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BENTO NO BRASIL
Ano 2 - Nº 4
Julho de 2007
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
A visita do papa bento XVI ao Brasil: um olhar pentecostal
Por: Elienai de Oliveira Carvalho Castellano

As igrejas denominadas de evangélicas1 chegaram ao Brasil em diferentes momentos com projetos missiológicos variados e seguindo trajetórias de configuração e afirmação também diversas2 , com um ritmo de crescimento que tem se mantido acelerado desde então. Há aproximadamente um século as igrejas pentecostais emergiram como uma vertente do protestantismo embasada em um fervor religioso incomum. Distinguem-se das igrejas do protestantismo histórico e de missão por defender a atualidade dos dons do Espírito Santo, com especial ênfase no dom de línguas (glossolalia), na cura divina e na crença da segunda vinda de Cristo.

O avanço pentecostal irá demonstrar sua originalidade ao extrapolar em muito o plano religioso, sobressaindo também como uma força social com uma extraordinária capacidade de influenciar o quadro social, econômico e político do país. Para Alexandre Carneiro 3, “O seu crescimento acelerado promove um desmonte na configuração religiosa do país, cujas principais seqüelas são debitadas às religiões afro-brasileiras e ao catolicismo”. O número de aderentes à fé pentecostal no Brasil é espantoso e impactante, tanto para as igrejas protestantes de onde saiu quanto para o catolicismo, religião majoritária no país, que mantinha em solo brasileiro uma hegemonia aparentemente inviolável.

Da importância do pentecostalismo para a religiosidade brasileira pode-se dizer que, devido à dimensão que este movimento religioso alcançou, tornou-se elemento integrante da sociedade e das religiões dos brasileiros, bem como em algo fundamental para um entendimento mais amplo da sociedade na atualidade. Tem contribuído para desvelar os rumos que tanto a cultura como a religião vem tomando, e está plenamente consolidado na dinâmica sócio-religiosa que move a sociedade brasileira.

Ainda que o catolicismo mantenha uma penetração capilar em muitos ambientes, conservando ainda muitos ligados a ele, claramente perde terreno. Um fato digno de nota é que apesar do Brasil ser considerado o país onde há o maior número de pessoas que se declaram católicas romanas no mundo ele também é o país com católicos romanos menos romanistas que se tem notícia. Uma pesquisa divulgada pelo Instituto Data Folha publicada no jornal Folha de São Paulo4 , em 06 de maio próximo passado, apontou que apenas 9% dos católicos romanos brasileiros se declaram hoje fiéis às doutrinas de sua igreja. Para a hierarquia da igreja o “bode expiatório” são as “seitas religiosas” como são chamadas, acintosamente, as igrejas pentecostais, pois ousaram desafiar sua supremacia como instância definidora do poder religioso. O uso do termo seita nos remete sempre ao mesmo ponto de partida, é usado por aquele grupo religioso dominante que se sente ameaçado pela concorrência. Foi assim com o cristianismo primitivo, foi assim com o protestantismo, é agora com os pentecostais.

Ari Pedro Oro5 lembra que o avanço pentecostal vai provocar uma reação católica mais intensa principalmente a partir da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1991. Embora em documentos a igreja católica reconheça a “existência de um pluralismo religioso e a necessidade da prática ecumênica e da abertura ao diálogo com as outras igrejas e religiões, cristãs e não-cristãs”, é evidente que representantes da hierarquia da igreja têm dificuldade em perceber o pentecostalismo como “um movimento religioso positivo que se expande por seus próprios méritos e que possui direito à existência”. Negá-lo e rechaçá-lo tem sido uma posição defendida e levada a cabo pela ala conservadora da igreja ao longo desses anos. Apesar de Ari Pedro Oro afirmar que “tudo isto, é importante frisar, sem adotar um discurso arrogante e autoritário”, não foi o que se viu nos acontecimentos recentes da visita da Papa ao Brasil, quando se percebeu a manutenção de uma atitude reducionista e um discurso que se mostrou tanto arrogante quanto autoritário, face àqueles que ainda hoje são considerados como desgarrados do rebanho e conspiradores da ordem estabelecida.

A recepção brasileira ao Papa Bento XVI aconteceu em grande estilo, o que já era de se esperar. Ainda que para alguns críticos o investimento tenha sido muito maior que o feedback. O Brasil, que é apontado em algumas estatísticas como o maior reduto católico do mundo, parou e reverenciou o líder máximo da religião que conta com o maior número de fiéis do país. O crescimento das igrejas evangélicas brasileiras recebeu uma especial atenção e foi tido como um fator que impulsionou tal visita. A preocupação com as transformações avassaladoras do mundo na contemporaneidade e a preocupação com o avanço dos cultos pentecostais sobre a base de fiéis, como um mal a se combater, se fizeram presentes de forma vívida e literalmente em todos os discursos.

Para Pierre Sanchis, o pentecostalismo clássico teve em seu caráter de ruptura com as tradições religiosas brasileiras a marca de sua visibilidade e veio a representar o trânsito entre duas culturas: a tradicional, católico-afro-brasileira e a cultura moderna da escolha individual.6 Isto significa, que na realidade, os ares de modernidade introduzidos pelo protestantismo ganham contornos novos e muito bem definitivos com o pentecostalismo, que inclusive trouxe consigo a possibilidade de questionar o poder institucional da Igreja Católica. Fornece a toda uma gama de aflitos a possibilidade de fazerem suas próprias escolhas com relação à sua crença religiosa. Sanchis afirma que a reação institucional católica ao pentecostalismo continua sendo de defesa, hoje, segundo ele, mais “civilizada” 7. Todavia, é difícil chamar de civilizado um ataque que não leva em conta o respeito pelo outro, que não demonstra cortesia e que arrogantemente se sente no direito de ditar as regras da religiosidade em um país onde o que impera é a diversidade religiosa. Mas o que esperar de uma visão obscurantista que entende, por exemplo, a conversão indígena à fé cristã como algo que purificou suas culturas?

No encontro com os Bispos, no dia 11 de maio, Bento XVI afirma que “O dever de conservar o depósito da fé e de manter a sua unidade exige estreita vigilância”. Vigilância esta que faz parte de sua formação e atuação junto à Congregação para a Doutrina da Fé por tantos anos. Vigilância que o levou ao extremo de julgar, condenar e excomungar seus iguais. Este é um tema recorrente e imperativo em sua missão. Neste mesmo discurso o Papa chama a atenção para a necessidade de “um salto de qualidade na vivência cristã do povo, para que possa testemunhar a sua fé de forma límpida e esclarecida.” Bento XVI fala aqui de uma qualidade que deverá ser adquirida na observância cotidiana da fé católica romana. Os que não procederem desta maneira ficarão enfraquecidos, com uma fé confusa, vacilante e ingênua, portanto mais vulneráveis ao proselitismo agressivo das seitas.

Em um outro discurso, o que foi preferido na Abertura do CELAM na cidade de Aparecida, Bento XVI acusa mais diretamente as “seitas” cujo proselitismo, segundo ele, tem contribuído para um “certo enfraquecimento da vida cristã no conjunto da sociedade e da própria pertença à Igreja Católica”. Da própria pertença da Igreja Católica sim, os números confirmam o fato; um enfraquecimento da vida cristã no conjunto da sociedade aí já é algo para se observar mais de perto.

Em edição da Folha de São Paulo, do dia 06 de maio, já citada anteriormente, o sociólogo Ricardo Mariano (PUC-RS) afirma que a vivência religiosa da fé cristã é realçada nas denominações evangélicas uma vez que as igrejas evangélicas abrigam convertidos. “Uma coisa é nascer católico, religião majoritária, filho de família católica há várias gerações. Outra é se converter evangélico. É preciso ter distinção comportamental para sustentar um comportamento distinto. Vem daí moralidade estrita, ascetismo e puritanismo.” Viver a radicalidade da fé cristã tem sido um marco nessas igrejas, chamadas de seitas, desde sua implantação.

Não se duvida que há distorções, contradições, ambigüidades e desvios na prática pentecostal por parte de alguns agentes religiosos que, movidos por interesses mercantis, fizeram com que muitos construíssem uma imagem do pentecostalismo como uma forma de exploração da boa fé, principalmente dos menos favorecidos da população. Todavia, em qualquer instituição humanamente constituída isto pode ser observado. Mas também é certo que pulsa no íntimo dos fiéis pentecostais a mesma busca tateante, que tem movido o ser humano em direção à transcendência, pois estes fazem parte das fileiras dos que já entenderam que Deus não habita em templos feitos por mãos de homens e não está longe de cada um de nós. (At. 17.27).

Para o fiel pentecostal a experiência é mais importante do que a sua compreensão sistemática e racional da fé. Quaisquer que sejam suas limitações, este modo de viver plenamente sua crença proporciona experiência com o poder de Deus e oferece nova vida e energia àqueles que a ela respondem. A profunda transformação espiritual como resultado da fé traz consigo também renovações físicas, mentais e muitas vezes materiais.8 E ainda há a questão de que esta expressão religiosa chega ao país em um momento em que o Estado se encontra desprovido de condições para responder às necessidades básicas da população, e rapidamente ganhou terreno nas camadas mais empobrecidas. Por conseguinte, a renovação da esperança, perpetrada por esta forma religiosa, ocupou a brecha existencial provocada pela rápida transformação da sociedade ao oferecer às pessoas uma nova estrutura de sentido.

Vigilância, melhoria na qualidade da vida religiosa e precaução constante com o que pode interferir na fé católica romana, eis a recomendação de Bento XVI. Incita os católicos romanos a manterem seus olhos bem abertos para o perigo que tão de perto rodeia - o proselitismo agressivo de quem se acha no direito de converter as pessoas de uma fé tradicional, familiar e secular. Prefiro enxergar a questão também pelo viés proposto por Darcy Ribeiro, que mostra uma realidade ainda plenamente verificável nos dias de hoje, e diz que o povo brasileiro espoliado do atendimento de suas necessidades humanas básicas, inclusive as religiosas, se vê obrigado, entre outras coisas, a edificar favelas nas morrarias mais íngremes e a estruturar como pode as comunidades humanas regulares, refletindo que:

A luta dentro dessa massa urbana é ferocíssima. Se associam, eventualmente, nos festivais, como o carnaval e cerimônias de Candomblé, como paixões esportivas co-participadas e com os cultos de desesperados.[...] A anomia freqüentemente se instala, prostrando multidões no desânimo e no alcoolismo. Muitas vezes se deteriora, também, na anarquia, em gestos fugazes de revolta incontrolável.[...] Talvez, por isso, tanto se apeguem aos cultos evangélicos que salvam os homens do alcoolismo, as mulheres da pancadaria dos maridos bêbados, as crianças de toda sorte de violência e do incesto. Os cultos católicos, regidos por sacerdotes bem formados, raramente aparecem ali. 9

O culto dos desesperados, como diz Darcy Ribeiro, referindo-se às atividades dos evangélicos entre as populações carentes, abriga hoje pessoas de todos os segmentos da sociedade. Transformou-se ao longo dos anos, institucionalizou-se, adaptou seu discurso à realidade dos brasileiros, ganhou simpatizantes e defensores e está às portas de completar cem anos de existência no país. Se nos primeiros anos de sua existência não foi contemplado pelos estudos acadêmicos, nos últimos anos cresce, efusivamente, o número de obras sobre o tema nas mais diversas abordagens. Com o conhecimento que já se construiu em torno deste assunto fica muito difícil identificar nos discursos de Bento XVI um ponto de contato fidedigno com a realidade religiosa do país.

Reconhecemos o talento do homem inteligentíssimo e muito bem preparado academicamente. Reconhecemos a posição de líder máximo da religião Católica Apostólica Romana. Na condição de católicos apostólicos, ainda que não-romanos, sentimos muito mais esse agravo a uma forma religiosa que desde o princípio organizou-se como espaço de acolhida e que na força do Espírito tem atuado como um eficaz instrumento de transformação social. É verdade que falta ao pentecostalismo a opulência, o conteúdo simbólico, e até mesmo o conhecimento teológico mais apurado, entre tantas outras coisas tão caras ao catolicismo romano. Mas é inegável que sobra disposição para uma vida cristã plena, emoção transbordante e mecanismos de apoio para a sobrevivência em um país como a nossa pátria amada Brasil.

Para Faustino Teixeira pulsam em nosso Continente diversas tradições, que se firmam nesses tempos de pluralismo religioso, com as quais é necessário ter cortesia, delicadeza e hospitalidade. Segundo este autor “o ´espírito do diálogo` que traduz uma atitude de respeito, escuta, abertura e amizade com as outras tradições religiosas deve envolver e penetrar ´todas as atividades que constituem a missão evangelizadora da Igreja` (DA 9)”10. Entendo que Faustino Teixeira recomendaria, nesses momentos de encontros dessa natureza, pegar por empréstimo o coração do outro, como diria Djalal od Din Rumi (1207-1273), o poeta do amor. Este mesmo que denominou, em sua paixão pela unidade, que feliz aquele que é sensível ao amor divino, ao verdadeiro amor, que não se prende a modelos e formas e que consegue ver que “toda árvore ganha beleza quanto tocada pelo sol”.11 Este reconhecimento e respeito pelo outro é o diferencial a garantir a própria sobrevivência neste mundo conturbado, abrindo espaço para uma caminhada fraterna que não se esfacela na intolerância, inclemência, excludência, fanatismo e por fim na violência.

Elienai de Oliveira Carvalho Castellano, doutoranda pelo Departamento de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ostais.

1 Na América Latina o termo evangélico é muito abrangente, agregando todas as igrejas nomeadas como protestantes, pentecostais e neopentecostais.

2 Cf. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Fronteiras da fé: alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje. Estudos Avançados. V. 18, n. 52, São Paulo, dez. 2004. Disponível em www.scielo.com.br

3 SOUZA, Alexandre Carneiro de. Pentecostalismo: de onde vem, para onde vai?: Um desafio às leituras contemporâneas da religiosidade brasileira. Viçosa : Ultimato, 2004, p. 12.

4 FOLHAONLINE. Igreja pentecostal muda vida de 54% dos fiéis. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u91942.shtml

5 ORO, Ari Pedro. Avanço Pentecostal e reação católica. Petrópolis,RJ: Vozes, 1996, p.89-119.

6 SANCHIS, Pierre. As religiões dos brasileiros. Horizonte. Belo Horizonte, v.1, n.2, 2º sem. 1997, p. 30.

7 SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à “cultura católico-brasileira”. In: Antoniazzi, Alberto, et. Al. Nem anjos, nem demônios. Petrópolis,RJ : Vozes, 1994, p, 39.

8 CÉSAR, Waldo e Shaull, Richard. Pentecostalismo e futuro das Igrejas Cristãs: Promessas e Desafios. Petrópolis : Vozes, 1999. p. 153.

9 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2ª edição. São Paulo : Companhia das Letras, 1995, p. 206.

10 TEIXEIRA, Faustino. Discurso do papa foi incapaz de perceber o abraço universal. Disponível em http:/ www.otempo.com.br

11 TEIXEIRA, Faustino. RÛMÎ: A paixão pela unidade. Revista de Estudos da Religião – REVER. Disponível em http://www.pucsp.br/rever