Tempo e Presença Digital - Página Principal
 
GÊNERO: DA DESIGUALDADE À EMANCIPAÇÃO?
Ano 3 - Nº 8
Abril de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Um mundo mais feminino?
Por: Mara Vanessa

Com licença poética

Adélia Prado
Quando nasci, um anjo esbelto,
Desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
Esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
Sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
Acho o Rio de Janeiro uma beleza e
Ora sim, ora não, acredito em parto sem dor.
Mas o que sinto, escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
Já a minha vontade de alegria,
Sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Mulher tem mais é que ser desdobrável, se quiser dar conta de tudo! Já ninguém discute a existência da dupla ou tripla jornada de trabalho da mulher – o trabalho remunerado, geralmente fora de casa; o trabalho da casa; o cuidado dos filhos. E mais a luta política, o comprometimento religioso, as ocupações da vizinhança, a vontade de ser feliz…

A imagem da mulher como um ser romântico e pouco prático, atenta apenas a roupa, enfeites e afins, em contraposição à imagem do homem prático, mantenedor da casa e provedor financeiro da família, está indiscutivelmente na lista das simbologias em risco de extinção. As estatísticas provam que uma porcentagem cada vez mais alta dos lares brasileiros são mantidos e governados por mulheres; isso significa que são elas as que trabalham, buscam dinheiro e criam os filhos.

Mas também se interessam por roupas, por enfeites, por sexo; também são românticas e algumas sonham com um marido como um príncipe encantado, que venha resgatá-las da dura realidade para um status de princesa, com todas as necessidades supridas e mais um bocado de luxo para tornar a vida cor-de-rosa. Ou não; sonham com um parceiro (ou parceira) que seja companheiro/a, que divida as jornadas domésticas (casa e filhos), que não tenha medo do sucesso profissional dela, que a respeite como pessoa (que inclusive pensa e sabe decidir) e que seja um bom amante. Ou ainda sonham apenas com liberdade, com autonomia, com respeito.

Esse respeito não é fácil. Essa autonomia é um enorme desafio. Liberdade, então, como alcançar? No Brasil, a situação de violência contra a mulher ainda é alarmante: são registrados anualmente dois milhões de casos, sendo que, em média, 50% dos agressores são os próprios companheiros das vítimas1.  E o pior, na situação de violência, é a dependência, é a baixa auto-estima que faz com que as vítimas se sujeitem e inclusive acreditem que mereçam sofrer, ou que pelo menos não mereçam nada melhor. Ou seja, a violência não é apenas física; é sempre, e muitas vezes somente, psicológica.
Em termos legais, há avanços; a promulgação da Lei Maria da Penha, em agosto de 2006, colocou a violência doméstica em seu devido lugar: crime. Mas, como diz a filósofa Fina Birulés, “Enquanto o ato de bater em uma mulher não for visto como tabu, como algo extremamente horroroso, como um “canibalismo”, a situação não muda verdadeiramente, por mais que mudem as leis. O corpo da mulher como algo a ser dominado é o símbolo que precisa ser transformado.

Embora existam leis e mecanismos que buscam garantir respeito e igualdade para a mulher, a questão, é claro, vai muito além do âmbito jurídico; é comportamental e simbólica. E é aí que o bicho pega.

O salário das mulheres ainda é menor que aquele que é pago aos homens, mesmo quando ambos têm a mesma escolaridade, segundo dados do IBGE. Essa diferença salarial para menos é mais acentuada quanto maior o nível de escolaridade: mulheres que têm curso superior recebem em média 60% do que é pago aos homens com nível universitário; em outros níveis de escolaridade, essa diferença cai para 71,3%. Então, a mulher tem que estudar igual ou mais que o homem, trabalhar igual ou mais, para receber menos. E soma-se a isso a questão racial…

A mesma coisa no caso de representações políticas. Embora existam cotas para mulheres nos diversos partidos, isso não tem correspondido proporcionalmente ao aumento do número de mulheres em cargos de poder político. Nem em lugares como o Congresso Nacional, nem em espaços de luta como os sindicatos. A concepção cultural predominante é que “sindicato não é lugar de mulher”; e nem mesmo as participações femininas, embora poucas, têm conseguido alterar substanticalmehte a lógica das plataformas de luta sindical. As questões de gênero não têm sido tratadas com a relevância pertinente nas negociações coletivas2. Mulheres que ocupam posição de destaque no movimento sindical, como é caso de Rita de Cássia, coordenadora do Pólo Sindical no Submédio São Francisco, são raras; e reconhecem essa dificuldade.

Por que essas diferenças existem e permanecem? Ainda segundo a mesma filósofa, tem a ver com a questão da autoridade. Ela argumenta que as mulheres não são vistas como portadoras de autoridade, nem pelos homens, nem pelas próprias mulheres. “Uma mulher “poderosa” é difícil de digerir tanto pelos homens quanto pelas demais mulheres que a consideram como uma “traidora” em algum sentido. Homens e mulheres têm a percepção de que somos todas iguais e que por isso, não podemos ocupar posições hierarquicamente distintas, o que revela uma não autoridade. Quando uma mulher é poderosa, as demais sentem muita inveja e rivalizam-se com ela, porque não são capazes de reconhecer relações não simétricas com uma “igual”.” No modelo de sociedade em que vivemos, as noções de autoritarismo e autoridade são confundidas; muitas vezes, domina-se pela violência, pelo temor. No entanto, é bom lembrar que a autoridade só existe porque é concedida por quem obedece.

Há, porém, outras lógicas, outros modelos, outros formatos. No início do século passado, uma antropóloga americana, Ruth Landes, veio fazer seu trabalho de pesquisa na Bahia e descobriu a autoridade das mulheres no candomblé. Daí resultou seu livro “Cidade das Mulheres”, que é também título de um documentário produzido recentemente. Mostra o papel das mulheres nessa tradição que obedece a hierarquias claramente demarcadas, com papéis muito definidos, e a posição de poder das mulheres nesses espaços. São as “mães de santo”. As comunidades dos terreiros de candomblé são, além de espaços religiosos, centros de trabalho social que atendem não apenas a seus adeptos, mas às comunidades envolventes. São comunidades de solidariedade e de ajuda mútua, e espaços onde elementos que formam a identidade das pessoas são reforçados, elevando sua auto-estima e sua consciência de estar no mundo. Esses espaços, ao mesmo tempo sagrados e profanos, espirituais e cotidianos, são regidos pela autoridade da “mãe”.

Solidariedade e cuidado: condições para um mundo melhor

Se, por um lado, é real que, em nossa sociedade brasileira como um todo, as mulheres não são vistas nem pelos homens nem pelas próprias mulheres como detentoras de autoridade, é também real a existência de intensas redes de solidariedade feminina que permitem que as mulheres cumpram seus múltiplos papéis e sobrevivam, e ainda se divirtam. Na hora do aperto, é a irmã, a comadre, a mãe, a tia, são as amigas, as que ajudam as mulheres a dar conta de cuidar dos filhos, da casa, e ainda cumprir com suas obrigações de trabalho, ou sair para namorar, para dançar, para se divertir.

Essa relação, que envolve cuidado e afeto, é muitas vezes vista como um atributo feminino. Extrapolando, poderíamos perguntar: o que seria um conceito de desenvolvimento feminino? Pode-se falar em tal coisa? Que valores o pautariam? Algumas indicações vêm à mente e ajudam a refletir: por exemplo, em projetos de desenvolvimento sustentável, o desenho de Sistemas Agroflorestais feitos pelos homens é geralmente dirigido para o mercado; naqueles em que participam as mulheres, a segurança alimentar e a saúde da família ganham prioridade, ainda que os sistemas também produzam para o mercado; são, simplesmente, mais inclusivos, considerando plantas que os homens não considerariam.

Lembrando que gênero é uma construção social que se manifesta em papéis e expectativas de comportamentos femininos e masculinos, a forma como somos criados e educados vai rebater diretamente em como vemos esses papéis, e na possibilidade de mudança. A relação é tensa porque trata de poder, distribuído desigualmente entre homens e mulheres, em nossa sociedade.  Haveria então atributos femininos e outros masculinos?

Se há esses atributos, e se o cuidado é um deles, o mundo realmente precisa ficar mais feminino, pelo próprio bem estar do planeta.
Mara Vanessa F. Dutra, jornalista e colaboradora de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço


Dados da Fundação Perseu Abramo de pesquisa realizada em 2001 e 3 veiculados em notícia datada de 10/03/2008, no site www.portalmuler.net, por Amanda Costa.

Estudo sobre Questões de Gênero na Reforma Sindical, de Silvia Cristina Yannoulas, FLACSO/Sede Acadêmica Brasil, novembro de 2004, publicado no site www.cfemea.org.br