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RECORDANDO E CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE RUBEM ALVES
Ano 10 - Nº 29/30
Outubro de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Rubem - Quatro momentos seguidos de um devaneio
Por: Carlos R. Brandão
Data: 22/10/2015

Nota prévia: sou testemunha ocular e auditiva dos quatro momentos descritos aqui, e fui o agente provocador do terceiro.

Primeiro momento

Havíamos sido convidados para falar num encontro do CEBEP, no mosteiro beneditino de Valinhos. Rubem faria a abertura na primeira noite do encontro. Éramos poucas pessoas e nos acomodamos em uma sala simples. Rubem levou um CD e pediu que houvesse um aparelho de som na sala.
Feitas as saudações de praxe e dada a palavra a ele, Rubem começou com um momento de silêncio. Um silêncio de surpresa e sem qualquer ar exotérico de meditação profunda.  Algo costumeiro nele.
E quando começou a falar ele disse isto: “eu devo dizer a vocês que não acredito em Deus”. Houve um longo outro silêncio de espantos enquanto colocavam no aparelho de som o CD. Ele pediu que ouvíssemos em silêncio, e em silêncio ouvimos o segundo movimento de um concerto para piano de Maurice Ravel.
Terminada a música ele criou um novo momento de silêncio. E quando retomou a palavra disse isto (que eu lembro agora de memória): “Bom. Depois de ouvir esta música eu talvez possa modificar o que eu disse antes. Porque se houve um homem capaz de haver criado esta música, é provável que tenha havido um alguém que criou o homem que criou esta música. Então em devo dizer que por causa do segundo movimento deste concerto para piano de Ravel talvez eu acredite em Deus”.
E dito isto seguiu em frente.

Segundo momento

Estávamos em algum lugar do Vale da Pedra Branca, em Caldas, onde Rubem teve por longos e felizes anos a sua chácara: o “Mar de Minas”, e lá onde eu tenho até hoje a “Rosa dos Ventos”. Estávamos sentados em um tronco de madeira, como um banco rústico, e pisávamos um chão de terra.
De repente eu desafiei Rubem Alves.
“Rubem, eu não quero saber de teologia e nem de crenças em algum deus. Quero que você me responda sem meias palavras o seguinte: para onde você vai quando morrer?”.
Ele criou um  outro dos seus silêncios e depois, com o dedo indicador da mão direita apontou para o chão de terra e me disse: “Eu irei para o mesmo lugar de onde vim a milhões de anos”.
E depois de uma pausa. “E de onde eu vou voltar um dia...”.

Terceiro momento

Estávamos indo para uma reunião do Centro Ecumênico de Documentação e Informação, no Hotel Fazenda da Serra, em Itatiaia. Ele dirigia o carro e conversávamos. De repente lembrei que ele fazia tempo ele me emprestou algum dinheiro que me ajudou na construção da Rosa dos Ventos. Algo que hoje estaria ao redor de uns 600 reais.
E então, no meio da viagem eu me lembrei e disse a ele: “Rubem, preste atenção! Se você tem alguma coisa e esqueceu ou nem sabe que tem, você na verdade não tem essa coisa”.
Ele pensou por alguns momentos, repetiu ao modo dele as minhas palavras e concluiu: “É verdade! Se eu tenho uma coisa e não sei ou esqueci que a tenho, eu não tenho esta coisa. Pois se ela não está na minha consciência e na minha memória, para mim ela não existe”.
E eu ainda filosofei (barato) completando: “Sim, porque mesmo que essa coisa exista em essência como tal, em existência, para você ela não existe. E como eu acho que você é mais existencialista do que essencialista, ela não existe mesmo!” E ele concluiu: “Sem dúvida! Se eu não me lembro dela, ela  não existe para mim”.
Ao que eu completei: “Pois então saiba que você me emprestou seiscentos reais e eu não paguei ainda”. E antes que ele pudesse me interromper dizendo que lembrava do empréstimo eu completei: “Pois como você não lembra do que me emprestou, os seiscentos reais não existem. E como não existem pra você eu vou dar eles pro Dércio Marques e a Soninha completarem o telhado da casa deles em Pocinhos do Rio Verde”.
Rubem ainda reagiu brandamente, dizendo que de forma malandra eu o havia “pegado numa tramoia”. Mas concordou entre bons risos. E os seiscentos reais viraram telhas.

Quarto momento

Cinco anos antes de nos deixar Rubem escreveu uma carta aos filhos: Sérgio, Marcos e Raquel. Era uma carta longa, impressa do computador e assinada a mão por ele.
Quando preparávamos a despedida dele, Raquel me trouxe a carta. Mais da metade dela estava ocupada com a transcrição literal de uma série de poemas, entre Cecília Meireles, Robert Frost e Fernando Pessoa.
E havia nela antes uma recomendação para ser cumprida a risca. Tanto no ritual de despedida do corpo quanto depois, ele não queria que pessoa alguma dissesse prece alguma. Que houvesse então somente poesias.
Ele deveria ser cremado e as suas cinzas deveriam ser misturadas à terra na cova (ou no berço) de um pé de Ipê Amarelo. Dissemos poesia nos dois momentos. E no segundo, distribuídas as folhas com os poemas a familiares e amigos, fomos lendo, uma por uma todas as poesias. Todas, menos uma de Fernando Pessoa em que Jesus Cristo foge da monotonia do Céu e vem à Terra brincar com Fernando Pessoa, por ser enorme.

Um devaneio sobre Rubem

Acompanhei de perto boa parte da trajetória do Rubem, já em Campinas e como professor.
Ao falar dele, quero lembrar antes que na tradição islâmica há um personagem de séculos atrás conhecido como Nasrudin. Sempre que penso no Rubem Alves eu me lembro do Nasrudim (com “m”  ou com “n”). Este mulá (um sacerdote islâmico xiita) ficou célebre não por sua piedade, mas por sua extravagante sabedoria. Há um livro dele em Português e hoje ele é estudado como um dos criadores do “non sense”. Séculos mais tarde, Rubem Alves é um outro. Um assumido pensador pela via de absurdos. A começar pela frase que ele repetiu milhares de vezes; “creio porque é absurdo”. Santo Anselmo ou quem?

Como quase sempre ao se pensar, conversar sobre, ou escrever algo a respeito de Rubem Alves, a maior parte das pessoas fixa uma dimensão dele e de sua obra, e nela vai a fundo, é usual que se perca de vista justamente o que Rubem sempre foi: um “nada disso ou daquilo, estável e definitivamente”.  Como ele nunca gostou da palavra “peregrino” (católica demais) ele talvez pudesse afinal confessar: “minha única vocação permanente foi a de ser sempre um errante”.

Lembremos. Ele começou a sua vida profissional como um fiel pastor presbiteriano, preocupado em convencer pessoas de que os mitos da Bíblia são verdadeiros. E terminou afirmando de público que afinal não era mais  do que um “contador de estórias” (algo que tomou mesmo como sua assinatura profissional depois de aposentado) convencido de que já que tudo afinal são mitos, são lendas, são estórias, são poesias, cada um ou uma delas pode ser e é verdadeira, desde que você queira crer. Desde que você ouse acreditar.

E no intervalo entre o pastor do sagrado e o “estoriador” do profano poetizado, ele foi um teólogo que um dia deixou a teologia pela poesia; um professor de filosofia e, depois; de educação; um educador e crítico voraz da educação tradicional; um psicanalista. Sonhou ser um vagabundo, e várias vezes me dizia: “Brandão, somos sérios demais! Precisamos aprender a vagabundar!” E ele nunca dizia: “vagabundear”, que talvez seja a expressão correta. Nunca aprendemos, seguimos poeticamente “sérios demais”.

Mas ele insistia, de um momento da vida em diante,  em dizer que a boa teologia é um jogo de palavras para poetar Deus. E sendo assim, os poetas sabem sem pensar e até sem crer (Fernando Pessoa) o que os pensadores nunca sabem de tanto pensar... sem sentir (idem, junto com Nietsche e outros, semelhantes).

Este sempre foi o Rubem com quem eu convivi. Melhor ainda, este foi o Rubem que ao longo de sua vida sinuosa foi aprendendo a ser, sem nunca chegar a ser alguém com uma (infeliz, a seu ver) assinatura definitiva: “eu sou isto e nada mais”.

Esta permanente impermanência ao longo da vida adulta de Rubem Alves começou na verdade bem cedo. Ele, menino, queria mesmo ser um pianista. O pai, então comerciante rico em Boa Esperança, no Sul de Minas (depois falido), comprou um piano. Ele começou a aprender sem nunca chegar a saber de fato. E quando certa feita ouviu um outro menino, que depois veio a ser Nelson Freire, tocando piano, ele me disse que fechou o seu e nunca mais tocou.  Seu consolo foram outras perdidas vocações musicais bem maiores. Certa feita me presenteou com um long-play de música de Nietsche. Mas me deu o disco dizendo: “são péssimas; melhor que ele ficasse só com a filosofia!”.

E a esta absoluta fidelidade ao transitivo, ao impermanente, ele associou ao longo da vida uma outra: a fidelidade ao intransitivo e ao irreverente. A começar pela sua obstinada vocação a adotar como mestres de estilo alguns seres opostos. Ele disse mais de uma vez que apenas da escrita de um homem ele tinha inveja: “o Gaston Bachelard noturno”, o do devaneio. Mas nunca lia (a não ser para escrever o seu único livro sobre filosofia da ciência, o “Bachelard diurno”,  o epistemólogo do conceito. “Chato demais!”

E já maduro e de cabeça branca mantinha entre os seus poetas mais lidos e citados o iconoclasta Fernando Pessoa (sobretudo em seu heterônimos mais profanos e profanadores) e Adélia Prado, uma piedosa e confessante católica, sobretudo nos últimos livros.

Pouca gente sabe que em Campinas, nos últimos anos de sua vida ele mudou de casa seis vezes (dois apartamentos e quatro casas). Que esta transeúncia doméstica seja apenas uma imagem mais materializada de um homem que a vida quase toda viveu entre fronteiras ou, ao gosto de alguns geógrafos e antropólogos, em um permanente “não lugar”.

Rubem colecionou sofrimentos, decepções profundas e algumas frustrações. Talvez parte de sua impermanência tenha a ver com o que foi obrigado a enfrentar, entre a vida, a igreja e a universidade. E depois de saído de uma e aposentado da outra, evitava ambas. Mas não as suas pessoas.

E talvez esta seja a única permanente fidelidade de Rubem Alves. E a respeito dela tenho mais vivências e confidências do que leituras e teorias. Avesso a instituições, a governos, a partidos (mesmo o PT dos “velhos tempos”), a academias, Rubem era não apenas fiel, mas amorosamente e cotidianamente leal às pessoas e presente junto a ela.

E, olhada de dentro para fora, do coração para a mente, do imaginário poético e poiético para a teoria, tudo o que ele disse, pensou e escreveu é uma mesma fala com as mais diversas versões e entonações sobre o mistério do humano.

E, entre tantos tropeços, trocas e procuras, toda a sua obra foi uma esperança às vezes quase desesperada e um desejo de (apesar de tudo) acreditar no destino não tanto de uma “humanidade” abstrata, mas de cada quem, de cada pessoa singular ou plural. De cada pessoa com seu rosto e nome, junto a quem, entre o pastor e o poeta, entre o professor e o predicador, entre o psicanalista e o prosador, entre o cientista da ciência e o vagabundo das idéias esquecidas, talvez ele tenha dia a dia vivido a sua única busca permanente e fiel. Feliz de vez em quando, às vezes amargo, pensador e poeta, Rubem escreveu e pensou para você, para mim, e em nome do indecifrável  mistério do nós,  e da esperança do entre-nós, talvez pudéssemos fazer, criar... ou vagabundamente, poetar.

E talvez por isso ele que via como maior proeza de Jesus Cristo o haver tornado um impiedoso, legalista e justiceiro deus distante em um pai amoroso com quem se conversa não de joelhos, mas ao redor da mesa, tenha precisado depois dessacralizar o Jesus Cristo dos teólogos – mas não o dos místicos e dos poetas - para poder amá-lo não como um divino “Filho de Deus”, a quem ao invés de dizer preces e tecer súplicas, você podem convidar a vir, como um outro irmão, a comer o pão ao redor da mesa e entre frases do dia-a-dia. E, entre risos, que valham como ritos, beber o vinho.