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POLÍTICA, RELIGIOSIDADE E VIOLÊNCIA
Ano 11 - Nº 31
Outubro de 2016
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
A invasão, a des-baathização e o Estado Islâmico
Por: Gersoney Brandão
Data: 31/10/2016

Não se escreve certo por linhas tortas, já dizia o velho ditado... Dessa forma, seguindo a lógica, a invasão, liderada pelo Exército dos Estados Unidos, começou sem o endosso do Conselho de Segurança da ONU, por estar baseada em conclusões falhas derivadas de provas inconsistentes, como admitido por oficiais do governo da coalizão, que planejou e derrubou Saddam Husseim (Powell, 2004). Esta invasão não só trouxe caos e instabilidade a uma região do mundo justamente marcada por desavenças e incertezas, como serviu de impulso para a criação do movimento radical mais sanguinário dos nossos dias, o autoproclamado Estado Islâmico.
A deposição de Saddam Husseim, nos primeiros meses do ano de 2003, serviu de pretexto para o chamado processo de des-Baathização, e a criação de uma comissão que tinha como objetivo retirar da administração pública, indivíduos envolvidos com o antigo regime, membros do partido Baath de Saddam, e que culminou com o, puro e simples, desmantelamento do Estado, incluindo o Exército nacional e demais forças de segurança pública (Sissons & Al-Saiedi, 2013). Em um contexto aonde fazer parte do serviço público implicava, obrigatoriamente, estar filiado ao partido no poder, independente do grau de relação e proximidade com a família Hussein. A Comissão de Des-Baathização, estabelecida de em abril de 2003, logo após a queda do regime, em pouco tempo se transformou em um balcão de troca de favores e caça às bruxas (Khedery, 2015). A desintegração mal-planejada do Exército, não só estimulou a pilhagem de material bélico, criando um próspero mercado clandestino para vendas de armas, como, sobretudo, lançou oficiais militares na clandestinidade. São oficiais, que depois viriam a se transformar em mentores e membros de diferentes grupos rebeldes, que começaram e continuam semeando caos no Iraque e na região (Al-Rashed, 2014).

O Iraque conheceu uma nova dinâmica política com a queda do – sunita – Saddam Hussein. A chegada dos xiitas ao poder, juntamente com o processo de des-baathização, não só alijou os sunitas do centro das decisões como contribuiu para a perseguição deste grupo; no que vieram os conflitos tribais e étnicos que acabaram por facilitar e permitir a al-Qaeda a instalar-se no Iraque (Khedery, 2015). Isto, justamente, em socorro aos sunitas que eram vistos de forma generalizada com desconfiança pela administração provisória imposta pelo governo dos Estados Unidos (Dobbins et al., 2009).

Da chegada da Al-qaeda no Iraque, em 2003, aos primeiros informes sobre o Estado Islâmico, no Iraque, em 2010 e na Síria, em 2011 – aproveitando a instabilidade no país vizinho – e, a posterior aliança entre os dois grupos em 2012 (Cockburn, 2015); o pano de fundo foi a proteção aos sunitas, apesar da aliança tática entre os dois grupo não ter durado muito tempo, havia, também, o interesse mútuo em aproveitar do caos existentes na região para consolidação territorial. Em seguida, outro erro grave do governo dos Estados Unidos, então envolvidos em uma nova missão desde 2011 de depor Bashar Al-Assad do governo Sírio, foi a distribuição indiscriminada de armamento a grupos rebeldes interessados na mudança de regime na Síria. Estas armas sofisticadas, com o tempo, acabaram por cair nas mãos de membros do Estado Islâmico e foram fartamente utilizadas pelo grupo na tomada da cidade de Falluja, na periferia de Bagda, em janeiro de 2014 (Cockburn, 2015). Mais tarde, no mesmo ano de 2014, em junho, e utilizando o mesmo armamento, o Estado Islâmico declara a criação de um Califado/Estado (Juneau, 2015), após se estabelecer nas cidades de Mosul e Tikrit, ao norte do Iraque, áreas majoritariamente habitadas por Muçulmanos sunitas. 

Não por coincidência, que a tomada de Tikrit, lugar de nascimento de Saddam Hussein, representou a consolidação do Estado Islâmico como grupo militar. O auto-proclamado líder do grupo, Abu Bakr al-Baghdadi, Doutor em Estudos Islâmicos pela Universidade de Bagda (Peled, 2015), que havia sido capturado em 2003, após a invasão, acusado de planejar ataques contra membros da coalizão,  cumpriu pena, junto com antigos oficiais do regime de Saddam na prisão de Campo Bucca, ao sul de Bagda, tendo sido solto, em 2009, quando do fechamento de prisões administradas pelos Estados Unidos. As prisões foram fechadas em 2009 e a criação do Estado Islâmico, como grupo, é anunciada em 2010, tendo concentrado presença em áreas majoritariamente Sunitas.

Fechar prisões, liberando presos sem um critério propriamente definido enquanto tentava assegurar que a administração do Iraque, com um sistema judicial conhecido pela falta de compromisso com normas internacionais (Keyser, 2009), poderia responsabilizar-se pela manutenção da lei e da ordem foi, talvez, o erro maior dentro de uma sequência de erros que foi iniciada com uma invasão que não tinha o aval do Conselho de Segurança. Erros esses que persistem como, por exemplo, a aliança com milícias Xiitas Iranianas, agora acusadas de violações no Iraque (HRW, 2015). Dessa forma, se confirmam as previsões de que o final das intervenções militares no Iraque (Brandão, 2012), estão, infelizmente, ainda longe do seu final.

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Gersoney Brandão  -  Mestre em Direitos Humanos e Cooperação Internacional,pela Universidade de Estraburgo e ex-coordenador da ONG Merlin no Iraque .   (brandaoazevedo@un.org)

Referencias
Al-Rashed, Abdlrahman (2014), Do the Iraq rebels belong to ISIS, the Baath party, or clans? Disponível em: http://english.alarabiya.net/en/views/news/middle-east/2014/06/15/Do-the-Iraq-rebels-belong-to-ISIS-the-Baath-party-or-clans-.htmlaccesso em 07/11/2015
Brandao, Gersoney (2012), Guerra no Iraque: principio e meio, sem fim disponível em http://mundorama.net/2012/01/04/guerra-no-iraque-principio-e-meio-sem-fim-por-gersoney-a-brandao/accesso em 20/11/15.
Cockburn, Patrick (2015) ISIS is proof of the failed “war on terror” disponível em: http://qz.com/347398/isis-is-proof-of-the-failed-war-on-terror/acessoem 07/11/2015
Dobbins, James et al. (2009), Occupying Iraq a history of the coalition provisional authority. Disponivelemhttp://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/monographs/2009/RAND_MG847.pdf
acesso em 27/11/2015.
Human Rights Watch (2015), Ruinous Aftermath: Militia Abuses Following Iraq’s Recapture of Tikrit. Disponível em https://www.hrw.org/news/2015/09/20/iraq-militia-abuses-mar-fight-against-isis acesso em 30/11/2015.
Keyser, J (2009), Camp Bucca: Military Closes Largest Detention Camp In Iraq. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/2009/09/16/camp-bucca-military-close_n_289285.html acesso em 30/11/2015.
Khedery, Ali (2015), Iraq in pieces –breaking up to stay together Disponivelemhttps://www.foreignaffairs.com/articles/iraq/2015-09-22/iraq-pieces. Acesso em; 20/11/2015
Juneau, T (2015), containing the Islamic state. Disponível em http://mepc.org/journal/middle-east-policy-archives/containing-islamic-state. Acesso em 20/11/2015.
Peled, Daniella (2015), Who Is Abu Bakr al-Baghdadi? Disponível em http://www.haaretz.com/middle-east-news/isis/iraq/1.683549 acesso em 30/11/2015.
read more: http://www.haaretz.com/middle-east-news/isis/iraq/1.683549
POWELL, C. (2004), Powell admits Iraq evidence mistake. Disponívelem: [http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/3596033.stm]. Acesso em: 20/11/2015.
Sissons,Miranda e Al-Saiedi, Abdulrazzaq (2013), A Bitter Legacy: Lessons of De-Baathification in Iraq. Disponível em https://www.ictj.org/sites/default/files/ICTJ-Report-Iraq-De-Baathification-2013-ENG.pdf Acesso em 23/11/15.