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CONTEXTO QUILOMBOLA
Ano 3 - Nº 11
Julho de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Crítica
 
Sobre a resistência: buscas e contradições
Por: Ivone Gebara

Os quilombolas no Brasil são um exemplo histórico de resistência contra a dominação branca dos grandes senhores. São, ainda hoje, uma referência para muitas lutas; não apenas da comunidade negra brasileira, mas de muitos movimentos sociais que se inspiraram de seu exemplo de resistência.

São eles que, nesse momento, me inspiram a pensar numa petição presente na oração do Pai Nosso que segundo a Tradição evangélica nos foi ensinada por Jesus. “Livrai-nos do mal” ou ajuda-nos a resistir ao mal. De que mal somos convidados a resistir ou de que mal pedimos para sermos livrados? De que mal os quilombolas queriam ser livrados? E de que mal os outros, os que os escravizavam queriam ser livrados?

A história passada e a história presente narram fatos desde perspectivas diversas. Contam feitos de heróis e de perseguidores impiedosos e sanguinários. Contam de sofrimentos sem fim. Entretanto, sabemos que o mistério do mal é bem maior do que aquilo que sabemos dele. Entranhado em nós, fazendo corpo em nosso corpo, mentindo em nossa mente, matando com palavras, ações e omissões, o mistério do mal segue nos desafiando.
Na verdade, o mal é plural. Há muitos males de que temos que nos livrar em nossa vida cotidiana. Cada um de nós conhece sua dor, embora conheça menos a dor que provoca nos outros. O enraizamento no eu é tão forte que é mais fácil acusar o outro e inocentar-se a si mesmo. É mais fácil desculpar-se do que se aproximar do sofrimento alheio e aliviá-lo.

Para além do mal da doença que assola o corpo e tem origens diversificadas, há outros males que, vividos no corpo, aparecem como provocados por outros seres semelhantes a nós. Os outros se tornam a origem de nosso mal na medida em que não nos reconhecem como semelhantes com direitos e deveres. Esses são os chamados males sociais. É nessa linha que se pode dizer que um dos males pessoais e coletivos mais perniciosos é o mal de não enxergar a condição do outro, a dor alheia, o sofrimento que vive, sobretudo quando este outro é diferente de nós. Muitas vezes é a nossa ideologia ou nosso egoísmo ou são as nossas crenças culturais que tornam o outro indigno, inimigo, inferior, ignorante. Acentuamos as hierarquias como se estas fossem originadas da vontade de forças superiores a nós. Aceitamos castas e elites como se fosse algo natural. Ideologizamos a natureza para servir aos nossos interesses.

No fundo para enxergar a dor alheia temos não apenas de enxergar o sofrimento dos que estão próximos de nós, mas os sofrimentos daqueles de quem nós nos fazemos próximos por decisão própria. E aí está a grande dificuldade e o desafio. À força de querermos defender só a nossa pele e os nossos interesses tornamo-nos distantes dos outros, dos que não são de nossa família, de nosso sexo, de nossa religião, de nossa classe, de nossa cor, de nossa cultura, de nossa idade.

Por isso, desde o mais profundo de nós mesmos temos que repetir: livremo-nos do mal da insensibilidade à dor alheia! É sobre esse mal que estou escrevendo. É um mal que nos acomete com muita freqüência e quase se torna algo habitual em nossa vida. E hoje, esse mal em nós é reforçado não só pelos limites de nosso ser, mas também pelos limites impostos pela organização política e econômica na qual vivemos. Temos a impressão de que a chamada sociedade globalizada é um gigante que muitas vezes se deita sobre nossos corpos e nos impede qualquer movimento diferente do permitido. Às vezes, mal dá para respirar, pois o gigante toma quase todo o espaço e chega a impedir que o ar entre livremente em nossas narinas. Mas, na realidade quanto mais nos movermos mesmo com dificuldade mais o gigante se sentirá incomodado e provavelmente mudará de posição e talvez se enfraqueça. 

Na década de 1980 era comum dizermos que o trabalho dos movimentos populares e das comunidades era como de formigas revolvendo a terra e possibilitando a mudança e o crescimento da vida. Hoje, acredito que ainda há algo de verdade nessa analogia. Ela nos ajuda a perceber que há uma causa comum e a causa comum é a causa da própria humanidade, a causa do planeta no qual vivemos e do qual somos corpo. A causa comum é que somos uma humanidade comum embora ricamente diversificada e que, para que uns vivam todos têm que viver.

Se cada um abraçar apenas a causa de sua sobrevivência, de seus interesses pereceremos. Se cada um apenas se preocupar com suas próprias dores nos tornamos insensíveis às dores alheias. E são justamente estas dores alheias que nos levam a sair de nosso estreito mundo, de nossos limitados interesses e a acolher o pluralismo da vida, das dores e sua impressionante complexidade. A manutenção desse pluralismo interessa a todos e é responsabilidade de todos.
A finitude inerente à nossa própria existência é a condição que nos leva a perceber a interdependência entre nós, embora possa também levar-nos a um fechamento egocêntrico.  Equivocadamente muitos pensam que se salvarem apenas a sua pele poderão subsistir e gozar de dias felizes. E deixam assim a força do “homem lobo para o homem” conduzir seus comportamentos e seus afetos. Tornam os outros, aqueles que os molestam com suas reivindicações justas, inimigos e fazem de sua vida um verdadeiro inferno. Perseguem-nos e os impedem de ascender a uma vida digna e respeitosa.

Livremo-nos do mal de sermos incapazes de enxergar para além de nós mesmos, de nossos interesses de classe, de partido, de casta ou de religião.
Aprender a resistir ao mal da egolatria ou do classismo ou de outras formas hierárquicas de convivência é um caminho de abertura em vista da dignidade à qual todos nós temos direito. O sabor da resistência e sua possível vitória são sempre acompanhados pelas contradições que fazem parte de nossa humanidade. Ninguém de nós é imune das contradições de fazer de nosso semelhante um inimigo, de desejar sua morte de diferentes formas. E quanto mais o outro se torna nosso inimigo mais nos distanciamos dele e instauramos um abismo em nossa própria humanidade. Somos criadores de abismos entre etnias, entre classes, entre gêneros, entre culturas e entre religiões. Fugimos uns dos outros temendo perder a própria vida. E não apenas tememos perder a vida, mas a história nos confirma que de fato a perdemos nos combates e nas estúpidas guerras. E no meio destas tantas perdições, ao longe, ouvimos uma voz que vem da antiga tradição cristã: “quem não perder a sua vida por amor não poderá guardá-la”. Amor que significa direito de vida aos que estão aí, pisando o mesmo chão, respirando o mesmo ar, bebendo da mesma água, plantando e colhendo da mesma terra. Perder sua vida significa no texto bíblico perder algo que restringe a vida, que a diminui e a reduz a mera sobrevivência. Perder sua vida individualista para ganhar em qualidade de vida para todos.

Haverá caminhos de reconciliação do homem com sua humanidade plural?

Inventamos deuses múltiplos e eles brigaram entre si. Inventamos o Deus único e ele não resolveu a questão. Partimos para o ateísmo e este acentuou nossas rixas e nossa violência. Adoramos a razão científica e esta produziu armas para nossa própria destruição? Que nos resta fazer? Onde iremos buscar novas forças?

Ousemos sair de nossas tocas. Olhar as crianças negras, as brancas, as amarelas, as misturadas e perceber nelas a extraordinária beleza da diversidade de um ramalhete de flores do campo. Uma única cor leva à monotonia. Uma única nota leva ao extremo cansaço. Uma só língua cria o Império dominador. Uma só ordem cria a desordem.

Ousemos sair de nossas tocas e aprender a ver, a ouvir, a degustar, a sentir o mundo para além de nosso estreito mundo. E ao fazer isso querer que este mundo tão diverso tenha vida em abundância. Quem sabe haveria aí uma porta escondida que poderá abrir-se e permitir que experimentemos o gozo escondido de pertencermos a uma humanidade comum? Quem sabe aprenderemos a descobrir mais os encantos da diferença do que a monotonia aterradora do mesmo? Quem sabe...  Quem sabe...

Ivone Gebara