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INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Ano 3 - Nº 13
Dezembro de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
A intolerância religiosa e a cosmovisão africana de mundo
Por: Dolores Lima

A África Yoruba  detém uma cultura das mais difundidas nas Américas e especial no Brasil. Percebe em seu corpo teórico oral o entendimento da cosmovisão de seu povo, que julgo importante para a reflexão necessária e conseqüente para o tema da intolerância religiosa.
Segundo Oloye Odearofa o estudo do cosmo nos mostra claramente a inter-relação com a diversidade cultural, não somente africana, como também com todas as culturas que acreditam nos elementos da natureza como parte do Criador.

O artigo de Odearofa apresentado no IX Congresso Mundial de Tradição Cultural Yoruba (UERJ 2005), consideraas afirmativas científicas que vêm sendo publicadas com freqüência, como por exemplo: “O surgimento do Mundo a partir do Big Bang”(Edwin Hubble/1929); “O homem surgiu da argila”; “A humanidade surge por volta de cem milhões (100.000.000) de anos dentro do continente africano e começa a expandir-se para outros continentes acerca de cinqüenta milhões (50.000.000) de anos” por força de variações climáticas. A partir da descoberta do Homo Sapiens Idaltu, há correlação feita com o que vem sendo dito pelo povo Yorubá, há muitos e muitos anos, assim relatado por DARAMOLA:

Elédùmarè/Senhor do Universo, “saturado” de tanta energia emanada por ele mesmo, “explode” e se subdivide nos Osa/Divindades: Omi/Água; Ilè/Terra; Òfúrufú/Ar; Iná/Fogo e seus desdobramentos (Odò/Rio, Òkun/Mar, Òsa/Lagoa, Òjo/Chuva, Igbó/Floresta, Aféfe/Vento, Ara/Raio, dentre outros). Disposto a criar o Aye/Mundo Físico – vida apresentou às suas divindades duas cabaças, uma contendo uma massa negra e outra uma massa branca (hoje representada pelo Èko ou Akasa/mingau feito de fubá de milho branco), além de uma árvore denominada árvore da vida. Propõe o desafio à divindade que conseguisse colocar uma cabaça em cada mão e a árvore na cabeça, iria criar o aye/mundo físico. Como nenhum dos Osa conseguiu realizar o intento, Elédùmarè, então, criou uma divindade, representação dele mesmo, ou seja, Orun+mi+ela = Universo+minha+ação => Orunmilá = Minha ação do Universo. Orunmilá tendo conseguido realizar a tarefa, recebeu o saco da existência, além das cabaças e da árvore. Atirou na imensidão do Universo a terra contida no saco da existência. Enviou um camaleão - hoje símbolo de Elédùmarè e Orunmilá - para pisar na terra, comprovando a sua firmeza, e uma galinha para espalhar a terra (ilè nfé / terra que se espalha, origem do nome da cidade de Ilé Ifè – berço da civilização yorubá). Já na terra plantou a árvore colocou as duas cabaças questionando Elédùmarè quanto aos próximos procedimentos para criação do aye. Foi então orientado a juntar o conteúdo das duas cabaças e no dia seguinte, antes do sol nascer, deveria destapá-la, nascendo então Esu Igbá Keta - a terceira cabaça. Elédùmarè orientou-o, ainda, que sobre Esu deveria jogar água todos os dias antes do sol nascer para que crescesse e se multiplicasse. Atitude hoje reproduzida no processo de iniciação.

Assim iniciou-se o ciclo de criação e reprodução da humanidade. Cabendo a Orunmilá, o testemunho do destino, o controle de todas as vidas humanas no aye. Aos Osa que, como parte integrante de Elédùmarè, continuaram juntos dele, coube a tarefa de escolher a cabeça daqueles que nasciam. Logo, Orí/cabeça + Osa/divindade = Orisa. Esu, por ter sido o primeiro da existência genérica que constitui cada um de nós (argila), teve a felicidade de ter a sua cabeça escolhida por todas as divindades da natureza, recebendo o título de Enugbarijo – o boca coletiva.

Ao seu tempo, famílias, aldeias, vilarejos, cidades e demais grupos étnicos foram sendo formados, e espalhados por todo aye, até que um dia, Orunmilá solicitou que os Orixás viessem até o aye para lhe ajudar. Na solução do problema, Elédùmarè verificou em cada grupo étnico constituído, àquela pessoa que mais se destacara como Onílè/Senhor da Terra (senhor de muitos filhos e de vasto território) ou como Ìdílé/Importante personalidade da família (aquele que apesar de não ter filhos ou terras, era considerado pela família como benfeitor) a fim de dar-lhes o seu Ìpònrí (força vital) fazendo com que ele representasse o orixá que havia escolhido a sua cabeça. Assim citamos, por exemplo, a força e representação do fogo, atribuída à: Sango na cidade de Oyo; Aira em Save; Oramfé em Ifè; “Zaze em Angola”; “Elemusat na cultura Omoloko do povo Kathókee”; “Hevioso no Dahome”; etc. Estes Esa/Ancestrais foram, após a morte, divinizados pelo seu povo e hoje são reconhecidos como a representação viva dos orixás.

Em cada canto desse planeta, seja na África negra ou não, em qualquer cultura que reconheça a força e a importância dos elementos da natureza apontando uma divindade, existe a ação e a força vital de Elédùmarè. Por isso para a cosmovisão africana Yoruba, meio ambiente é espaço sagrado entendendo cada Ser como parte de si mesmo, devendo assim compreendê-lo acima de tudo.

                Considerando seu conhecimento Teológico, conhecimento adquirido a partir da fé teológica, fruto da revelação da divindade com a finalidade de provar a existência do Criador concebidos mediante inspiração Divina, devendo por isso ser realmente aceitos como verdades absolutas e incontestáveis. Para o Povo Yoruba a fé também não é cega, baseia-se em experiências espirituais, históricas, arqueológicas e coletivas que lhes dá sustentação. Assim sendo, a abordagem teológica formulada pelo Oloye com base em seus estudos e na sua relação com o Divino na verdade estabelece aqui um contraponto, mas não propõe uma visão hegemônica. Considera que cada povo terá sua visão de mundo, não lhes sendo facultado o direito de praticar atos que levem à hegemonia, ao estabelecimento de supremacia étnica ou cultural.

Aspectos paradoxais da intolerância religiosa

De acordo com Wikpedia:
Intolerância religiosa é um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar as diferenças ou crenças religiosas de terceiros. Poderá ter origem nas próprias crenças religiosas de alguém ou ser motivada pela intolerância contra as crenças e práticas religiosas de outrem. A intolerância religiosa pode resultar em perseguição religiosa e ambas têm sido comuns através da história. A maioria dos grupos religiosos já passou por tal situação numa época ou noutra.

A perseguição religiosa atingiu níveis nunca vistos antes na História durante o século XX. Contudo, anterior a isso, apesar de não ter característica claras de perseguição religiosa expressamente estabelecida, a escravidão estabelecia parâmetros de inferioridade aos negros pela sua cor de pele e por adotar práticas religiosas ditas pagãs conforme a Bula Romano Pontifex, de 08 de janeiro de 1454, do Papa Nicolau V.

“Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto filho infante d. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe gloriosíssimo de Deus, reduzir  à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como também quaisquer outros infiéis. Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com a devida ponderação, concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, sua terra e bens, a todos reduzir a servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetum aos mesmos d.Afonso e seus sucessores, e ao Infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado [...].” (em Ribeiro, D., 1995, pp. 39.40)
Algumas das cruzadas desta forma orientadas nunca chegaram a atingir sua finalidade, contudo afirma a intenção e o estilo de gestão daquela época. De certo o Papa João Paulo II, num gesto sacerdotal, fez o pedido de desculpas em nome da instituição religiosa que representava, toda via isso não significou sensíveis avanços na redução dos danos causados por aquele ato.

Desrespeito às diferenças

"Pessoas diferentes chamam-no por diferentes nomes: para alguns, é Alá; para outros, Deus; outros, ainda, o chamam de Krishna, Shiva ou Brahman. É como a água no lago. Algumas pessoas a bebem em um local e chamam-na de jal (hindus). Outras, de uma região diferente, chamam-na de pani (muçulmanos). E há outros, de um terceiro lugar, que a conhecem por water (cristãos). Mas é uma só e sempre a mesma coisa." - Ramakrishna

Fator que corrobora com a intolerância é a visão auto-centrada que deturpa o real significado do fenômeno religioso para o grupo religioso que nele crê. Agravando este quadro, há ainda a busca da demonização destas diferenças, especialmente sobre a religiosidade de Matriz Africana, no Brasil, o Candomblé.

Candomblé, a ressignificação da Matriz Africana no Brasil
De acordo com Jesus (2003), a intolerância se avoluma contra a religião de matriz africana e seus desdobramentos no Brasil têm funcionado com principal fator de engendramento da ideologia de racismo na perpetuação de seus mecanismos de exclusão e marginalização social dos valores da cultura religiosa de matriz africana refletidos nos adeptos. A comosvisão africana continua sendo alvo do racismo cultural-religioso, exacerbando a afrotheofobia e se retroalimenta de forma cíclica e recorrente e sua manifestação é material e simbólica, ratificando continuadamente preconceitos, estigmas e estereótipos, os quais interferem fundamentalmente no processo de auto-conhecimento, auto-imagem e auto-estima dos afro-brasileiros.
O culto à ancestralidade, no continente de origem, é realizado coletivamente em espaço público comum ao grupo a que pratica. No Brasil, assim como em cada canto por onde a diáspora africana foi levada pela escravidão, seus aspectos foram modificados para proteger a memória dos ancestrais e de seus descendentes. O local de culto foi restrito a espaços reservados denominados casas de candomblé, hoje ressignificadas pelos adeptos como Comunidades Tradicionais de Terreiros de Matriz Africana no Brasil. Mesmo buscando a proteção de muros e portões não conseguiram evitar a perseguição e a invasão da polícia, legitimada pelo Estado na década de 60. A custa de sangue suor e lágrima, sob a guarda do matriarcado, não se perderam os valores da coletividade de reverência à ancestralidade, o respeito aos aspectos geracionais para a preservação da memória ancestral. Foi este grupo mais uma vez obrigado a renovar estratégias de resistência para continuar preservando os valores da Visão Cosmogônica de seus ancestres. A estratégia dos que pretendem a hegemonia é a anulação destes valores ancestrais e a ancoragem de uma imagem demonizada. Mas para o povo Yoruba não há religião no mundo que impeça o culto de seus ancestrais em sua casa com afirma o cântico abaixo.

Awa osoro n'ile wa o!
Awa osoro n'ile wa o!
Esin ka ope Oye
Esin ka ope Oye ka wa ma so oro
Awa osoro n'ile wa o!

O papel do Estado e das organizações religiosas
Visando conter e coibir a intolerância religiosa, vários países ao redor do mundo incluíram cláusulas nas suas constituições proibindo expressamente a promoção ou prática de certos atos de intolerância religiosa ou de favorecimento religioso dentro das suas fronteiras.
Diante do reconhecimento do Estado Laico, considerando todo arcabouço legal constituído pelo estado brasileiro, concordo com Martha Nussbaum, em seu artigo “O Céu de cada um”, que não bastam leis para garantir liberdade de credo em um país, visto que as leis não são capazes por si de desconstruir uma cultura de discriminação, demonização do diferente, da intolerância religiosa. As normas públicas são ineficazes na ausência de reforços educativos capazes de alterar a cultura da intolerância, mas os governos têm se esquecido de seu papel na garantia e na valorização do respeito à religião do outro.

Mesmo sendo o ecumenismo a busca da unidade entre o grupo restrito aos cristãos, surge uma visão mais ampliada que sustenta as relações do diálogo inter-religioso. O que a nós, líderes religiosos, cabe como contribuição para a diminuição do recrudescimento da intolerância religiosa e de racismo contemporâneo é atuarmos em nossas comunidades religiosas e em sua prática religiosa a negação do fundamentalismo e da afirmação de identidade egocentrada visando a hegemonia que abala a paz mundial, numa grande campanha pelo respeito às diferenças, assumida por todas as vertentes religiosas que acreditam no respeito à Liberdade Religiosa.

Dolores Lima, Iyakekere do Ase Idasile Ode, vice-presidente do CETRAB – Centro de Tradições Afro Brasileiras, Conselheira do Conselho Estadual de Direitos do Negro sendo membro da Comissão de Religião deste conselho, Membro do Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro,  Membro do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro, Membro da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa, Psicóloga, pesquisadora Assistente do LEPPA/HESFA/UFRJ pelo CNPq.

Refências bibliográficas

  • DARAMOLA O & JEJE, A. em Awon àsà ati Òrìsà ile Yorubá. Ìbàdàn, Onibon – Oje Press, 1975
  • JESUS, Jayro Pereira de, Terreiro e Cidadania: Um projeto de combate ao racismo cultural religioso afro e de implementação de ações sociais em comunidades-terreiro in: ões sociais em comunidades-terreiro in: Racismos Contemporâneos – Org. Ashoka  e Takano – Coleção Valores e Atitudes. Série volumes nº 1 – Não Discriminação.