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RECORDANDO E CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE RUBEM ALVES
Ano 10 - Nº 29/30
Outubro de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Rubem Alves
Por: Júlio de Santa Ana
Data: 22/10/2015

Há pessoas que dão gosto à vida por sua disposição em receber os dons que o mistério de viver trás a suas existências. São pessoas que têm força suficiente para compartilhar com os demais a vitalidade que as habita. Possuem qualidades que lhes emprestam notas distintas à maneira de existir. Rubem Alves é uma delas. Faço esta afirmação no presente, porque ainda que tenha deixado de existir fisicamente entre nós, continua ao lado de muitos de nós. Sentimo-lo ao nosso lado, abrindo sendas que nos alentam, que nos surpreendem e encantam. Nosso primeiro encontro foi em 1963, na Chácara Flora, São Paulo, Brasil. Richard Shaull, que foi seu professor no Seminário da Igreja Presbiteriana do Brasil, em Campinas, nos convocou, um pequeno grupo de teólogos e cientistas sociais, para refletir sobre o ser das comunidades de crentes em sociedades que experimentavam rápidas mudanças sociais. A última vez que tivemos a oportunidade de estar juntos foi há pouco mais de dois anos, em Campinas. Os que se preocupavam com sua saúde lhe tinham informado de que o mal de Parkinson o acompanharia. Com o humor que sempre lhe acompanhou fez sentir a todos que nos reuníamos nessa ocasião que o gosto de viver seria sempre uma flor em sua existência.
Em todo esse período (1963-2012) foi um companheiro e um mestre. Um mentor que me ajudou a transitar por caminhos insuspeitos, um amigo querido que teve a capacidade de ir sempre à frente, disposto a ser surpreendido pela aventura da liberdade, cujos elementos discernia nos seres mais simples. Através da opacidade das coisas simples sabia ver germens de liberdade. Os que – consciente ou inconscientemente – são movidos por eles são portadores do   Espírito porque, recordando  as palavras do apóstolo Paulo, “onde está o Espírito há liberdade” (II Cor. 3:17). O Espírito sopra onde quer: fiel al alento que nos move, Rubem fez valer sua liberdade nas manifestações da vida; no pranto de uma criança que aspira a um amanhã na qual o Espírito “ponha liberdade”. Isso pode se manifestar de diferentes maneiras: na flor da jabuticaba que enfeita um jardim nas lutas pela liberdade que movem as mulheres e os homens, na prática de uma educação como lamentável expressão de aborrecimento, fastio e desencanto que aceita os agentes, instituições e estruturas por meio das quais ela se transmite.
São muitas as imagens de Rubem que guardo comigo. Elas não me abandonam. Lembro-me de uma reunião de grupos ecumênicos realizada em Piriápolis, Uruguai, em dezembro de 1967, quando Rubem expôs alguns elementos-chave do que, por esse tempo começou a ser chamado “Teologia da Libertação”. Foi um período difícil, cheio de asperezas para aqueles que tomavam consciência  de que o paradigma dominante na

forma de se fazer teologia na América Latina não era fiel ao Evangelho de Jesus; era (e ainda é)  uma negação do Evangelho e a afirmação de um dogma que é contrário à prática da liberdade. Os militares e as elites latino-americanas impuseram seu regime: foram anos de chumbo e de flagrantes violações dos direitos humanos. Por ter defendido posições de justiça social Rubem teve que exilar-se. A Igreja Presbiteriana do Brasil – sua própria comunidade de fé – o denunciou por dar testemunho da mensagem libertadora do Evangelho de Jesus de Nazaré.  A exposição que Rubem fez nessa ocasião mostrou a força renovadora que dinamizou uma geração: Gustavo Gutierrez, Juan Luis Segundo, Hugo Assmann, Jether Pereira Ramalho,  Luis Alberto Gomes de Souza, Sergio Torres, Ivone Gebara, Ronaldo Muñoz, Pablo Richard, Elsa Tamez, José Miguez Bonino, João Batista Libânio, Frei Betto, José Comblin e outros participaram em debates que contribuíram para dar forma à teologia da libertação.  Rubem Alves esteve entre os pioneiros que elaboraram esta corrente: afirmou que o pensamento teológico tem necessidade de uma prática que, para a teologia da libertação, se manifesta na vida e no compromisso com a comunidade dos pobres.

Esta reunião acontecida  em Piriápolis deu lugar à amargas polêmicas. Estas se relacionavam a uma nova forma de ser “igreja”. No transcorrer dos anos 1969 e 1969, Rubem Alves e Jether Pereira Ramalho orientaram um programa ecumênico auspiciado pelo movimento “Igreja e Sociedade na América Latina” (ISAL) que tinha como objetivo formar agentes e animadores em educação popular, seguindo as ideias de Paulo Freire. Fui com Rubem a Bolívia, Peru e Equador onde realizamos esses seminários com aqueles que buscavam novos caminhos no campo da educação. A reação dos que se opunham às mudanças se manifestou rapidamente: os setores reacionários e conservadores denunciaram esse programa de ISAL. Rubem Alves foi considerado herege por seu pensamento teológico.  Nos grupos que aderiam a ISAL se dizia, ironicamente, que a ação empreendida   de um mosquito que incomodava um paquiderme”: o mosquito, com suas picadas obriga os grandes animais a se moverem. Isto aconteceu em circunstâncias que, em alguns casos, foram tensas e dramáticas. Rubem, exilado nos Estados Unidos, terminou sua tese doutoral no Seminário de Princeton e regressou ao Brasil.

Com sua esposa Lidinha e seus dois filhos (Sérgio e Marcos) voltou ao Brasil. Foi docente de Filosofia numa faculdade em Rio Claro, no norte de s. Paulo. Pouco tempo depois nasceu Raquel menina de seus olhos. Dedicou grandes cuidados  e atenção o a sua filha que sofria de graves problemas de saúde. A luta pela vida de Raquel levou Rubem e Lidinha a se empenharem no cuidado da saúde da filha (hoje arquiteta de interiores).  Esses esforços se desenvolveram num período em que demonstrou sua grande fertilidade  intelectual. Vários campos foram cobertos: não apenas teologia, mas filosofia, ciências sociais e outros. Seu interesse em ajudar pessoas com problemas espirituais e morais o levou a exercitar sua própria psicanalise e a praticar as disciplinas conexas com os que buscavam conselhos e inspiração para suas existências.  Foi alguém capaz de ouvir, que dialogava com os que buscavam sentido e paz.

Posso dar fé do valor profissional de Rubem neste plano. Trabalhei no Brasil por pouco mais de dez anos, tempo no qual recebi muito de meu amigo. A pouco tempo de estar morando em S. Paulo o consultei sobre um psicanalista com quem pudesse trabalhar alguns de meus problemas. Indicou-me um dos melhores terapeutas que soube me orientar e a quem agradeço as orientações que me ofereceu. Foi durante a segunda metade dos anos oitenta. Nesse período eu servia como professor de pós-graduação em Ciência da Religião e também participei do lançamento do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e à Educação Popular (CESEP). As experiências que partilhei com os que participaram dos cursos do CESEP me ajudaram a perceber problemas que então discutia com meus estudantes que se interessavam por questões mais acadêmicas. Tive alunos interessados em orientações que lhes ajudassem a dar um sentido válido a seus comportamentos mas que não dispunham de recursos suficientes para satisfazer suas intenções. Dada a minha condição de docente lhes aconselhei que procurassem um assessoramento com Rubem. Vários dentre eles recorreram ao amigo; passado algum tempo me relataram como receberam ajuda do terapeuta que, na maioria dos casos, a dispensou gratuitamente.  O tempo passou e sua preocupação pelos demais foi se tornando concreta.  Foi professor-visitante em universidades dos Estados Unidos e Europa, sendo apreciado por aqueles que receberam o dom dos conhecimentos e dos interesses que Rubem investiu neles. O intelectual, não obstante sua modéstia,  brilhava quando sugeria caminhos através dos quais procurava encontrar caminhos inovadores, transformadores.
Aproximando-me do final destas notas, podemos nos perguntar: quais foram aqueles que inspiraram nosso amigo? Quem procura fazer o bem aos demais em muitos sentidos deve seu interesse em servir àqueles que contribuíram e inspiraram sua existência.  De forma indiscutível afirmo que corresponde citar a leitura frequente da Palavra de Deus. A tradição bíblica, que não precisa ser nomeada para ser discernida e reconhecida, é constante na vida e na prática de Rubem Alves. Nascido no seio de uma família evangélica, no sul do Estado de Minas Gerais, ele fazia uma referência constante, em seu pensamento, às histórias bíblicas. Essa tradição permaneceu em seu espírito, quando procurava a relação que poderia existir entre as Escrituras e a beleza. Movido sem cessar pela busca obstinada da beleza quis encontra-la e dela disfrutar: nas artes plásticas, na boa música, no plano das ideias. Os poemas de Fernando Pessoa, de Guimarães Rosa, de Rilke, de Cecília Meireles, de Adélia Prado têm a força própria do belo. Como também as composições de Buxtehude, de Bach, de Vivaldi, Mozart...

Fazem poucos dias que o amigo Rubem, nosso amigo Rubem, voa pelo espaço. Quando escrevo, penso ou digo: “o amigo Rubem”, não me refiro apenas a minha pessoa. Integro  nessa expressão da linguagem a companheiros e companheiras que tivemos o privilégio de gozar da formosura da vida. Obrigado, Rubem, pelo dom que te levou a partilhar a beleza. “Gracias a la vida” (como canta a canção de Violeta Parra).

(Traduzido do espanhol por Zwinglio Dias)

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*Teólogo metodista uruguaio, escritor,  com longa trajetória no movimento ecumênico internacional. Foi diretor de programas do CMI, Secretário-Geral de ISAL, Prof. de Ciências da Religião da UMESP, SP. Atualmente reside em Genebra, Suiça.  ( Texto escrito a poucos dias do falecimento de Rubem Alves )