passou a ser uma questão nacional a presença militar das forças armadas no controle dos conflitos sociais urbanos.

 

Isso se coloca como um problema para a elaboração de uma comunidade regional de segurança. Uma comunidade de segurança se define como um conjunto de Estados que pactuariam a não-agressão entre si e outros mecanismos para a resolução de conflitos. Porém, o papel das forças armadas de controladora de conflitos urbanos se mostra como um obstáculo para a realização de uma comunidade de segurança entre os países da América do Sul. A reflexão em torno da conveniência dos meios é um elemento que contraria a participação dos exércitos sul-americanos no combate ao, assim chamado, crime organizado. Na verdade, o trabalho difuso das operações policiais não se concilia com o caráter hierarquizado das ações do efetivo militar. Sem falar na questão da corrupção dos indivíduos e da instituição como um complicador a mais.

 

Um papel maior em relação às sociedades domésticas para as Forças Armadas implicaria numa forte razão para que os generais construíssem uma aura de legitimidade no interior da corporação, e nas relações com diversos setores da sociedade civil, para a sua interferência nas políticas nacionais. Isso poderia ser um risco para a estabilidade de democracias conduzidas pelos civis. Tudo isso, enfim, torna questionável a aceitação de um projeto de formação de uma comunidade regional de segurança. Devemos observar que esse papel militar no combate aos conflitos sociais urbanos, na lógica do governo brasileiro, se justifica por ser um combate ao narcotráfico.

 

Uma outra ação militar tradicional é a da defesa das fronteiras. O Brasil, em vista da questão estratégica da Amazônia, já constituíra no Norte dois sistemas de vigilância integrados. O Sistema de Vigilância Aéreo e o Sistema de Proteção das Águas da Amazônia, SIVAM e SIPAM, têm essa função. Essa ação, em função da presença das FARC, e em função dos acordos com o governo Uribe, feitos pelo governo Lula, geraram já, pelo menos, duas alterações regionais. Primeiro, o acesso às informações do SIVAM  por parte dos governos do Peru, Bolívia e Colômbia foi ampliado. Esse era um acesso restrito ao governo brasileiro – quiçá aquilo que Raytheon (empresa americana escolhida pelo governo para implantar o SIVAM) permite. A outra alteração foi a composição do efetivo, que foi ampliado.

 

Ainda neste ano de 2004 duas novas iniciativas demarcam esse enrijecimento militarizado da política de drogas do governo Lula. Primeiramente, seguindo as recomendações da UNDCP (Programa das Nações Unidas para controle Internacional de Drogas) foi elaborado um maior rigor legal em relação aos usuários. A nova lei de drogas, PL 7134/02, projeto que desde maio de 2002 vem sendo discutido, traz um maior rigor da lei em relação aos usuários. Na verdade, é ainda mais punitivo porque assume a figura do usuário traficante. E como tráfico permanece como crime hediondo, essa pessoa terá um tratamento legal mais pesado que o atual.

 

A outra iniciativa é a lei do abate. Trata-se de lei aprovada pelo Congresso desde 1998, que ainda não tinha sido aprovada pelo Presidente. Segundo Walter Maierovitch – juiz e ex-secretário da SENAD -, Lula foi motivado a assinar a lei 9614/98 após assistir a um filme sobre as incursões de aviões de narcotraficantes no espaço aéreo brasileiro e de seus gestos obscenos para os oficiais aviadores. A lei foi instituída aos 19 de julho deste ano. Essa é uma lei como as que surgiram no Peru, equador, México, Colômbia e Bolívia. O que não se trata na lei é que as aeronaves são americanas e que elas têm um seguro fiduciário: para cada aeronave abatida há uma nova oportunidade de compra financiada.

 

Os acordos entre o governo Lula e o governo Uribe prevêem cooperações militares diversas. Em 2003, os governos selaram um pacto de colaboração no combate ao narcotráfico, incluindo uma determinação para "que os órgãos responsáveis dos dois governos examinem, em caráter prioritário, as modalidades de utilização, pelo governo colombiano, do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM)". Segundo Uribe, uma das principais tarefas conjuntas das forças de segurança brasileiras e colombianas será a de evitar a circulação de drogas, produtos químicos usados na produção da substância e armas destinadas a traficantes e terroristas. Ele afirmou que são necessárias ações para acabar com os mercados negros de armas ou evitar que, onde for impossível a destruição, eles continuem alimentando os grupos que considera terroristas e que atuam na Colômbia.
Os dois presidentes decidiram constituir um grupo de trabalho formado pelos Ministérios das Relações Exteriores, da Defesa e da Justiça dos dois países, "com o objetivo de promover a cooperação e o intercâmbio de informações para a efetiva prevenção e repressão da criminalidade e do terrorismo, inclusive no âmbito dos acordos bilaterais vigentes de extradição e cooperação judiciária em matéria penal", diz o comunicado conjunto. Esses propósitos foram reafirmados no comunicado conjunto dos dois presidentes de junho de 2004.

 

Ao final do ano de 2003, o Ministro da Defesa aumentou o efetivo na região amazônica em três mil homens, para fortalecer a base de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira com a Colômbia. O efetivo na Amazônia é de 25 mil homens, e nas entrevistas do ministro Viegas ele indica que esse é um bom motivo para que as FARC não queiram invadir o Brasil. O Comando Militar da Amazônia contabiliza 11 frentes das FARC na região. Também as fronteiras com o Peru e a Bolívia ocupam o Ministério da Defesa, sempre num discurso de guerra contra às drogas.

 

Considerações finais

 

A primeira observação que podemos fazer é que não há solução de continuidade na política de drogas do governo brasileiro. Na verdade, desde a primeira proibição ao uso do pito de diamba, durante a Regência Tríplice, no Império, por meio de uma lei municipal do Rio de Janeiro, a mesma intenção classista e racista desse proibicionismo brasileiro persiste. Os criminalizados eram os afrodescendentes, os trabalhadores, os escravos. Essa criminalização das classes subalternas persiste. São os jovens pobres das periferias urbanas e rurais, das classes subalternas, que optam por uma atividade econômica que viabiliza projetos de vida. Em muitos casos, aceitam o risco de morrer ao invés de não terem atendidos nenhum dos sonhos de autorealização que podem pretender.

 

Ao fim e ao cabo, a política de drogas do governo Lula está militarizada. Conforme indicamos, parece que isso atende a um plano de inserção soberana. Se esse plano pode avançar em algumas pequenas brechas no cenário internacional, cede em outras. Talvez o que se esteja cedendo seja demasiado. Talvez uma indicação de percepção dessa generosidade por demais abrangente seja que, na Conferência de Drogas em Viena em 2004, nas discussões sobre a descriminalização da maconha, a tendência do governo brasileira siga a tendência de aprovar tal descriminalização – ao menos para finalidades terapêuticas dessa planta.

 

Seguramente, o problema latino-americano, e da América do Sul, não é aquele do circuito produtivo e comercial de drogas. A violência embutida nesse circuito é uma hipérbole da violência da desigualdade gerada pelo capitalismo na região. Não é por acaso que o Brasil, campeão em desigualdade social, é, também, campeão em morte de jovens por homicídio em centros urbanos. Por isso mesmo, está claro que não é a militarização uma boa política pública em relação às drogas. Há que se discutir porque esse modelo de intervenção estadounidense está reforçado nas políticas regionais.

 

No caso da Bolívia, Peru e Colômbia isso é muito claro. Praticamente 2/3 dos investimentos militares dos Estados Unidos em toda a América Latina são destinados a esses países. O Brasil recebe uma contribuição em dinheiro militar americano muito pequena. É verdade, como demonstrou José Arbex na revista Caros Amigos, que o Drug Enforcement Agency tem investido em equipamentos, e pagamento de pessoal, para a Polícia Federal brasileira, ao arrepio da Constituição Federal do Brasil. Porém, ainda que se considere esses investimentos, o impacto econômico deles na economia brasileira é muito residual.

 

Talvez, a melhor hipótese seja a da correlação de forças. Combater a política da guerra às drogas dos Estados Unidos tem um custo muito maior que o benefício político e econômico que traria ao governo Lula. Combater as políticas econômicas, os subsídios, isso é dever de um governo que quer manter uma economia de livre mercado, e aprofundar efeitos positivos de uma política econômica de recorte neoliberal e neo-socialista – se é que uma combinação como essa possa existir. Porém, uma ação em relação à política de drogas que desafie um postulado fundamental do governo de Washington, isso seria demais. E qual é esse postulado?

 

Essa é a doutrina de segurança que está construída a partir de Reagan que recebe uma nova contribuição de George W. Bush Jr. A doutrina dos conflitos de baixa intensidade que coopera agora com a doutrina da guerra preventiva. Trata-se de uma forte justificativa para a continuidade de operações militares na região. Os investimentos militares vão de bases de radares, a maioria na Colômbia e no Peru, até a presença de 10.500 efetivos, principalmente no Caribe e na América Central. O Comando Sul pretende, por meio do seu teatro estratégico de cooperação para a segurança (Theater Security Cooperation Strategy) “ criar e/ou melhorar relações de  defesa e capacidade de associação, incluindo inter-operalidade e promoção da cooperação regional para responder a uma série de desafios transnacionais que confrontam a região”.

 

Essa cooperação logística dos Estados Unidos pretende manter a presença e a hegemonia do Grande Irmão do Norte. Seguramente, o que está em disputa é qual o modelo de sociedade que se pretende fazer valer. E o núcleo central dessa discussão é o papel do sacrifício em favor de um determinado modelo. Uma questão escapa a essa análise que é a do custo de vidas humanas desse processo permanente de criminalização e militarização no tratamento da questão das drogas. Ao avançar num projeto como esse o que se está ganhando mesmo?

 

Em nome da modernização capitalista, para que a mão-de-obra possa estar apta a servir aos interesses do Capital – tais como economia de mercado e democracias domesticadas – se afirma a necessidade de controlar vertical e autoritariamente o consumo de drogas. Determinados industriais de algumas drogas já ocuparam um espaço público que lhes assegura, e aos seus produtos, alguma aceitação. O esforço das indústrias de bebidas alcoólicas e de tabaco para que a disseminação dessas drogas não sofra interrupção é imenso. Porém, sob essa lógica o controle da oferta e a redução da demanda de drogas consideradas “maléficas” podem gerar sacrifícios humanos. São, porém, sacrifícios necessários para que a modernização capitalista ocorra. Sem esses fica sob risco a própria possibilidade da consubstanciação da civilização mundial sob a égide do modelo “liberal” do Capitalismo Ocidental.

 

Cria-se uma lógica aparentemente redentora das políticas públicas proibicionistas militarizadas. As drogas são corruptoras da vontade humana, um malefício à saúde. Aqueles que estão no seu circuito produtivo são detratores dos direitos humanos. Então, essa lógica ocidental apresenta sua face sacrificialista: em nome dos direitos humanos sacrifiquemos os direitos humanos desses detratores. Seria assim um antisacrifício, uma ato de necessidade. Por isso, tudo é lícito. É lícito corromper camponeses para entregar companheiros, amigos, familiares ao aparelho repressor do Estado. É lícito torturar. O sacrifício humano se tornou uma norma.

 

É moralmente justo interromper esse genocídio? Devemos interrompê-lo? O que vai acontecer se deixarmos de pagar a Dívida Externa? Se deixarmos de manter o Proibicionismo? Se punirmos os que fazem guerras à revelia do direito internacional? “Temos uma moral que exige sacrifícios humanos, e o Ocidente não tem intenção de violar esta sua moral. (...) Nossos bancos não realizam também eles este sacrifício trágico quando cobram a dívida externa do Terceiro Mundo, e aceitam ser acusados de não encontrar nenhuma compreensão para a necessidade moral que os obriga a cometer o genocídio? São eles os que têm o drama trágico da alma, e não aqueles que têm que morrer em conseqüência.” (Hinkelammert, F.: 1995, 37-38).

 

No Brasil, entre 1979-2001 quase 600 mil pessoas foram assassinadas. O simples enunciado dessa frase é aterrador. E muitas vezes o que se argumenta é: então, vamos definir guerra por meio do número de mortes violentas, e vamos considerar que o Brasil está em guerra. A guerra é uma situação de exceção. A ordem está suspensa. É permitido matar o inimigo. Porém, quem é o inimigo? O inimigo é o jovem pobre, da periferia e da zona rural: é ele o inimigo. Esse sacrifício humano em nome de uma ordem a ser estabelecida pelo banimento da circulação de determinada substância parece já ter ido longe demais. Até quando a lógica sacrificialista do proibicionismo poderá se sustentar?

 

Bibliografia

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TODD, Paul & BLOCH, Jonathan. Global Intelligence – The World’s Secret Services Today. London: Zed Books, 2003.

Este artigo foi apresentado no Fórum Andino Amazônico na Colômbia em setembro de 2004.



[1] Jorge Atilio Silva Iulianelli, coordenador do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço, e pesquisador da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), doutor em Filosofia, IFCS/UFRJ.