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60º ANIVERSÁRIO DE ORGANIZAÇÃO DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS
Ano 3 - Nº 12
Setembro de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Outro Movimento Ecumênico é possível
Por: Oscar Bolioli

Escrever algo, por ocasião do 60º aniversário da primeira Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, é recordar a Assembléia de Amsterdã quando duas grandes correntes, Fé e Constituiçãoe Vida e Missão se fusionaram naquele 23 de agosto de l948. A tentação é a de não ser objetivo na comparação entre as metas alcançadas e os erros cometidos. Ninguém quer ser desmancha-prazeres numa ocasião como esta.  Indubitavelmente, o CMI marca um antes e um depois no Movimento Ecumênico. A segunda tentação é a de reduzir o Movimento Ecumênico ao CMI. Tentação na qual temos caído muitas vezes ao reduzir o processo ecumênico na América Latina e Caribe a sua estrutura mais visível: o Conselho Latino-americano de Igrejas.

Não é um território desconhecido para mim.  Tive o desafio de chegar a Genebra pouco depois de Maurício Lopez, enfrentando o problema de ser o primeiro latino-americano com cargo de direção. Digo problema porque a confirmação de meu posto demorou seis meses a mais, apesar de eu ter sido proposto unanimemente por meus colegas.  É que, por essa época , os europeus não podiam admitir que esse cargo de Diretor do Departamento de Juventude do CMI fosse ocupado por alguém do Terceiro Mundo!

Não nego que fui influenciado em minhas idéias por Visser’t Hooft, ex-Secretário Geral que, nas quintas-feiras nos convidava para tertúlias de diálogo em sua casa genebrina; por um imenso líder, não apenas em seu físico, mas por suas idéias e personalidade como Phillip Potter. E, também, por Ernst Lange, meu primeiro chefe, teólogo brilhante, apaixonado pelo movimento ecumênico, transparente. Sua frágil saúde o conduziu a uma morte prematura.

Lange assinala em seu livro “Sonho e Realidade do Movimento Ecumênico” 1 três pontos vulneráveis que ele denomina as três cruzes do movimento ecumênico. A primeira é a brecha crescente na credibilidade, ou, palavras sem conseqüências diretas. As ações do consenso global ficam em mãos das igrejas. A segunda cruz é que a instituição ecumênica só tem o poder “da sabedoria de seus argumentos” enquanto que as igrejas, que detêm o poder real, têm enormes dificuldades para exercitá-lo. A terceira cruz tem a ver com a única forma pela qual o universal do acordo verbal se concretize em sua própria prática, ou seja, que chegue ao membro da igreja e o liberte de seu aprisionamento paroquial. Isto foi dito há quarenta anos e mantém, ainda, a sua vigência como um problema não resolvido. Uma lacuna entre o exercício verbal e a possibilidade de torná-lo encarnado no cotidiano e no âmbito das bases.

Uma análise simplista destes 60 anos nos leva a ver o começo de uma disputa entre as igrejas para as quais a “tradição” é muito importante e aquelas que têm uma grande influência com relação à ética social.   As primeiras viram com preocupação que uma relação “vertical” com Deus podia ser esquecida em função de uma visão com uma dimensão “horizontal” com o próximo.  Os anos de sessenta e setenta foram anos de uma grande presença do CMI numa dimensão mundial, e muito concreta.  Tratava-se da luta contra o racismo, das relações entre igreja e sociedade, do papel das igrejas como gestoras do desenvolvimento, da questão dos direitos humanos.  O seu impacto no terceiro mundo foi muito importante, especialmente na América Latina e Caribe.  Nesta dinâmica foram várias as articulações ecumênicas que surgiram, num momento crucial, em nosso continente.  Para setores de nossas igrejas significou encontrar uma solidariedade até então não conhecida. Uma solidariedade que protegeu e salvou vidas.  Entretanto, já em 1966 se levantavam vozes preocupadas porque o foco da atenção se tinha movido para o ético e social. Os setores mais “católicos”, onde a tradição tem um papel protagonista, foram deslocando a ala da “práxis protestante” do movimento ecumênico. As ameaças da Igreja Ortodoxa de afastar-se do movimento ecumênico conseguiram acabar com um princípio de igualdade ecumênica que superava o tamanho ou a importância.  Não creio que isto tenha estado nas mentes de Nathan Söderblom, John R. Mott ou J.H. Oldham quando sonharam isto que, há sessenta anos, se  denominou de Conselho Mundial de Igrejas. Não se trata de um exagero; na última Assembléia, em Porto Alegre, a América Latina “perdeu um acento” no Comitê Central do CMI. Os Ortodoxos, na potestade que lhe deram os acordos obtidos não tiveram a necessidade de que um ortodoxo fosse eleito pela América Latina, simplesmente o designaram em sua cota  sem consultar a opinião da região. As possibilidades de um CMI outra vez com uma presença radical na sociedade tornam-se cada vez mais remotas.

Isto levanta uma questão que, para mim, é central: a unidade da Igreja está relacionada com a unidade da humanidade. Ernst Lange em seu livro diz: “A unidade significa que a Igreja deve ser signo de verdadeira koinonia num mundo dividido. A unidade da Igreja deve ser levantada do ponto de vista do presente na situação mundial.” A interdependência do mundo é uma prova radical para a Igreja porque a unidade dessa humanidade é um dos sinais do Reino.  Nessa interdependência a Igreja e o Movimento Ecumênico têm com que contribuir para a sobrevivência da humanidade?  É um modelo? É um agente? É um instrumento?

Lange vai além e afirma que “o que divide a sociedade, divide a Igreja. A Igreja é invadida pela luta de classes, as perguntas sobre justiça, a igualdade de oportunidades, a redistribuição do poder e dos recursos”; mais a frente acrescenta: “As Igrejas não foram apenas vítimas da desordem mundial mas, em muitos aspectos, elas mesmas foram parte da desordem...“  Basta apresentar apenas dois exemplos: na Assembléia de Porto Alegre foi dito, claramente, que quase dois terços do mundo ecumênico se encontram no hemisfério sul. O que não foi dito é que o poder real desse mundo ecumênico continua no hemisfério norte. O outro exemplo, é que um pequeno grupo de doadores se contrapõe a um grupo muito grande de recipientes. Na maioria das vezes prevalece o paternalismo e uma atitude em que o dar se torna uma humilhação para o outro.

Se a Igreja e o Movimento Ecumênico não têm a capacidade nem o poder para resolver suas contradições em sua vida doméstica, a pergunta é se poderão fazê-lo para além de suas fronteiras. Não é uma questão de maior fidelidade, no que cremos, mas a incapacidade de influenciar a sociedade.  Num artigo para a revista “Signos”, de dezembro de 2007, dizíamos: “O movimento ecumênico deve ter a coerência que dá a credibilidade entre o que se afirma na universalidade ecumênica e a práxis concreta no que-fazer cotidiano entre as pessoas.”  Não se trata de uma coerência interna mais também de uma coerência externa.  Isto não é exclusivo do CMI mas se encontra também em nossas estruturas latino-americanas.

Ignácio Ramonet do “Le Monde Diplomatique”  da Espanha afirma, na edição de julho de 2008: “Pela primeira vez, na história econômica moderna, três crises de grande amplitude – financeira, energética, alimentar - estão coincidindo, confluindo e combinando-se. Cada uma delas interage sobre as demais, agravando, assim, de modo exponencial, a deterioração da economia real.” Há cerca de dois meses, recebi a visita de um amigo que pertence ao Congresso da República Bolivariana da Venezuela.  Uma das coisas que me dizia sobre a crise energética é que, para além das especulações, o real é que as reservas de petróleo estão se esgotando em termos mundiais. Um artigo de Marcelo Onesto, na mesma edição do “Le Monde Diplomatique” afirma:” ... o certo é que a relação entre as reservas provadas e a extração mantém uma marcada tendência declinante ao longo dos anos. Enquanto que há uma década as reservas equivaliam a 36 anos de extração, hoje em dia representam 23 anos. “ O Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, referiu-se, ainda há pouco, à “ressaca de Wall Street”, ao falar da crise financeira.  Entretanto, a partir já do ano passado, e contradizendo a ideologia de que o Estado não deve intervir, vem derramando uma torrente de fundos para conter o colapso que ainda não pôde estancar. Um artigo intitulado  “O Coração do Desastre Econômico”, de Robert B. Reich, de 4 de agosto de 2008, que circula na Internet, apresenta a crise de forma bem simples. Não se trata de uma queda da economia. O problema é muito mais profundo. Para a maioria dos norte-americanos os salários não têm estado à altura dos incentivos que recebem para gastar. Não é um fenômeno novo mas, finalmente se chegou ao limite do endividamento.  Não há mais poder de compra para as coisas e serviços que o sistema produz. A bolha se acabou.

No artigo que publicamos em “Signos” mencionávamos o novo fenômeno progressista no espaço político-social que nossa região enfrenta, pleno de expectativas, possibilidades e sonhos. Ignacio Ramonet dizia, então: “Tem-se certeza de que algo novo está emergindo, mas ninguém sabe, claramente, quais são seus perfis”. Esse novo assinala na direção de justiça social, eqüidade e que vastos setores relegados aspirem a uma melhor qualidade de vida. No dia 6 de agosto de 2008, um artigo distribuído por Ecupress a partir de uma entrevista a Walter Sutter (ex-diplomata e analista suíço)  confirma esta tese: “América Latina vive um momento nunca antes visto em sua história. Um fenômeno novo que não se vê em outras regiões do mundo.”  Este fenômeno, no marco institucional, legal, não violento, é um fenômeno novo.  a isto se agrega uma notícia que não teve maiores comentários:  a criação da União das Nações Sul-americanas (UNASUR) em 23 de maio de 2008, no Brasil, aumentando para 123 o número de países que se comprometem demonstrando uma vontade de integração.  Isto marca também o crescimento da influência de Brasil no continente que Raul Zibechi da revista “Brecha” chama de : “A diplomacia mais hábil do mundo”.  Todo este contexto esteve ausente da assembléia do CLAI em Buenos Aires. Continua estando ausente na maioria das Igrejas ecumênicas do continente.

Em seu livro, Lange percebe o movimento ecumênico como “o maior movimento cristão massivo de protesto contra a forma pela qual a cristandade, com suas alianças com o poder, se transformou; forma que é exatamente a oposta daquela que deveria ser” e, acrescenta “que relevância, que importância tem este estar juntos ecumenicamente? Que capacidade revela para renovar a Igreja e a Sociedade? O que é ou o que movimenta o mundo e o que é que está mudando?”

Não se trata de uma ilusão. Em meus quase 40 anos de atividades no mundo ecumênico tenho assistido processos renovadores que sinalizam que outro ecumenismo é possível, mas as estruturas, não importam quais, têm procurado detê-los. Lange se refere a “renovação e renovação radical”, como um instrumento necessário.  Chega ainda a dizer :”confrontados com as possibilidades de conflito no mundo e a influência dessas possibilidades na própria Igreja, a pergunta que se coloca é se a Igreja, como existe agora, realmente é a Igreja.”

Eu acrescentaria que Deus nos coloca num tempo de desafios e oportunidades, com suas dores e com as feridas da divisão.  Devemos abrir nossos olhos e mentes à realidade que nos rodeia e a esse tempo de Deus. Reconhecer como podemos, juntos, oferecer a contribuição que faça a diferença.  É preciso lutar pela coerência entre o que afirmamos o compromisso real. Deus é maior que nossas estruturas e pretensas grandezas. a meta é o Reino. O futuro reclama uma ecumenismo que se consuma na construção desse Reino que nos inclui a todos e a todas.

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Rev. Oscar Bolioli, pastor da Igreja Evangélica Metodista do Uruguai. Presidente do Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina (Ciemal).  Foi durante muitos anos Diretor para América Latina e Caribe do Conselho Nacional de Igrejas Cristo dos EUA.

Traduzido do espanhol por Zwinglio M. Dias


Lange, Ernst, And yet it moves. Geneva: Christian Journals Limited – WCC, 1979