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POLÍTICA, RELIGIOSIDADE E VIOLÊNCIA
Ano 11 - Nº 31
Outubro de 2016
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Da fé que sustenta a violência na democracia
Por: Ronilso Pacheco
Data: 31/10/2016

Este será o direito do rei que reinará sobre vós: Ele evocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de sua cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; e os nomeará chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros (...). “Não! Nós queremos um rei. O nosso rei nos julgará, irá à nossa frente e fará as nossas guerras” (I Samuel 8: 11-12, 20)

História conhecida esta de I Samuel, em que o povo decide não mais querer ser governado por Deus e seus juízes, mas pretende se aproximar da forma de gestão dos outros povos e deseja ter um rei. Chama atenção nesse diálogo entre o povo e Deus, através do profeta é a presença do recurso da violência narrativa: “convocará seus filhos e os encarregará dos seus carros de guerra”; “fará fabricar as suas armas”; “ele irá à nossa frente e fará as nossas guerras”. A presença de “armas” e “guerra” como palavras repetidamente usadas num diálogo que se refere a governo e poder aponta ao menos uma direção evidente: o dilema (ou um dos seus principais) entre fé e poder está na construção e na gestão da violência.

O que chamo de gestão da violência é a manutenção de um clima permanente no qual a sociedade das cidades se encontram e a capacidade deste clima ser acionado pelo poder institucional para justificar, legitimar a violência recorrendo a uma narrativa que explora o medo gerado. Viemos de uma “tradição” violenta, que na história brasileira está presente, por exemplo, na escravidão e na ditadura. No primeiro caso, temos todo um sistema mantido pela violência física, simbólica, subjetiva, um sistema de imposições e exploração, cujo “legado” é o racismo que permanece entranhado nas relações brasileiras embora dissimulado e, em alguns aspectos, quase naturalizado; no segundo, é a violência que suspende uma experiência de democracia e cria uma  narrativa de segurança e defesa contra uma ameaça (no caso, a implantação do “terrível” comunismo), cujos “legados” compreendem a continuação das práticas policiais violentas e o recurso da tortura ainda utilizados como uma “metodologia” para lidar com sujeitos tidos como não-sujeitos por estarem envolvidos em crimes e desafio da autoridade estatal.

Então o poder está investido de violências que se mostram multifacetadas e permanentes. E isto nos levaria às perguntas sobre (a) o que pode a fé com o poder e (b) o que pode a fé frente ao poder. Se seguirmos a intuição de Habermas sobre a fé, ou a religião, “(...) só merecem o predicado “razoáveis” as comunidades religiosas que, segundo seu próprio discernimento, renunciam à imposição violenta de suas verdades de fé”. Mas Habermas também acredita que a religião “tem de adequar-se às premissas do Estado constitucional que se fundam em uma moral profana” (HABERMAS, 2013: 6-7). A questão é que, talvez, não exista “moral profana”, uma vez que a moral é permanentemente disputada por um sentido religioso de fundo.

Desta forma, nosso dilema atual não é apenas a conquista do poder por um grupo que confessa uma fé e a imposição destas como matriz moral-social-política, mas antes a possibilidade do acesso aos mecanismos que produzem e gestam a violência. Este clima de manutenção da violência como “reguladora” ou “mediadora” das relações sociais ou de gestão pública vai afastando a possibilidade de interrupção dessa espiral violenta, que rege a comunidade pela intimidação, controle e eliminação do inimigo.

No livro de 2Reis, o profeta repreende o rei que acabara de fazer prisioneiros de guerra: “Não os ferirás. Você torturaria os que tornou prisioneiro com as tuas armas? Oferece a eles pão e água, para que se alimentem, e voltem para o seu lugar (2Rs 6: 23)”. Quão factível é pensar esta lógica de desconstrução da espiral de violência hoje nos nossos dias? Reduzir todas as formas de violência passa pelo bloqueio da violência enquanto resposta basilar inclusive da gestão de conflitos militarizados internacionais e também internos. A lógica de proteção das ruas, nas grandes cidades, funciona também sobre a lógica de tortura, punição e desumanidade empreendidas no sistema penitenciário brasileiro, em que a vida do encarcerado vale menos. O desaparecimento do pedreiro Amarildo, em 2013, caso que ficou famoso nacional e internacionalmente, mostra o exercício de uma lógica que inviabiliza a proposta da prisão como correção. Sem nem ter chegado ao encarceramento, é sabido que o pedreiro Amarildo não resistiu ao processo de tortura a que foi submetido, provavelmente para dar respostas que não sabia ou para não falar do que então veio a saber sobre a própria ação policial.

Dizer “reduzir todas as formas de violência” significa apontar a necessidade de reconhecer que, de maneira diversa, a violência se alastra e se expressa multifacetada e justificada. Também significa reconhecer que essa espiral da violência deve ser interrompida não com uma declaração de objetivos, mas com um esforço coletivo de empreender alternativas e demandas sociais que confrontem as políticas pensadas a partir da violência. E talvez aqui as igrejas e demais organizações religiosas possam ter um papel fundamental.

Pensemos por exemplo neste diálogo de Jesus com Pedro, em Mateus 18:21-22:

Então Pedro chegando-se a ele, perguntou-lhe: Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes? Jesus respondeu-lhe: Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete.

Aqui, onde Jesus insere e propõe o perdão, poderíamos pensar numa proposta não como quem apresenta o perdão desprovido da “responsabilidade” ou um “esquecimento” inócuo que ignora e “releva” a violência. Mas antes um perdão consciente, responsável e movido por uma fé resistente e insistente, que tem o poder de interromper a lógica da violência. Devemos entender então a proposta de Jesus como uma resposta direta, um diálogo que reporta ao antigo e conhecido canto de Lamec, registrado em Gênesis 4:23-24, segundo o qual Lamec diz:

Ada e Sela, ouvi minha voz, mulheres de Lamec, escutai minha palavra: Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes.

A interface com esta narrativa veterotestamentária nos ajuda a compreender a proposta de perdão de Jesus como uma espécie de “instrumento”, recurso possível, capaz de interromper a lógica da violência e da vingança. Talvez um dos nossos rastros a ser seguido possa ser pensar o perdão como como este mesmo recurso que paute políticas públicas e propostas que tirem da violência e da gestão da violência o regulador das relações e das mediações sociais, solucionadoras de conflitos sociais e controladoras de tensões.

O perdão pode ser o recurso de ruptura com a situação que temos, que René Girard tão bem interpretou como o “escândalo” (o skandalon), na sua hermenêutica do termo como ele é proferido por Jesus. Identifica Girard o “escândalo” exatamente como esse clima permanete de violência, impulsionada, para ele, pelo desejo mimético, em que o outro se torna uma ameaça permanente, o que explicaria a rápida capacidade de contágio e penetração que a violência tem. Portanto, o perdão pode ser a interrupção, a quebra, aquele que interdita o discurso de ódio; a imposição de uma moral para o corpo do outro; o condicionamento da liberdade; as narrativas que diminuem a sensibilidade diante das perdas das vidas “matáveis”, em que crises são medidas pelos índices econômicos que nos fragilizam e não pelas vidas que se perdem.

Na tentativa de uma relação razoável enquanto corpo social, nos é oferecida a tolerância. Mas a tolerância não parece capaz de dar conta da mediação do “escândalo” no qual estamos inseridos. Incapaz de ser uma fiadora de uma harmonização possível, a tolerância parece poder fazer parte do processo, mas não ser entendida como fim. A tolerância ainda é o reconhecimento de uma espécie de “mal menor”, em que o outro ainda está distante e incomoda, mas é “tolerado” como forma única e exclusiva de evitar o conflito, mas não como possibilidade de reconhecimento e aproximação. Como bem já disse o polonês Zygmunt Bauman, “a uma sina comum bastaria a tolerância mútua; o destino comum requer solidariedade” (BAUMAN, 1999; 249).

Diante disso, concretamente, o receio por conta desta relação da fé com o poder preocupa pela ocupação do poder se constituir uma captura. E aqui, três destas capturas apontam razões para se temer: (a) a captura (ou cooptação) dos aparatos e mecanismos de violência e segurança; (b) a captura do processo legislativo; e (c) a captura do discurso ético/moral hegemônico. No tocante à violência (na primeira captura), já se há de observar como a gestão da violência tem, na sua institucionalidade, o apelo religioso (cristão) fortemente marcado, de fundo, com a proteção da comunidade do mal possível de acontecer a menos que se identifique (se entregue, se prenda, se elimine, expulse) o bode expiatório (para se usar outra expressão de Girard. Afirma Luiz Carlos Susin:

O símbolo da cruz como “sinal do cristão”, ao ser desenraizado da história, perpetua de modo institucionalizado e virulento, no coração da existência cristã, o culto à vítima e a mística vitimista como vitória e como poder. As instituições gerenciadoras de violência tem à sua disposição, assim, a mais alta simbolização da violência – por uma institucionalização sacralizada das relações de violência (ASSMANN, 1991; 241).

Conclusão
Como proposta de reflexão penso que, enquanto organizações religiosas, ecumênicas, podemos pensar juntos em ao menos três importantes direções e possibilidades:
a) Como esvaziar do poder a dimensão da fé exclusivista? Em outras palavras, como “profanar” o exercício do poder e sua capilaridade, e sacralizar a justiça, a dignidade a diversidade e a cidadania?
b) Como quebrar ou frear o “escândalo”, ou, a força e a presença da violência que impregna o poder e se potencializa na fé?
c) Como superar o discurso da tolerância, entendendo a necessidade de avançarmos no discurso e, principalmente, na prática de uma construção comum e de mais igualdade?

Bibliografia:
ASSMANN, Hugo. René Girard com teólogos da Libertação: um diálogo sobre ídolos e sacrifícios. Petrópolis-RJ, Vozes, 1991
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1999
HABERMAS, Jürgen. Fé e saber. São Paulo, Editora Unesp, 2013