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CONTEXTO QUILOMBOLA
Ano 3 - Nº 11
Julho de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Consulta Nacional Quilombola: sujeita a pancadas de chuvas e trovoadas1 *
Por: Rosa Peralta

A Consulta Nacional Quilombola foi, sem dúvida, um dos pontos mais altos da conjuntura quilombola dos últimos anos. Foi um acontecimento histórico, de muita emoção, que trouxe grandes surpresas para todos os presentes: quilombolas, assessorias e, sobretudo, para o governo. Mas para entender melhor o que aconteceu entre os dias 15 e 17 de abril de 2008 devemos voltar um pouco no tempo e tratar de fatos que os antecederam, assim como das expectativas e ânimos que acometiam os atores envolvidos.

Nuvens ameaçadoras anunciam tempestade

Desde o fim de 2007, o clima não estava dos mais favoráveis para as comunidades quilombolas. A campanha antiquilombola, orquestrada pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira e abraçada pela mídia (Ver Dossiê Imprensa Anti-Quilombola), vinha surtindo efeito. Prova disso foi a aprovação pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, no dia 19 de dezembro, do Projeto de Decreto Legislativo 44, do Deputado Federal Valdir Collato (PMDB/SC), que propõe nada mais nada menos que a sustação do Decreto 4.887/03 e de todos os processos administrativos vinculados a ele. Com a aprovação pela Comissão de Agricultura, o PDL 44 inevitavelmente foi encaminhado para apreciação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), último estágio antes de ser levado para votação em plenário da Câmara de Deputados2. Dias antes da Consulta em abril, soou novo sinal de alerta. O relator da CCJC, Deputado Gonzaga Patriota (PSB/PE), deu parecer favorável ao PDL. Estranhamente, ainda que tenha sido um alívio, o próprio relator pediu para rever o parecer, interrompendo, por ora, o processo de tramitação. Paralelamente, surgiram rumores de que a Ação Direta de Inconsticionalidade (Adin), ajuizada pelo Partido dos Democratas (ex-PFL) em 2004, estava para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), embora até hoje não tenha entrado na pauta de votação.

O Governo Federal, por sua vez, além de elaborar uma minuta alterando a Instrução Normativa N. 20 do Incra – repleta de novos entraves para a efetivação da titulação de territórios tradicionais e sem contar com a participação quilombola –, tentou emplacá-la simulando uma consulta em dezembro de 2007, aproveitando-se da presença de representantes de comunidades no Seminário Quilombola de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, em Brasília, promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Segundo depoimentos de algumas lideranças, os cerca de 300 quilombolas convenceram o motorista do ônibus que os levava para a tal consulta para que ele se dirigisse à Câmara dos Deputados, onde se reuniram no Gabinete do Dep. Olívio Dutra para elaborar uma carta de repúdio, entregue aos deputados aliados do movimento e para os Ministérios.

Entretanto, a tentativa frustrada do governo de legitimar a consulta para obter a aprovação quilombola de sua minuta acabou por gerar resultados interessantes. De um lado, aguçou os ânimos quilombolas, uma vez que aqueles presentes à manifestação em Brasília de uma forma ou outra relataram o fato em suas comunidades, gerando apreensão e indignação sobre as mudanças da IN/Incra mesmo em quem não vinha acompanhando os principais lances desse processo (esse sentimento de confusão e indignação foi expresso por diversas lideranças em conversas durante a noite que antecedeu a Consulta de abril de 2007). A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), instância do movimento que assumiu a interlocução com o governo, teve a chance que precisava para ganhar tempo e neutralizar um pouco os ventos fortes e contrários. Apoiada por uma rede de entidades assessoras, a Conaq divulgou, ainda no final do ano, uma Nota Pública rejeitando as alterações contidas na minuta apresentada pelo Grupo de Trabalho Interministerial encabeçado pela Advocacia Geral da União (AGU). Por fim, ao tentar forjar uma consulta, a investida do governo acabou consagrando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (C169 OIT) como instrumento aplicável à promoção, proteção e garantia dos direitos das comunidades remanescentes de quilombo, reafirmando com isso não só o direito à consulta, mas também à auto-identificação – alvo principal do movimento antiquilombola.

Assim, ainda que não estivesse disposto a recuar de sua determinação de alterar a IN 20 do Incra, o governo não teve outra alternativa a não ser esperar o ano terminar e abrir espaço para que a Conaq apresentasse uma proposta de para a realização da consulta nos moldes da C169 OIT, fato inédito no que se refere à afirmação de direitos de comunidades tradicionais no Brasil.

Diante das nuvens ameaçadoras que pairavam sobre o Decreto 4.887 – a iminência (pelo menos era o que o governo queria fazer crer) da aprovação do PDL 44 e da votação da Adin pelo STF –, a coordenação da Conaq decidiu rever sua posição de rejeitar quaisquer mudanças na IN e aceitou o desafio de elaborar uma proposta para a condução do processo de consulta.

Em meados de fevereiro, a Conaq encaminhou um documento em que sugeria etapas não só de consulta, mas também de construção coletiva entre quilombolas e governo da nova IN do Incra. O documento previa a criação de um GT, formado por representantes quilombolas e do governo, responsável pela coordenação do processo. A seguir propunha a realização de um Seminário Nacional sobre os conflitos, entraves e perspectivas para a regularização fundiária, com a participação de organizações quilombolas, órgãos de governo, entidades parceiras e convidadas. Após o seminário, o GT de coordenação elaboraria um documento base, que seria socializado e discutido em reuniões das coordenações nos estados. Haveria duas plenárias regionais para debater a pré-proposta: norte/nordeste e sul/sudeste/centro-oeste. O GT então se reuniria para sistematizar as contribuições das plenárias e apresentar um documento consensuado. Finalmente, a proposta da Conaq previa a realização de duas audiências públicas nacionais, uma contando apenas com organizações quilombolas e do governo, e outra aberta a quilombolas, governo e entidades parceiras e convidadas.

Com essa proposta, a Conaq acreditava ter apresentado uma metodologia transparente e participativa de processo de consulta, ainda que talvez tenha sido muito otimista ao desconsiderar a determinação do governo em manter certos pontos da minuta – mesmo que já publicamente rechaçados pelo movimento e pela rede de assessoria e apoio em dezembro de 2007 – e o risco de ter as audiências públicas sendo lotadas por opositores, tal como aconteceu em estados como o Espírito Santo, em setembro de 20073.

A resposta do governo ao documento não veio rapidamente, mas foi implacável (Leia: Declarações do governo federal apontam para risco de retrocesso na garantia dos direitos quilombolas). No dia 14 de março, em sua página de internet, a AGU divulgou que queria, “de uma vez por todas”, resolver a questão da IN, cujo texto deveria estar consolidado até o dia 10 de abril. Para tanto, acatava parcialmente a metodologia de consulta apresentada pela Conaq, comprometendo-se a realizar apenas dois seminários, quando os quilombolas teriam a oportunidade de colocar suas propostas, ou seja, simplesmente opinar, sobre a minuta do governo (Leia: Grupo de trabalho vai realizar seminários regionais para definir a questão de terras Quilombolas). Os encontros seriam nos dias 1 e 2 de abril, com as comunidades das regiões Sul e Sudeste, e nos dias 3 e 4, com as do Centro-oeste, Norte e Nordeste. Esse curto espaço de tempo impossibilitava qualquer tentativa de articulação ou mobilização, uma vez que seria muito difícil para as associações quilombolas obterem informações consistentes para poder repassá-las às respectivas comunidades e qualificar suas contribuições para a consulta. Além disso, se pensarmos no número de comunidades só no estado do Pará, a proposta do governo soava, no mínimo, surrealista.

Enquanto isso, a grande imprensa se dedicou a divulgar que os quilombolas é que vinham adiando a definição de uma nova IN, algo, segundo os jornalistas, inevitável e inadiável. Difundiram ainda uma suposta paralisação por parte do governo de todos os processos de regularização fundiária, justamente em função das aberrações que tal legislação viria gerando (Leia: AGU intervém e concessão de terras para quilombolas é suspensa).

As entidades assessoras e de apoio novamente convocaram a sociedade civil a se manifestar contra a atitude do governo de desrespeitar o direito quilombola a ter um processo de consulta em condições adequadas e legítimas, que permitisse a ampla discussão e participação do movimento e da sociedade civil, conforme previsto na C169 OIT (Leia: Quilombolas e entidades de apoio se unem em defesa dos direitos quilombolas).

No dia 24 de março, a coordenação da Conaq se reuniu com representantes do governo para negociar e chegou-se a um consenso de que o melhor seria realizar um grande encontro, de três dias consecutivos (15 a 17 de abril), reunindo 300 quilombolas indicados pelas associações estaduais. A Conaq acreditava que com um único evento com a presença das lideranças seria mais fácil socializar as informações e consensuar as sugestões, que depois seriam sistematizadas pelo grupo formado por seis representantes quilombolas e seis do governo, o que supostamente garantia a eqüidade de forças.

Apesar das tensões, a Conaq continuava confiante em relação às intenções do Governo Lula. Os encontros com o novo Ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Edson Santos, indicavam que os espaços de interlocução entre o movimento e o governo tendiam a se ampliar. No dia 4 de março, representantes da Conaq e da Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj) foram recebidos pelo Ministro e saíram satisfeitos da reunião. Entre outras coisas, Edson Santos afirmara a manutenção de Givânia Maria Silva, liderança quilombola da comunidade de Conceição das Crioulas (PE) reconhecida em âmbito nacional, no cargo de Subsecretária da Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais da Seppir (Subcom/Seppir). Além disso, citou como prioridade resolver os conflitos envolvendo as comunidades da Ilha da Marambaia (RJ) e de Alcântara (MA). Mencionou que em breve visitaria as duas áreas e que fazia muito gosto se fosse acompanhado por representantes do movimento quilombola nacional ou estadual.

Mas não foi o que ocorreu. No dia 24 de março, mesmo dia em que se reuniu com a Conaq para definir o formato da Consulta, o Ministro foi a Alcântara (MA) para uma reunião com representantes quilombolas da comunidade de Mamuna, acompanhado de grande aparato de segurança, desproporcional para a natureza do encontro. As famílias, que nesse momento viviam um clima bastante tenso e há um mês faziam barricadas para impedir o avanço dos trabalhos da empresa bilateral brasileira-ucraniana Alcântara Ciclone Space, iniciados em suas terras sem aviso prévio (ver mais notícias sobre a visita do Ministro)4, ouviram, perplexas, que o governo tinha interesse em resolver a demanda quilombola, mas que a Seppir também prezava pelo avanço científico do País.

Um mês depois, no dia 3 de abril, nova decepção: Givânia Maria Silva é exonerada de seu cargo na Seppir sem nenhuma justificativa. A Conaq divulga nota repudiando a exoneração, mas declara que pretende manter o diálogo com o governo (Leia: Conaq divulga carta de repúdio contra exoneração de subsecretária da Seppir). Cumpre ressaltar que o trabalho de organização da Consulta ficou bastante comprometido. Os quilombolas que estavam em Brasília, mais precisamente numa das salas da Seppir, enfrentaram muitas dificuldades com a saída de Givânia para organizar as convocações – o que consistia em elaborar a lista de representantes, contatá-los, prever gastos e cronograma de passagens (aéreas e terrestres), hospedagem, alimentação, etc.

Já no dia 7 de abril, o Ministro Edson Santos chegava à Ilha da Marambaia (RJ) para uma reunião com a comunidade. Antes, sobrevoou a ilha em um dos helicópteros da Marinha, chegando atrasado para a reunião com os quilombolas, que foram avisados apenas no dia anterior por um oficial militar, o que contribuiu para o pequeno número de representantes quilombolas presentes. Nessa visita, o ministro elevou o tom. Na presença militar, declarou que não havia como titular a área reivindicada pela comunidade, que seriam concedidos apenas lotes individuais para moradia. Questionou o porquê de a comunidade se apegar às matas, pedras e outros recursos naturais. Disse ainda mais: que os quilombolas não deveriam se “prender às tradições” e ao conceito antigo de quilombo para ater-se mais a resolver o presente (ver notas da comunidade e da Conaq sobre a visita do Ministro).

Esses últimos três acontecimentos, dias antes do evento em Brasília, partindo da instância do governo que deveria ter mais compromisso com a causa quilombola, reforçavam a previsão de mau tempo para a Consulta.


Rosa Peralta, assistente do programa Egbé Territórios Negros de KOINONIA, participou como assessora da Conaq na Consulta Nacional Quilombola.

* A segunda parte do artigo e seus anexos estão disponíveis abaixo para download.

1 Este texto contou com a colaboração de Nilton Carlos Alves, jovem quilombola da Ilha da Marambaia (RJ), Cíntia Beatriz Müller, antropóloga, e Gilsely Barreto Santana, advogada, ambas assessoras presentes à Consulta.
2 Vale ressaltar que em outubro de 2007 a Comissão de Direitos Humanos e Minorias rejeitou o PDL 44, que também motivou a produção de diversos pareceres contrários elaborados por organizações da sociedade civil, como KOINONIA, Centro de Cultura Negra do Maranhão e Justiça Global, bem como do Procurador Regional da República, Walter Claudius Rothenburg. Cada um desses pareceres aponta diversas fragilidades do projeto do Deputado, que mesmo assim segue tramitando rumo à votação no Congresso, o que demonstra que quando se trata de aprovar um Decreto Legislativo o que conta é a pressão política. Nesse sentido, o argumento veiculado pelo governo de que o Decreto 4.887 está ameaçado por suas fragilidades e pelas deficiências da normativa que dele advém não se sustenta.
3 Em setembro de 2007, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados organizou uma audiência pública com o objetivo de discutir e buscar soluções para a grave situação das comunidades quilombolas da região do Sapê do Norte (ES). Entretanto, segundo depoimentos de alguns participantes, a audiência ficou repleta de opositores dos direitos quilombolas, em especial de membros ligados ao Movimento Paz no Campo – cuja campanha pública anti-quilombola tem se materializado por meio da publicação de jornais, livros, sites, etc. –, o que gerou constrangimento aos quilombolas e seus apoiadores presentes.
4 Na página do Observatório Quilombola, é possível encontrar mais notícias sobre Alcântara, assim como sobre outras comunidades quilombolas do País. Para tanto, basta ir à seção de Pesquisa, onde se pode fazer uma busca por palavra-chave, data, estado ou nome de comunidade.




Anexo:
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