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PERIFERIA: PARA ALÉM DA VIOLÊNCIA
Ano 3 - Nº 9
Maio de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Periferia... para além da criminalidade
Por: André Moysés Gaio e Márcia Miranda

Uma excessiva valorização da diferença e a nossa tendência a olhar o mundo de forma dicotômica nos impedem de enxergar no centro e na periferia as mesmas pequenas misérias humanas, os encontros e desencontros na busca  pela realização da necessidade e da liberdade, a busca pelo reconhecimento e por padrões de interação cívicos.

O termo periferia foi criado na década de 1940, tendo como marco o Estado nacional e foi utilizado para compreender os diferentes papéis desempenhados na economia capitalista pelos países do centro e da periferia do capitalismo. Mais de 50 anos após a sua criação, foi introduzido outro termo, semiperiferia, para dar conta de situações peculiares em que certos países pareciam fugir de seu destino como periferia, mas ainda não conseguiam atingir os padrões de riqueza e segurança social dos seus cidadãos característicos dos países centrais.

A utilização do termo periferia para caracterizar situações que se aproximavam daquelas que inspiraram a criação do termo também já tem alguma história e a literatura sociológica e econômica cansou de repetir a característica dualista da economia brasileira. A mesma dicotomia se repetiu quando a análise recortava o espaço dos municípios. Sob diferentes denominações, centro e subúrbio, asfalto e morro, centro e periferia, entre outros, o espaço urbano parecia encontrar uma leitura coerente da existência de uma “cidade partida” entre cidadãos de diferentes padrões de renda e consumo que geravam diferenças irredutíveis entre os mesmos: subculturas , padrões de civilidade , comportamento político, organização espacial, relações com o poder público etc.

A periferia era pensada como o espaço da negatividade e qualquer positividade encontrada era vista como produto de uma romantização da miséria; todavia, especialmente nos últimos vinte anos, uma visão que privilegia a esfera da produção cultural, tem insistido no avanço da periferia sobre o centro, na incorporação, pelo centro, da produção cultural produzida na periferia. As dimensões desse avanço sobre o centro ainda não podem ser dimensionadas.
Supondo que existe um mesmo padrão para definirmos periferia, o que, de fato, não existe, o discurso sobre a produção de uma nova identidade através do lazer e da cultura, que inclui música e esporte, fundamentalmente, parece o único que encontra positividade na periferia. A cultura da periferia permitiria construir padrões de interação cívicos, além de criar recursos de poder para seus moradores.
A pesquisa, observação e estudos nas comunidades periféricas permitiriam uma percepção de que, para além da criminalidade, encontra-se um processo de expressão e interação social que faz de uma esfera heterogênea, a possibilidade de reconhecimento por categorias universais: o esporte e cultura popular vividos enquanto atividades de lazer. 

O aspecto lazer a que esta discussão se refere, influenciando a realidade social do jovem e sendo por ela influenciado, é um espaço onde a experiência humana pode e é revivida. O tempo livre das comunidades periféricas brasileiras que investem no lazer seria preenchido por atividades como a capoeira , samba, futebol , Afoxé , rádio comunitária, e Hip-Hop . Nas ruas, nas praças, nos quintais, quadras, salas ou galpões dos bairros de periferia, esta população construiria uma cultura com mais autonomia, onde nos raps e nas rádios comunitárias ousam dizer o que pensam, envolvendo outros interlocutores que se identificam com o conteúdo das falas. A arte e o esporte dariam visibilidade ao indivíduo e isto representa para ele sair do anonimato e ocupar na sociedade um lugar e reconhecimento legítimos.

A produção de descontração, divertimento, prazer, busca por adrenalina típica destas atividades, não se desvincularia do caráter social nelas também muito presente. Os ídolos do esporte, assim como capoeiristas, sambistas, e integrantes da cultura Hip-Hop em suas comunidades gozam de status social e um sucesso em seu meio, consideráveis. Estes artistas esperam a cada exibição, ou contato com seu público, elogios; e assim poderiam medir a “solidez de sua situação”.

Nestas atividades, se reproduzem aspectos do cotidiano com as representações sociais e limites elaborados pelas regras de cada atividade. Não haveria discriminação social nem racial, a exemplo os praticantes de capoeira: querem “jogar capoeira” com quem é hábil e tem domínio das técnicas e movimentos e não com quem consome bens de alto valor financeiro ou pertence a um grupo racial privilegiado. No rap, considerado “a música da verdade” se discutiriam as formas de autoritarismo, de racismo, de repressão, de violência, de vida e de liberdade – conforme a “verdade” do local onde sua prática acontece. Todas as formas de lazer aqui descritas seriam atividades que expressariam o coletivo e que, no entanto, não impediriam o aparecimento de investimentos individuais que marcariam o indivíduo por uma identificação positiva perante a sociedade. O indivíduo, através de tais atividades, conquistaria reconhecimento e valorização social independente da raça, classe social ou crença religiosa e se submete a circunstâncias que seriam universais – válidas para todos os indivíduos participantes daquele meio, que fariam suas escolhas pela participação de forma voluntária. As atividades de lazer praticadas pela periferia em seu tempo livre se confundiriam com a própria comunidade exprimindo-se por meio de relações, valores, ideologias, regras, espontaneidade, conflitos...  
Torna-se o lazer, dentro desta perspectiva, um investimento não só muito presente, como fundamental nos bairros de classe popular. As atividades recreativas, segundo tal perspectiva, são entendidas como vivência  do tempo e não do trabalho. A partir de iniciativa muitas vezes dos próprios moradores, de seus investimentos e credibilidade na reação social através do movimento artístico e cultural, aconteceria nos bairros periféricos a socialização e produção no tempo livre.

O que tal perspectiva enfatiza , no entanto, não é o fato isolado de se ocupar, mas proporcionar, pela via do lazer, uma socialização harmoniosa e não criminosa, representada por um novo modelo de aprendizagem; e, o que tornaria isto possível, seria a capacidade de se ocupar associando-se aos grupos e neles formando vínculos. As atividades de lazer aqui citadas são atividades coletivas que, contando com o nexo jovem – atividade - grupo, é capaz de uma ação ampliada que extrapola o “ocupar somente”. O esporte enquanto tal, proporcionaria uma forte experiência de legitimidade e acatamento às leis. O aprendizado destas atividades seria escolhido pelos iniciantes que absorvem a idéia de respeito às normas, considerando, em outra expressão social, a inclinação de ter êxito sem o respeito aos limites ou regras estabelecidas, como atitudes contrárias ao caráter esportivo.
O que se espera, segundo tal visão, da atuação pela via do lazer, é uma extensão desta construção pelo jovem para a coletividade no campo social, tanto no que tange a consolidação dos vínculos e capacidade de estabelecê-los, quanto nos aspectos socializantes que as atividades envolvem. Há de se considerar, pois, que para se compreender a escolha e vinculação por uma determinada atividade de lazer há de se ter referência à totalidade na qual está inserida. Isto justificaria as diferenças no investimento de atividades entre as várias periferias, que acolhem atividades que se identificam com seu cotidiano e universo cultural.

A periferia exprimiria em seu cotidiano a possibilidade de jovens expostos à situação de pobreza, risco social e vulnerabilidade, contextualizar sua reação social, desenvolvendo-se na direção de referências positivas através de atividades de lazer e esporte praticadas no Brasil. O trabalho coletivo que envolve estas atividades compreenderia uma rica fonte de desenvolvimento, agregando variedades de experiências que contribuem para o desenvolvimento social do jovem.

Os laços estabelecidos pelo jovem não se restringiriam apenas à atividade, mas se estenderiam ao grupo participante, reproduzindo e reconstruindo nele relações familiares. É a partir deste processo que seria possível levar a qualidade das relações estabelecidas no lazer para a comunidade e, seqüencialmente para a sociedade; bem como entender a periferia a partir de novas formas de participação social: atléticas... artísticas... e para além da criminalidade.

Conclusão

Em quantas periferias esta perspectiva, ou seja, do lazer e da cultura como recursos para prover identidade e reconhecimento, padrões de interação e participação social é verossímil? Não sabemos ainda, mas temos certeza de que em muitos casos ela se apóia em circunstâncias reais, embora não saibamos ainda sua extensão e profundidade,além de sua verdadeira capacidade de se projetar no centro das cidades. Também não sabemos medir certos problemas inerentes a essa nova configuração cultural da periferia. Por exemplo: em que medida aqueles que não são jovens são excluídos, se apenas o lazer e a produção cultural permitem à juventude da periferia reinventar suas trajetórias, em que medida as novas manifestações culturais e os efeitos que produzem se constituem novidades etc.

Moysés Gaio, Professor da Graduação e Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e Márcia Miranda,  Psicóloga e mestranda em Ciências Sociais pela UFJF.