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BRASIL, PAÍS DE TODOS?
Ano 2 - Nº 5
Novembro de 2007
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Como criar inimigos e influenciar pessoas
Por: Helena Costa

A edição de 20 de maio do jornal O Globo oferece lições contundentes sobre manipulação da informação, construção de estereótipos e reafirmação de preconceitos – para ficar nessas poucas qualificações. A matéria de capa intitulada "Risco de favelização" discorre sobre a reivindicação da comunidade quilombola da Ilha da Marambaia, localizada ao sul do estado do Rio de Janeiro, de regularização de suas terras, garantidas pela Constituição. Ou, para ser mais exata, sobre a opinião da Marinha do Brasil, instalada na região, a respeito desse assunto.

Os fatos e detalhes dessa disputa encontram-se facilmente; há notas de esclarecimento emitidas pelas partes envolvidas, além dos inúmeros documentos, laudos, dossiês, decisões judiciais e relatórios do próprio governo que, se lidos com o devido cuidado e ausência de má-fé, poderiam poupar tempo tanto dos que se dedicam a distorcer os fatos quanto daqueles que procuram restabelecer a verdade.

Tentemos aqui nos ater a uma avaliação da reportagem sob o ponto de vista jornalístico. Se a propalada isenção jornalística não passa de mito, usado de acordo com os interesses de quem a evoca, cabe-nos despi-la e expor as intenções que orientam escolhas aparentemente simples. Um adjetivo aqui, um advérbio acolá, uma construção verbal ali e voilá!, está dito sem estar escrito. Mais que isso: está sugerido, induzido, criado em alguma região da memória, pessoal e coletiva - primeiro passo para consolidar verdades fabricadas..

A referida matéria ocupou um espaço nobre na também nobre edição de domingo do jornal: na parte inferior da capa, uma foto da Ilha da Marambaia ocupa três colunas, com o título "Risco de Favelização". A foto aérea, mostrando uma ilha que parece virgem, praias e montanhas cobertas de mata densa, associada à palavra favelização, compõe o abre-alas perfeito para as intenções da matéria: atacar os quilombolas. Já à primeira vista, o ânimo do leitor é preparado, posto em alerta para o que se segue.

"Setenta Maracanãs"
A primeira das muitas perguntas que não querem calar é por que um editor escolhe para nomear a matéria um título que é apenas uma suposição, medo, possibilidade? A foto não mostra nenhum indício de que o tal risco seja real. O título da matéria no interior do jornal não guarda nenhuma semelhança com a chamada de capa, beirando o poético: "Eu tenho uma casinha lá na Marambaia", citando versos da canção de Rubens e Henricão.

A matéria, ao fim e ao cabo, é sobre o conflito entre duas partes, não exatamente sobre os supostos desdobramentos deste embate. O temor militar aparece no corpo da matéria, mas novamente sem qualquer justificativa concreta. Mas está lá, como um mantra subliminar, para reforçar co-relações negativas na memória (favela, fim do paraíso...). Voltaremos ao risco levantado pela Marinha e secundado pelo jornal O Globo mais adiante; passemos à legenda, outro primor.

Ela nos informa que parte da ilha está sendo reivindicada por "supostos herdeiros de quilombolas". Não satisfeito em duvidar da identidade daquele grupo étnico, o texto continua o questionamento, com a pausa apenas de uma vírgula: "que dizem ter direito". Então a Marinha supõe um risco e ele torna-se fato a ser consumado; o direito constitucional (recentemente confirmado pela Vara Federal de Angra dos Reis) dos moradores registra-se apenas com o algo que eles "dizem ter"?

Chegamos então aos números, sempre faraônicos. Em matérias sobre disputas de terra é mais comum utilizar hectare como medida. Metros quadrados, entretanto, parecem mais adequados quando podem ser contados aos milhões, claro. Mais adequado ainda quando convertidos em curiosa e incomum unidade de medida: maracanãs. A legenda informa que o território requerido pelos quilombolas equivale a setenta daquele que ainda hoje é tido com o maior estádio do mundo.

Se a comparação se refere às dimensões do campo de futebol, qualquer estádio oficial serviria como metáfora. Mais simples: 70 campos de futebol são suficientes para expressar a idéia que se quer passar de muita terra para pouca gente. Mas pra indignar o leitor contra os "supostos" é necessários drama e hipérbole, imagens mentais tão grandiosas quanto a foto da capa.

Serviço completo
Segue-se então a posição da Marinha, que contesta os laudos "da ONG" – que não precisa ter nome: o termo ONG já foi devidamente satanizado pela imprensa antes e transformado em sigla para maracutaia. Retomando: a Marinha, então, ofendida como a moça que tem a honra questionada, "ameaça deixar o local". Deve realizar ali tarefas imprescindíveis à nação e aos moradores, a ponto de usar sua saída ou permanência como item de troca. E o grand finale: a retirada da Marinha – como tropas que se retiram do campo de batalha – abriria caminho para a tal "favelização" de "um dos últimos paraísos ecológicos do Rio".

Atendo-me às imprecisões da peça jornalística em questão – que evidentemente encobre orientações político-editoriais –, seria altamente recomendável que a Marinha e O Globo explicassem melhor a utilização do termo "favelização". Qualquer pesquisa preguiçosa informa tratar-se de um fenômeno social urbano, e a Ilha da Marambaia, como o jornal mostrou em grande angular, está longe dessa definição. Se "tornar-se favela" significa ocupar desordenadamente terras a que se julga ter direito, por que o termo só é lembrado quando aplicado às comunidades afro-descendentes? Seria esta mais uma daquelas infames coincidências que, uma vez consideradas racistas, tornam intolerantes aqueles que a desnudam, e não os que a praticam?

Para concluir, cabe destacar novamente a diferença de "tom" entre a chamada de capa e a matéria em si. Não que possamos considerar a reportagem equilibrada: claramente foi redigida a partir do ponto de vista da Marinha sobre o caso; é desse lugar que o repórter escreve, ao lado do Comando Militar. Mas a artilharia pesada concentra-se estrategicamente na linha de frente do jornal, a capa da edição de domingo. Para cada leitor atento da reportagem, há pelo menos 50 outros que leram a caminho da padaria, passando preguiçosamente pela banca de jornal; para cada um deles, mais 50 que, numa olhada de relance, registraram apenas "ilha-risco-favela". Serviço completo e, há que se reconhecer, bem-feito: a chamada orienta o leitor antes da leitura, expõe em todas as bancas do país uma versão sobre o assunto, constrói imagens poderosas no imaginário coletivo, forja opiniões contrárias às populações tradicionais.

Nesse ritmo, não levará muito tempo para que a próxima reportagem ganhe a retranca "Memória", e o título, "Eu tinha uma casinha lá na Marambaia".

Helena Costa é jornalista, mestre em Comunicação e Cultura, assistente de Comunicação de KOINONIA.
Este artigo foi publicado pelo Observatório de Imprensa (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/) em 29/05/07.