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JUSTIÇA AMBIENTAL
Ano 2 - Nº 3
Abril de 2007
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Crônica
 
Quando as mulheres atraem violência
Por: Ivone Gebara
Data: 01/02/2007

Fico me perguntando por que a violência contra as mulheres nas suas diferentes expressões tem aumentado. As estatísticas do último ano, em todos os estados brasileiros, são estarrecedoras e sem dúvida convidam ao pensamento e à mobilização.

Penso que o aumento da violência contra as mulheres torna-se ainda mais espantoso nestes tempos pelo fato de já estarmos vivendo mais de meio século de feminismo militante sem contar os inúmeros esforços dos séculos passados. Além disso, através dos meios de comunicação estamos sabendo do crescimento do número das delegacias da mulher, de novas leis que protegem as mulheres em diferentes situações e sobretudo das organizações nacionais e internacionais que assumem esta frente nas suas expressões plurais.

Neste texto não quero enumerar os assassinatos e as diferentes formas de agressão desde os golpes físicos até os golpes verbais e pressões psicológicas de que são vítimas as mulheres. Não quero igualmente falar de nenhuma organização em defesa das mulheres e das leis como a Lei Maria da Penha (2006), embora tenham hoje uma importância capital. Creio que neste momento vale uma pergunta talvez um pouco diferente: o que temos nós mulheres que atrai tanta violência? É em torno desta questão que partilho intuições e pensamentos de forma livre e associativa.

Estou convencida de que não há uma única causa para tentar explicar e entender algo sobre a agressão que nós seres humanos fazemos uns aos outros e particularmente à violência feita às mulheres. Há causas que se entrelaçam, situações complexas em que as razões não dão conta de explicar tudo o que acontece. Há as violências conhecidas e as desconhecidas, há as atuais, mas há também aquelas herdadas, aquelas que ficam doendo no corpo como unha encravada. E, na busca de algumas explicações eis que, de repente, me vieram à lembrança, algumas passagens do Livro do Apocalipse. “O dragão postou-se diante da mulher, que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho tão logo ele nascesse.” E em seguida: “Enfurecido contra a mulher, o dragão foi combater o resto da descendência dela” (Apocalipse, 12). Este texto veio habitar-me espontaneamente e a partir dele tentei um caminho de reflexão. O fato de me situar no interior da tradição judeu-cristã (judaico-cristã?) me convida a afirmar que ela não tem a exclusividade dos mitos que expressam de uma forma ou de outra a violência contra mulheres. Este é um tema mítico recorrente, o que indica um nó no interior da experiência humana coletiva.

Por que esta luta do dragão contra a mulher prestes a parir? Por que esta espécie de perseguição aparentemente sem fim? O que existe em nós que provoca a vontade de violar, de agredir, de sacrificar, de eliminar?

Creio que o texto do Apocalipse, para além de sua importância na tradição cristã, revela uma camada mítica de beligerância no interior mesmo da humanidade feminina e masculina. As mulheres, como fonte mais explícita da renovação da descendência humana, como útero que continua a espécie, aparecem muitas vezes ameaçadas por sua própria descendência. O fruto do ventre acaba se tornando fruto contra o ventre, como se alguns frutos guardassem em si uma raiva originária ou uma raiva das próprias origens. O lugar da origem, o útero, a vagina, os seios que amamentam são os pontos de convergência das agressões. É como se de lá se pudesse maldizer a vida, tocar o próprio nascimento, tentar de certa forma exterminá-lo. É lá o lugar onde se expressa a raiva maior, como se ao agredir, ferir, rasgar, estraçalhar, fazer sangrar aqueles lugares se vingaria toda a humanidade. Vingar-se de que? Vingar-se da falta de aconchego, da falta de abraços, da falta de carinho, da falta de alimento, da falta de reconhecimento, do tédio da existência, da impotência? Ou talvez, vingar-se de não ser igualmente esta poderosa origem? E no processo de vingança, o amor derrotado parece quase desaparecer ou apenas, cede lugar ao ódio original.

Ódio original? Como é possível falar de ódio original?
Por que se destroem corpos, casas, catedrais..? Por que se penetra a vagina com a espada, a lança, o fuzil, o cabo da enxada..? Penetra-se com o pé, com o pênis, de um, de dois, de muitos num mesmo lugar e num mesmo tempo de raiva coletiva. Ódio original manifesto em qualquer guerra, acordado por qualquer par de sandálias, por petróleo, por fronteiras inventadas, por desemprego e embriaguez, por ciúme, por crenças religiosas e por mil sem razões tornadas razões. Ódio original que viola para se abrandar, que fere para matar a vingança oculta ou manifesta. Uma vingança a mais entre tantas outras! Uma vingança buscando saciar vinganças!

Vingança? Por que?
Ódio original sem razão razoável. Pura onda de destruição a invadir os corpos e torná-los eles mesmos instrumentos de morte, produtores de cadáveres ou de corpos com marcas indeléveis.

O corpo feminino com sua força diferente atrai e excita a força revoltada. É como se pudesse contê-la, abafá-la, ocultá-la, apaziguá-la. Esta força revoltada, convencida de que pode dominá-lo, se investe contra ele, o derruba, golpeia e mata. Experimenta por um fugidio instante a exaustão e talvez o gosto da vitória instantânea... Ri, gargalha, pronuncia impropérios como se tivesse vencido o inimigo, como se tivesse ganhado uma batalha, como se pudesse ser condecorado por uma vitória. O agressor repousa.... Pensa-se vitorioso. Deixando a vítima no chão e possivelmente no seu ventre a semente da continuação da humanidade se afasta. Humanidade estuprada que guardará as seqüelas de violência ao longo de sua história e ao longo de gerações sucessivas. Semente violenta em corpo violentado...

Raiva da humanidade depositada em corpo de mulher. Depois, raiva do ventre prenhe de violência. Raiva da criança que não morreu, resignação com o filho ou a filha que venceu a morte, mas já nasce marcada por um ódio encoberto de cuidado, de comportamentos de aparência social, de tentativas de esquecimento e de mentirosa bondade.
Quantos nasceram do estupro, do não desejo, do não amor, da guerra, do acaso e mesmo do ódio?

Ódio original tem cura? Confesso que não sei responder de forma convincente como aqueles que dizem “Jesus nos salva de tudo” ou “Deus entende o que não entendemos”. No fundo não temos respostas às perguntas mais fundamentais que nos fazemos. Estamos entregues à fragilidade de nossa humanidade.

Não sei se o ódio original tem cura. Nem mesmo sei, se a força do amor original, ou do perdão original pode dar certezas de regeneração.
Amor das origens, Perdão das origens, Ódio das origens.
No princípio foi a explosão dos sentimentos, a luta entre eles, a competição entre eles, a dominação de um pelo outro e ela persiste como marca indelével da espécie, como marca da vida. Todos os sentimentos até hoje continuam em confronto e contradição se nutrindo uns dos outros. E aí está a mulher de novo, em dores de parto querendo recomeçar de novo algo novo. É como se quisesse nascer de novo, como se quisesse começar a impossível humanidade sem ódio de si mesma... É como se tentasse reescrever o mito adâmico e contar outra história, diferente daquela que acaba com a vingança divina condenando a mulher a arrastar-se ao desejo do homem, parindo com dor e sofrimento.

Mas, parece que o dragão continua à espreita, continua a persegui-la querendo matá-la e destruir sua prole. Nós a prole e o dragão... , nós mulheres e homens nos atraindo e nos odiando.... Nós, ao mesmo tempo, faces de uma mesma moeda de criação e destruição.

Hoje falamos com freqüência que precisamos, mulheres e homens, nascer de novo para nós mesmos. Precisamos dar a luz ao homem e à mulher possível, a partir do não escolhido de nossas origens. Somos o que fizermos da vida que nos foi entregue. Vida rejeitada, acolhida, malvada, amada. Os mitos têm suas razões. Nunca têm um final feliz ou sempre deixam um final para ser adivinhado.

Por isso, além de denunciar a violência contra as mulheres precisaríamos talvez trabalhar sobre a violência das nossas origens, sobre os mitos que a expressam, os medos que formam nosso corpo e nossas relações. Precisamos, talvez, olhar nossos medos de frente e re-encontrar a força e a ternura da vagina e do pênis, dos afagos de ternura, dos afetos e emoções. E, quando tivermos sido capazes de inventar nossa humanidade de um outro jeito inventaremos outros mitos onde já não seríamos mais condenadas ao desespero entre nós mesmos e onde dragões não mais perseguirão mulheres e nem matarão sua prole.

Apesar da violência real e da vergonhosa impunidade, aposto que “amanhã há de ser outro dia”. Algo de novo começa a se anunciar em nossos corpos, em nossas mentes e em nossas relações. Nosso mal-estar presente talvez esteja a anunciar que há boa nova pelo caminho. Não sabemos ainda o que virá, mas continuamos a apostar pelo respeito de nossas origens e pelo respeito da diversidade da VIDA em nossas próprias vidas.

Ivone Gebara
Fevereiro 2007.