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RELIGIÃO E SAÚDE
Ano 4 - Nº 16
Junho 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Religião e terapêutica na contemporaneidade: o caso do movimento nova era
Por: Fátima Regina Gomes Tavares

Os estudos sobre religião no Brasil tradicionalmente se concentraram na investigação do catolicismo - seja na dimensão institucional ou nas suas variantes “populares” - e nas religiões afrobrasileiras. Desde as últimas décadas do século passado podemos observar dois movimentos: primeiro, a diversificação do universo empírico da pesquisa e; segundo, o interesse pelas variantes “emocionais” da tradição cristã (notadamente o pentecostalismo e o catolicismo) e também de experiências emocionais sincréticas e não institucionalizadas. Pode-se dizer, assim, que vem ganhando espaço a investigação das novas formas da experiência religiosa que vêm produzindo imbricamentos até bem pouco tempo inusitados com outras modalidades da experiência, como é o caso da terapêutica.

Essas orientações parecem se pautar numa tendência mais geral observada na antropologia, que tem enfatizado a importância da religião na reconfiguração da dimensão emocional, com desdobramentos evidentes nas disposições corporais e sexuais. É verdade que, como indicam as abordagens de Foucault e Bourdieu, a regulação dos corpos sempre teve destaque nas religiosidades éticas, mas transformações importantes têm sido observadas em tradições religiosas que sempre se tensionaram com as esferas emocionais da vida desvalorizando os assuntos do corpo.

Esse panorama vem se alterando com muita rapidez. A vivência religiosa mobilizada através de uma intensa mobilização corporal, que antes parecia ser território exclusivo das religiosidades mágicas - candomblé, umbanda e cultos locais - tem ampliado o seu espaço. A centralidade conferida ao poder do “espírito santo” aliado à intensidade de sua manifestação tem transformado igrejas e templos em locais de intensa experimentação emocional que, mesmo considerando-se a regulação ética aí implicada, transforma profundamente os referenciais de legitimidade, autoridade e de “verdade” da experiência religiosa.
Esse movimento, que se estende para além das fronteiras da religiosidade cristã, mas que também a interpela, vem produzindo transformações não apenas no âmbito da experiência. As mudanças tomam amplitudes variadas, não podendo ser consideradas na sua dimensão intersubjetiva por contraste às redefinições societais que ela desencadeia. Trata-se de um amplo circuito onde os diferentes níveis se encontram conectados.  Gostaria, portanto, de apontar a importância das transformações mais amplas do gerenciamento da emoção para as relações entre religião e terapêutica, promovendo novas reconfigurações do social. Para isso, tomarei como caso empírico o movimento nova era, na medida em que ele manifesta, de forma aguda, esses desafios. 

I

Os estudos sobre a nova era costumam enfrentar um duplo desafio, que é o de reconhecer a efemeridade das suas elaborações locais aliada à percepção de que se trata de um movimento “planetário”, sendo assim reconhecido e designado por seus adeptos. A experiência religiosa veiculada no âmbito das vivências e workshops caracteriza-se por sua autonomia, ou seja, encontra-se desregulada do espaço religioso institucionalizado, realizando-se através de performances provisórias e sempre sujeitas a novas produções de sentido (LATOUR, 2005; 2006). Esse estilo de intensa elaboração experiencial manifesta, de forma aguda, a porosidade entre os domínios da vida social tradicionalmente tidos como separados: a religião, a terapêutica, o consumo. É preciso pensar a especificidade dessas novas experimentações religiosas como uma característica da tendência mais ampla, apontada por Latour, de proliferação dos “híbridos” na contemporaneidade. A questão da globalização do movimento nova era, por sua vez, pode ser mais bem compreendida através do conceito de rede (não somente global ou local, mas entrecruzando as duas dimensões), proposto por Latour: por um lado, a globalização existe, mas não se caracteriza como uma totalidade sistemática; por outro, o contexto local não constitui um domínio facilmente delimitável, já que é marcado pela efemeridade das performances religiosas, mas que produzem profundos vínculos com o ambiente mais amplo.

No bojo desse processo, a peculiaridade da nova era parece ser a construção incessante de novos vínculos. Como consequência desse trabalho cotidiano de elaboração de novos tipos de conexão entre as coisas, observa-se diferenças importantes na paisagem das associações que são produzidas. Destaco apenas algumas delas: a nova era não se estrutura em igrejas, nem tampouco em seitas, compondo “um espírito sem lar” como sugere Amaral (2000); apresenta uma nova forma de vínculo entre os participantes das suas práticas, já que não vincula pessoas nem a grupos e muito menos a lugares; articula uma vasta rede transnacional que, no entanto, não se reconhece enquanto tal. A nova era parece brincar com paradoxos sociológicos...

A autonomia desse movimento em relação à experiência religiosa institucionalizada caracteriza a sua face mais visível. Em muitas abordagens, o reconhecimento da ausência de vínculos sociais estáveis acaba fortalecendo a idéia de que se trata de um amálgama de práticas e orientações difusas.

Refratário a uma caracterização ortodoxa, o movimento nova era subverte as fronteiras tradicionalmente delimitadas acerca do que caracterizaria a “experiência do sagrado” como separada e “pura”.  Avançando por domínios profanos, apropria-se da narrativa científica – incorporando-a -, dissemina-se no consumo, elabora uma profusão de experimentos terapêuticos. Trata-se de vivenciar experiências nas quais o religioso não constitui um domínio à parte, mas se realiza enquanto experiência híbrida.

Seria então apropriado pensar que essa configuração híbrida atravessa o panorama religioso contemporâneo, fazendo do movimento nova era sua expressão mais pujante? Se, como enfatiza Latour (2005), a Constituição Moderna procura ocultar o trabalho de proliferação dos híbridos, relegando-os a um “não-lugar” (a partir do trabalho incessante da purificação), o movimento nova era expressa de forma cabal a falência desse projeto. Trata-se ao mesmo tempo de religião, consumo e terapêutica.

Ao investigarmos o trabalho de mediação das redes da nova era, devemos acolher essa sugestão e nos perguntarmos acerca do que é posto em relação nesse movimento. Como vários estudos já têm indicado, “tudo” é passível de ser posto em relação. Para voltarmos à imagem, proposta por Latour, da tensão característica da Constituição Moderna, entre o trabalho da mediação e o da purificação, diria que no âmbito dessa rede as mediações são processadas às claras, enquanto que o trabalho da purificação, ainda que exista, segue cada vez mais timidamente.

II

A emergência, nos últimos 20 anos, das chamadas “terapias alternativas” encontra-se associada à ascensão desse novo estilo de espiritualidade que tem se desenvolvido mais intensamente entre as camadas médias urbanas. Passada quase duas décadas de um movimento terapêutico que se consolidou e cuja visibilidade social já não suscita tanto “estranhamento”, continuamos associando, um tanto precipitadamente, a utilização de terapias como florais de Bach, cristais, reiki e terapia de vidas passadas ao “estilo” da espiritualidade que atravessa a cultura “nova era”.

Ao realizar uma investigação antropológica dessa cultura, Amaral (2000) procurou delinear as suas orientações cosmológicas. Mergulhando em algumas de suas performances mais recorrentes, a autora abordou, entre outras práticas, as concepções de magia e cura que orientam os seus adeptos. Atravessando a enorme diversidade empírica presente no movimento, ela assinala a importância da experiência estética na vivência de um “sagrado sem lugar”, construída de forma caleidoscópica, onde a diversidade das práticas importa menos que a forma, sempre transitória, como elas são acessadas.

Em trabalho anterior (Tavares, 1998), também investigo a utilização dos recursos terapêuticos comumente identificados à espiritualidade nova era. O meu recorte, no entanto, enfocou um segmento profissional bastante diversificado, que designo por “terapeutas não-médicos” (em que a qualificação de “terapeuta alternativo” ou “holístico” constituiria o seu núcleo duro). Nessa ocasião, pude identificar nesse segmento um processo de autonomização terapêutica em relação à percepção holística que envolve os processos de cura no âmbito do movimento nova era. Tanto minha análise como a de Leila Amaral investigam diferentes tendências que podem ser encontradas no âmbito de um movimento que tem na abordagem “holista” da cura um dos seus traços mais característicos.    

A especificidade da experimentação religiosa da cultura nova era também pode nos auxiliar a compreender a intensidade dos trânsitos terapêuticos na contemporaneidade da sociedade brasileira. O “estilo nova era de lidar com o sagrado” (AMARAL, op. cit.) não se ancora na substancialidade das práticas e técnicas utilizadas, o que significa dizer que a especificidade dessa terapêutica não pode ser inferida diretamente das técnicas que são atualmente designadas como alternativas. Por outro lado, a utilização de recursos terapêuticos alternativos vem configurando uma nova modalidade de “especialização profissional”, que já conta com órgãos internos reguladores, como o Sinte (Sindicato dos Terapeutas). Essas investigações apontam para a problematização de uma abordagem estritamente “substantivista” dos recursos terapêuticos alternativos, direcionando as investigações nos termos das suas possibilidades discursivas (uma orientação cosmológica) e performáticas (no contexto de sua utilização). 

Assim, práticas terapêuticas alternativas que comumente encontram-se associadas ao estilo nova era têm sido disseminadas por outras “paisagens” religiosas, intensificando os trânsitos e complexificando as análises do universo das terapêuticas alternativas à medicina oficial. Também se verifica atualmente uma revitalização de algumas práticas terapêuticas tradicionais, como a utilização de ervas e chás da flora brasileira, reagrupadas em torno da designação “fitoterapia”, assim como o aporte de novos recursos terapêuticos, oriundos de uma diversidade de fontes, como por exemplo, de outras racionalidades médicas (homeopatia, medicinas chinesa e ayurvédica).

O sucesso crescente dessa diversidade de técnicas alternativas indica um processo de “alargamento” das fronteiras em que estavam anteriormente restritas às terapias alternativas, sejam elas “tradicionais” ou do tipo nova era. Considerando a diversidade interna desse conjunto de práticas, pode-se sugerir que a terapêutica alternativa vem sendo utilizada nas “franjas” da medicina convencional. Embora muitas práticas alternativas possam concorrer com a medicina convencional (através da elaboração de sistemas diagnósticos e terapêuticos paralelos), esse universo vem apresentando-se cada vez mais como recurso complementar ao saber médico, tornando o seu uso “familiar” a setores cada vez mais amplos da sociedade.

A visibilidade social conferida à designação “alternativo” para qualificar recursos e procedimentos tão diferenciados parece apontar para tendências e tensões sociais cujas implicações são mais vastas. Da mesma forma, a identificação das características de “alargamento” e “conversibilidade” indicam a assimetria com que esses trânsitos têm se processado. Enfim, o impacto desse processo convida-nos a refletir sobre as relações entre os domínios do terapêutico e do religioso que têm sido operacionalizados pelos agentes da cura na contemporaneidade.     

III

Acredito que a problematização das relações entre a terapêutica e a religião seja um bom caminho para evitarmos uma “reificação” de cada um desses dois termos. Muitos trabalhos têm ressaltado a especificidade do contexto ritual na produção de concepções alternativas de saúde e doença, bem como do “engajamento corporal”, a importância dos processos imaginativos e da elaboração de metáforas que se processa nesse contexto, decorrente do envolvimento performático do participante (RABELO et alli, 1999; ALVES e RABELO, 1999). O contexto ritual é poderoso não apenas porque possibilita uma redefinição das representações do participante, mas, principalmente, por mobilizá-lo num engajamento corporal cujos efeitos nem sempre são previsíveis (CSORDAS, 1983; RABELO et alli, 1998).


Assim, penso que o encaminhamento mais adequado das relações entre terapêutica e religião passa por certo equilíbrio entre duas preocupações. Devemos ter cuidado com as armadilhas das delimitações “artificiais” daquilo que nós, pesquisadores, entendemos por “procedimentos terapêuticos”, inferindo, etnocentricamente, uma “autonomia” da terapêutica que não é reconhecida pelos participantes daquele universo religioso. Por outro lado, não devemos levar a sério a diversidade do contexto religioso urbano, onde “a” religião não é nem homogênea nem impermeável aos critérios de legitimidade característicos do mundo secular. Assim, as interpretações que localizam as terapêuticas da religião ou na religião devem ser analisadas caso a caso, de forma articulada.

Fátima Regina Gomes Tavares, doutora em Antropologia (IFCS/UFRJ),  professora associada no Departamento de Antropologia da UFBA

Referências bibliográficas

AMARAL, L. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo nova era. Petrópolis: Vozes, 2000.
ALVES, P. C. e RABELO, M. C. “Significação e metáforas na experiência da enfermidade” In: SOUZA, I. M. et alii. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1999.
CSORDAS, T. J. “The rhetoric of transformation in ritual healing”. Culture, Medicine and Psychiatry 7, 1983: 333-375.
LATOUR, Bruno,  Jamais fomos modernos. São Paulo, Ed 34, 2005.
______________, Changer de societé – refaire de la sociologie. Paris, La Decouverte, 2006.
RABELO, M. C. et alii. Comparando experiências de aflição e tratamento no candomblé, pentecostalismo e espiritismo. Trabalho apresentado no XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 1998.
RABELO, M. C. et alli “Religião, Imagens e experiências de aflição: alguns elementos para reflexão” In: SOUZA, I. M. et alii. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro, FioCruz, 1999.

TAVARES, F. R G. Alquimias da cura: um estudo sobre a rede terapêutica alternativa no Rio de Janeiro.Tese (Doutorado em Antropologia). IFCS-UFRJ, 19