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EM DEFESA DA VIDA
Ano 3 - Nº 7
Março de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
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Terra plural, humanidade plural em busca de esperança.*
Por: Ivone Gebara
Data: 01/06/2005

Ossos secos ouvi as palavras de Deus. Farei com que sejais penetrados de espírito, cobrir-vos-ei de tendões, farei com que sejais cobertos de carne e vos revestirei de pele. Porei em vós o meu espírito e vivereis. (Ezequiel, 37.6)

A simbologia dos ossos secos que esperam ser reavivados expressa bem nossa esperança em meio às diversas situações destrutivas em que vivemos.

Quem são hoje, os ossos secos e quem são os ossos cobertos de tendões e de carne? Quem são os que são habitados pelo espírito de Deus e quem são os que dele estão distantes?
Se acreditamos que somos um corpo único com a Terra, então todos estamos secos e todos estamos esperando ser ressuscitados.

Incêndios criminosos destroem florestas e matas. Invasões em terras indígenas matam povos e culturas milenares. A África na América Latina parece cada vez mais pilhada e empobrecida. Devastação ambiental, devastação cultural, devastação econômica a serviço de minorias fartas de carne, desnutridas de espírito e surdas aos apelos dos que pedem apenas vida digna é parte de nosso cotidiano.

Que caminhos buscar para sair desta ignomínia? Que trilhas abrir para salvar o corpo da Terra e nosso corpo plural? Que preces fazer para enternecer o coração das divindades da Terra e do céu e sair desta mútua destruição?

Perecemos juntos e, parecemos com aqueles que perdem a cada passo o sopro divino. Erramos como se estivéssemos sem forças, sem rumo e sem paradeiro. Perdemos o caminho de casa, da oca, da aldeia, da escola. Não sabemos mais onde mora o amigo nem onde está a árvore frondosa que acolhia as brincadeiras de nossa infância.

Perecemos, asfixiados pela poluição, pelo mau cheiro que confunde e até mata todos os bons cheiros que correm o risco de existir apenas na memória.
Perecemos, porque a soja substituiu nossas fruteiras, o boi comeu nosso feijão, a barragem matou o nosso rio, as cercas destruíram nossas terras, o lixo tomou conta das ruas, o ar virou monóxido de carbono.
Perecemos porque roubaram nossas vestes, nossas danças e nossos deuses e fizeram deles folclore, peças de museu, pesquisa de laboratório ou teses de doutorado.

Como conseguir que o ‘Altíssimo’ ponha de novo em nós o seu Espírito? Como pedir à ‘Baixíssima’ que nos ajude a recuperar as forças? Como retornar à Vida, nós que ainda estamos vivos?

Dos exílios de nossa própria terra sentimo-nos tomadas por um estranho cansaço. Nada nos anima, nada nos devolve as forças perdidas. Mais que o corpo, a alma está cansada. E, cansaço de alma é doença grave, é epidemia geral contagiosa como a cegueira branca de Saramago.

Cansaço em repetir as mesmas falas de antigamente! Cansaço em fazer as mesmas denúncias e desfiá-las como se desfiam as contas de um rosário? Cansaço das lições morais que se tiram no final das elucubrações teológicas em que acusamos uns e inocentamos outros ou acusamos todos de formas diferentes.
Cansaço de falar que Deus vai dar um jeito, que Cristo tem a solução, que na Bíblia está o caminho e que a Igreja é a servidora de todos.
Cansaço de nossas lições morais bem articuladas, das afirmações sobre a necessidade de ajudar os pobres, de respeitar os de pele negra, de salvar os indígenas, de cuidar do corpo sagrado da Terra, de não violar as mulheres, de não traficar crianças.  
Cansaço de repetir aos domingos e dias santos que é preciso partilhar o pão, a terra e o vinho da alegria!
Cansaço de falar mal da metrópole portuguesa, dos primeiros missionários e dos conquistadores, dos colonizadores e dos impérios.
Cansaço de ouvir sempre de novo que fomos salvos pelo sangue de Cristo e que Deus está a nosso favor! E continuamos derramando sangue inocente ou culpado nas estradas, nas guerras, no tráfico de drogas, nos hospitais.

Cansaço das acusações dos políticos que arremessam uns aos outros as balas da responsabilidade não assumida.
Cansaço de nós mesmas que não encontramos saídas dignas para uma vida digna.

Enquanto isso, mãos destruidoras, nossas próprias mãos enlaçadas às alheias continuam executando os crimes, maquinados às claras e às escuras.
Crimes de grandes e crimes de pequenos.
Crimes cúmplices, crimes diretos, crimes indiretos, crimes com habeas corpus, crimes não afiançáveis, crimes ambientais, crimes culturais, crimes conjugais, crimes desconhecidos, simplesmente crimes.

Que cansaço da moral, da ética, dos discursos da lei e do direito!
Que cansaço das pregações, das homilias, dos discursos politicamente corretos!
Nunca foram tão vazios e inoperantes.
Nunca foram tão gastos e sem sabor.
Nunca chamaram tanto pelo fogo para consumi-los a todos e que não restem nem as cinzas para nossa lembrança.
Nunca desejamos tanto um dilúvio coletivo para que se possa talvez começar de novo e de um jeito novo. Nunca desejamos tanto que um fogo purificador consumisse nossa sordidez e que enfim “uma flor nasça do impossível chão”.

Houve momentos em que acreditamos que éramos bons, que seríamos até capazes de voltar ao Paraíso ou, de mãos dadas, nos aproximarmos do Reino de Deus, da fraternidade terrena, da sororidade universal.
Houve momentos em que convictos apostávamos sobre nossa capacidade de fazer de nossas utopias nosso pão cotidiano.
Houve momentos em que estávamos prestes a tocar o sonho com nossas mãos e acreditar que Deus através de nós instauraria o seu Reinado.

Mas, chegaram de novo os invasores,
Vieram de nossa própria terra,
Nasceram de nossa carne, frutos de nosso espírito...
Chegaram como ladrões de sonhos,
Como hierarcas que restabelecem seu poder,
Como inquisidores que restauram suas antigas verdades,
Como ambulantes que vendem mentiras e, de novo o povo acredita nelas e as compra com seu próprio sangue.

Que cansaço das falas éticas sem fim, das confissões mentirosas, das desculpas, da impunidade sem-vergonha.
Que cansaço das falas de justiça, dos pedidos de justiça, dos juizes sem justiça.
Que cansaço do Deus da boca dos homens, do Jesus Cristo das instituições falidas, da Bíblia usada e abusada pelas Corporações que governam o mundo, do perdão sem perdoados.

Será que tem conserto? Ou será que nunca terá?
Será que tem saída? Ou será um “caminho que não conduz a parte alguma”?

Foi erro da criação! Erro incorrigível. Não dá para voltar atrás, não dá para nascer de novo, para começar de outro jeito, continuar de outro jeito...
Foi algo que não funcionou bem no ínfimo segundo que antecedeu ao Big Bang, foi um espirro resfriado do Criador... E aí nos tornamos o que nos tornamos: lobos uns para os outros, leoas devoradoras de sua própria prole, comerciantes que vendem os irmãos, que abusam das irmãs, que se trocam por um par de sandálias, que depredam e incendeiam a terra.
Nos tornamos explosivos e implosivos no campo e na cidade, no ônibus e no metrô, em casa e na rua.

Nos tornamos angélicos demônios capazes de nos habituar à violência cotidiana.
De gostar do ruído de nossas armas de guerra.
De nos conformarmos com os cadáveres jogados nas valas comuns sem identidade própria.
Nos tornamos maldosamente astutos com capacidade de silenciar a vida sem ruído.

Matar, morrer, matar...
Nascer matando, Morrer matando,
Brincar matando.
Viver matando.

Por isso: cansaço das teorias, das antropologias, das vãs teologias...

 E, no entanto, desta morte semeada e colhida, desta violência crescida, deste charco inundado de lágrimas, destes sons gritados de dor há algo tênue que destoa, há algo que entoa outra nota, outra música, outro som. Mal se pode ouvir, mas com atenção o percebemos...  Há uma chama diferente, um odor suave que se distingue, uma carícia de verdade que se delineia.
Há pequenos espaços de um sorriso franco, há os pequenos instantes de atração irresistível, há algum perdão acontecendo, há um balbuciar de amor numa rua escura, há uma canção falando de flores, há um intento mínimo de divisão do pão, há uma lágrima enxugada, uma cruz carregada a dois, uma flor entregue, uma nova semente jogada ao chão...
Tão pouco e tão frágil!
Tão pouco, mas capaz de fazer nascer uma luz.
Capaz de mover corações,
Capaz de fazer nascer uma criança.

Há sempre alguma graça na desgraça sem fim.
E esta graça regenera o mundo de sua falta de razão.
Torna-se coração da Terra, torna-se coração da humanidade.
Torna-se o único sentido capaz de sustentar nossos corpos sedentos de sentido.
Torna-se carne de nossa carne, misturada a toda violência que produzimos.
Torna-se a única fonte portadora da esperança do espírito, o espírito de ternura e compaixão capaz de nos devolver vida e recriar de novo nossos ossos ressequidos.

*Publicado na revista Tempo e Presença nº 342, jul/ago 2005