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JUSTIÇA AMBIENTAL
Ano 2 - Nº 3
Abril de 2007
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Página de KOINONIA
 
Cooperação internacional ecumênica – o papel da solidariedade na desconstrução da Globalização neoliberal

No século XVI, no início do processo da colonização européia do Novo Mundo, quando a mundialização do sistema mundo se iniciava (Braudel), se falava dos Marem Tenebrosum. Continuamos essa navegação no Terceiro Milênio. Na verdade, ainda mais tenebrosa é a Globalização neoliberal, com suas artimanhas perversas, que a um só tempo aprofundam a desigualdade social no Planeta – com todas as suas perversidades socioecológicas – e os seus mecanismos de dominação militarizada de territórios e regiões, por meio do poder militar unipolar. Mundo, mundo, vasto mundo... nos ensina Drummond. É nesse cenário que os economistas informam: a cada dólar investido do Norte nos países periféricos do Sul, os países doadores recebem de volta quatro dólares em forma de lucros.

É este o cenário da cooperação internacional. No campo ecumênico, nos anos de 1960, essa cooperação ecumênica tinha um caráter dúbio, ambíguo. Por um lado, favoreciam às alternativas nacionais para a superação das violações dos direitos civis e políticos, rompendo com as lógicas das ditaduras militares – os regimes de segurança nacional, sobretudo apoiados pelos Estados Unidos da América do Norte. Por outro, eram um mecanismo de contenção do avanço do comunismo. A lógica da cooperação esteve sempre vinculada às amarras ideológicas do campo político. Especialmente como formuladas pelo centro do poder, emanado de Washington, e com ampla influência nos países da comunidade européia.

Nos anos de 1970, a luta pelos direitos civis e políticos se aprofundou. O arco ideológico foi modificado e a cooperação ecumênica sentiu essas alterações. Juntamente às questões de fortalecimento da sociedade civil, para a redemocratização das sociedades, na América Latina, a reconstrução dos países africanos e asiáticos, em suas lutas por descolonização, e questões específicas como as lutas contra o apartheid na África do Sul, redirecionaram totalmente a cooperação ecumênica internacional. O arco da solidariedade das lutas em favor da Justiça cresceu ainda mais. Além disso, crescia a consciência ecológica planetária e isto fez com que as duas décadas seguintes tivessem este apoio consagrado.

Os anos de 1980 e de 1990 foram o do fortalecimento da sociedade civil na América Latina. Os regimes de segurança nacional foram substituídos pelo fortalecimento das democracias insurgentes. Em vários países da América Latina se configuraram revisões históricas e cobranças de reparação. As afirmações da pluralidade da sociedade se fizeram sentir. As identidades dos diferentes atores sociais cresceram. Feminismo, meninas e meninos de rua, afrodescendentes, dentre outros, emergiram como sujeitos de direitos. As agendas dos direitos redistributivos se uniram às dos direitos de reconhecimento – ao mesmo tempo em que no cenário internacional a temática do multiculturalismo se afirmava como uma agenda internacional necessária (quer pela superação da suposição do secularismo – que acreditava no fim do papel proeminente das religiões; quer pelos massivos contingentes migratórios na direção Sul-Norte).

A queda do muro de Berlim, em 1989, e a alteração do marco ideológico com o fim do comunismo levaram a uma outra maneira de construir o espaço e os modelos de cooperação internacional. Talvez, esse cenário anteriormente descrito e este evento expliquem a tentativa do ciclo das Nações Unidas de Conferências em favor dos Direitos Humanos ao longo dos anos de 1990. O ano de 2001, com o 11 de setembro, agregou a essa agenda política ideológica a questão do terrorismo. Estamos dentro de um cenário no qual a cooperação internacional encontrou, por um lado, uma agenda positiva, a disseminação e afirmação dos direitos humanos, em especial dos direitos econômicos, sociais e culturais. De outro lado, uma agenda negativa, a contenção do terrorismo e a identificação do papel das religiões na superação de conflitos.

A atual agenda da cooperação ecumênica internacional sofre pressões de muitos lados. Internamente, nos países do Norte, as sociedades e os governos fazem um check and list dos sucessos da cooperação e do papel específico que lhes cabe por sua identidade. Isso numa situação interna aos países na qual cresceu o mercado da caridade, e para a qual os apelos emotivos falam muitas vezes mais forte que as necessidades sociopolíticas dos países e grupos sociais apoiados pelas organizações ecumênicas do Norte. Além disso, como parte dos fundos de muitas das organizações é de origem governamental – como por meio do imposto religioso de alguns dos países – surgem dois constrangimentos. Primeiro, devido ao afastamento das pessoas das igrejas há uma diminuição deste ingresso, e em segundo lugar, em vários países se questiona os percentuais a serem repassados para as organizações – seguindo se discussões até de eliminação dos impostos.

Externamente, na América Latina, as organizações ecumênicas do Norte redirecionaram seus apoios para outros atores sociais. Os atuais estudos sobre os montantes circulantes da cooperação ecumênica internacional para a América Latina indicam que não houve uma redução deste. Porém, várias das antigas contra partes daquelas organizações deixaram de ser apoiadas por elas. Como conseqüência, muitas organizações ecumênicas, do movimento social, do campo das ongs se viram debilitadas estruturalmente. O problema que resulta disto é a contradição entre a necessária reconfiguração do campo político democrático popular vis a vis o fortalecimento dos mecanismos do Mercado Total. Nesta conturbada demanda interna e externa é que se configura o atual cenário da cooperação ecumênica.

Recentemente, realizou se o Seminário Internacional (novembro 2006) do Processo de Articulação e Diálogo (PAD) que reúne no Brasil organizações ecumênicas, movimentos sociais e ongs, e na Europa um conjunto de agências ecumênicas. Noto que as agências chamaram atenção para sua identidade sociopolítica e eclesial e chamaram a atenção para o equívoco do termo agência, pois elas se autodenominam missão, ação das igrejas e termos ou expressões semelhantes. Nesse seminário, no qual se discutiu a cooperação internacional ecumênica e o seu papel na luta em favor dos direitos humanos (econômicos, sociais, culturais e ambientais, bem como, os civis e políticos), foram retomadas algumas questões fundamentais. Primeiro, a agenda ecumênica da cooperação parte do pressuposto da autonomia dos atores e da sua capacidade interativa. Ou seja, a cooperação ecumênica responde a desafios concretos que nascem das inserções dos distintos atores. Por isso, há um pacto de respeito mútuo. Em segundo lugar, a agenda da cooperação ecumênica mantém o compromisso com uma perspectiva teológica da opção preferencial pelos pobres – parte daquelas e daqueles que são as populações vulneráveis que são sujeitos de direitos em vista da superação das injustiças que sustentam o sistema de violações de direitos. Finalmente, mas não menos importante, a cooperação ecumênica afirma a necessidade de superação do atual modelo socioeconômico como caminho para a afirmação de uma sociedade na qual os direitos de todas e todos sejam respeitados.

Concluo essas reflexões sobre esse papel desconstrutor da Globalização neoliberal que tem a cooperação ecumênica com uma feliz reflexão do encantado Milton Santos:

Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode se dizer que uma história universal, verdadeiramente humana está, finalmente, começando. A mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutações: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana.
A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas da informação, as quais – ao contrário das técnicas das máquinas – são constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis, adaptáveis a tosos os meios e culturas, ainda que seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada, essas técnicas doces estarão ao serviço do homem.
Muito falamos hoje nos progressos e nas promessas da engenharia genética, que conduziriam a uma mutação do homem biológico, algo que ainda é do domínio da história da ciência e da técnica. Pouco, no entanto, se fala das condições também hoje presentes, que podem assegurar uma mutação filosófica do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa, e, também, do planeta.

(Milton Santos, Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal).