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RECORDANDO E CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE RUBEM ALVES
Ano 10 - Nº 29/30
Outubro de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
A teologia poética de Rubem Alves
Por: Carlos Rodrigues Brandão
Data: 22/10/2015

Poemas “desentranhados de alguns livros seus, por Carlos Rodrigues Brandão”*  e raros poemas escritos pelo próprio Rubem Alves

 

As maçãs eram sacramentos

Comendo o mundo
aquelas maçãs estavam cheias de outono,
de folhas amarelas, de folhas vermelhas,
de geada, de cheiro de folhas no chão.
De nostalgia.
Dentro de cada maçã havia um mundo,
o mundo deles.
Comendo a maçã, eles comiam
também o mundo que havia nela.
As maçãs eram sacramentos.
as minhas maçãs eram sacramentos
de um outro mundo,
ainda que estivessem na mesma cesta.  

A maçã, 14

                      E Deus entrou na dança

E esse caracol de sons foi enrolando tudo,
tomando a forma de um homem e uma mulher
que se abraçavam e se separavam,
por vezes entravam um dentro do outro

_____________________
*Antropólogo, Prof. Emérito da  UNICAMP, psicólogo e poeta. Especialista em educação e religiosidade popular com vários livros publicados. Amigo de longa data de Rubem Alves.

de tal forma que nem era possível saber qual era qual,
e Deus entrou na dança. Os corpos nus
e achavam bonita a nudez porque eram crianças
que brincavam uma com a outra,
o corpo da mulher era brinquedo para o homem,
o corpo do homem era brinquedo para a mulher,
e de vez em quando eles desapareciam
numa explosão de cores e perfumes,
e Deus se viu refletido pela primeira vez nos olhos deles,
duas crianças, homem e mulher...
E do seu amor surgiram
as primeiras palavras a serem faladas.

Perguntaram-me se acredito em Deus, 32

 

Deus é o nome que dou

Deus é o nome que dou
a um vazio imenso
que mora na minha alma.
Vazio onde voam os meus desejos
na esperança de encontrar, no futuro,
as coisas amadas
que o tempo me roubou.

 O melhor de Rubem Alves (omdra) 69

 

Perguntaram-me se acredito em Deus

 

Perguntaram-se se acredito em Deus.
Respondi com versos do Chico:
“Saudade é o revés do parto.
É arrumar o quarto
para o filho que já morreu”.
Sou um construtor de altares.
Construo altares à beira
de um abismo escuro e silencioso.
Eu os construo com poesia e música.
Os fogos que neles acendo
iluminam o meu rosto e me aquecem.
Mas o abismo permanece
escuro e silencioso.

 

Fé, um morango

 

Fé é um morango
que se come pendurado num galho
à beira do abismo,
pelo gosto bom que tem,
sem nenhuma promessa
de que ele nos fará flutuar
quando o galho se quebrar...

 

omdra, 126

 

As aves do céu, os lírios dos campos

 

Tudo o que vive é pulsação do sagrado.
As aves dos céus, os lírios dos campos...
Até o mais insignificante grilo
no seu cricri rítmico,
é uma música do Grande Mistério.
É preciso esquecer os nomes de Deus
que as religiões inventaram
para encontrá-lo sem nome
no assombro da vida.

omdra, 75

 

E a alma pode então

 

Por vezes, nas minhas fantasias,
eu entro para um mosteiro.
Protegidos por seus muros de pedras,
seus jardins e fontes falam de calma,
do tempo vagaroso e nostálgico dos sinos,
que pontuam com música sempre igual
a presença da eternidade.

Separado da loucura dos homens
o corpo se acalma.
E a alma pode então se entregar à alegria
dos pensamentos mansos.
Pelas manhãs os monges leem seus breviários,
as mesmas palavras sagradas
que vão atravessando os séculos.

Conversas sobre política, 71

 

A branda fala da morte

A branda fala da morte
não nos atemoriza
por nos falar da morte.
Ela nos aterroriza
por nos falar da vida.
Na verdade a morte
nunca fala sobre si mesma.
Ela sempre nos fala
sobre aquilo que estamos
fazendo com a própria vida,
as perdas, os sonhos
que não sonhamos
os riscos que não tomamos
os suicídios lentos
que perpetuamos.

O quarto do mistério, 221

 

Sagrado

Sagrado
é aquilo que mesmo
depois de morrer,
volta sempre
chamado pela voz da saudade.
Deus existe
para nos curar da saudade.

omdra, 105

 

A proximidade da morte ilumina a vida

A proximidade da morte ilumina a vida.
Aqueles que contemplam a morte nos olhos
veem melhor, porque ela tem o poder
de apagar do cenário
tudo aquilo que não é essencial.
Os olhos dos vivos, 
tocados pela morte, são puros.
Eles só veem aquilo
que o amor tornou eterno.
A morte nunca fala sobre a morte,
Ela só fala sobre a vida.
E ela sempre nos pergunta:
“o que é que você está esperando”

omdra, 204

 

 

Deus é como os olhos

Deus nunca foi visto por ninguém.
Por acaso a gente vê os próprios olhos?
Quem vê os próprios olhos é cego.
Para ver com os olhos
é preciso não ver os olhos...

Deus é como os olhos.
Não podemos vê-lo
para ver através dele.
Deus é um jeito de ver.

Perguntaram-me...   101

 

Deus é como o vento

Deus é como o vento.
Sentimos na pele quando ele passa,
ouvimos a sua música
nas folhas das árvores
e o seu assobio
nas gretas das portas.
Mas não sabemos de onde vem
nem para onde vai.
Na flauta o vento
se transforma em melodia.

Deus é uma suspeita
de nosso coração
de que o Universo tem um coração
que pulsa como o nosso.
Suspeita... Nenhuma certeza.

Perguntaram-me..., 54 e 55

 

 

POEMAS ESCRITOS POR RUBEM ALVES

Na dor da ausência

Faço meus poemas sobre um Vazio, o meu Vazio.
Não conheço nenhum outro.
Em obediência a um mandamento sacramental:
que o pão fosse comido e o vinho fosse bebido
na dor da Ausência.
A magia não está nem no pão
e nem no vinho
mas nas Palavras que dizem a tristeza da Falta.
O sacramento celebra a Ausência de Deus,
ele enuncia os limites dos espaços da espera que se dilatam
dentro de mim, eroticamente.

É a ausência que me excita.

Da esperança, 17

 

Teologia é um brinquedo que faço

Teologia é um brinquedo que faço.
É possível plantar jardins,
pintar quadros,
escrever poemas,
jogar xadrez,
cozinhar,
fazer teologia...
Claro que um jogo não exclui o outro.
Alguns dirão que isso não é coisa séria.

Eu os conheço muito bem e já havia advertido o leitor contra eles.
Quem se leva a sério é, no fundo, um inquisidor.
Está só à espera de que a ocasião apareça.
Teologia é um exercício de beleza e humildade.
Brincamos,
como a própria Santíssima Trindade que,
nos jogos intelectuais do venerável Santo Agostinho
só fazia uma coisa,
nas transas intra-trinitárias:
brincar.
Autoerotismo.

Da esperança, 19 e 23

 

Sonhar Deus de novo

Sonhar Deus de novo, de um outro jeito.
O pedaço arrancado do nosso corpo,
nome não dito da saudade,
satisfação fugaz (como a brisa que passa) do  desejo
(inesquecível)
Conspiradores:
companheiros a quem não precisaria explicar coisa alguma,
pois que respirávamos o mesmo ar: com/spirar...
Pois não é assim?

Da esperança, 35

 

Pai, mãe de olhos mansos

Pai, mãe de olhos mansos,
Sei que estás invisível, em todas as coisas.
Que o teu nome me seja doce.
A alegria do meu mundo.
Traze-me as coisas boas em que tens prazer:
O jardim,
As fontes,
As crianças,
O pão e o vinho,
Os gestos ternos,
As mãos desarmadas,
Os corpos abraçados...
Sei que desejas dar-me o meu desejo mais
fundo desejo que esqueci...
Mas tu não esqueces nunca.
Realiza, pois, o teu desejo, para que eu possa rir.

Que o teu desejo se realize em nosso mundo,
da mesma forma como ele pulsa em ti.
Concede-nos contentamento nas alegrias de
hoje: o pão, a água, o sono...
Que sejamos livres da ansiedade.
Que nossos olhos seja tão mansos para com
os outros como os teus são para conosco.
Porque se formos ferozes não pode-
remos acolher a tua bondade.
E ajuda-nos para que não sejamos enganados
pelos desejos maus, e livra-nos daquele que
carrega a Morte dentro dos
próprios olhos. Amém.

Perguntaram-me..., 154

 

livros de Rubem Alves
lidos para se encontrar o que se leu

Da esperança
1987, Papirus, Campinas

Retorno e Terno
1995, Papirus, Campinas

O quarto do mistério
1995,Papirus, Campinas

Estórias de quem gosta de ensinar
2000, Papirus, Campinas

Conversas com quem gosta de ensinar
2000, Papirus, Campinas

A alegria de ensinar
2000, Papirus, Campinas

Fomos maus alunos
(Com Gilberto Dimenstein)
2003, Papirus, Campinas

Encantar o mundo pela palavra
(com Carlos Rodrigues Brandão)
2010, Papirus, Campinas

Conversas sobre educação
2003, Verus Editora, Campinas

Conversas sobre Política
2002, Verus Editora, Campinas

Perguntaram-me se acredito em Deus
2007, Planeta, São Paulo

O melhor de Rubem Alves
(organizado por Samuel Lago)
2008, Nossa Cultura, Curitiba

 

 

Este foi o último livro que Rubem viu, antes de nos deixar. Depois de criado, eu o levei a ele. Ele folheou as minhas folhas impressas do computador e comentou comigo de sua alegria de ver afinal algo de sua prosa poética versejada como poemas. Não chegou a ver o livro UM IPÊ AMARELO, UMA PAINEIRA BRANCA  pronto e  deitado. “Encantou-se” antes. Ele gostava sempre de repetir João Guimarães Rosa: “as pessoas não morrem. Ficam encantadas”.   O livro foi publicado pela Editora  Adônis, de Americana, na Coleção Amigos da Poesia.