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TEMPO & PRESENÇA
Ano 7 - Nº 27
Agosto de 2013
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Violência doméstica e religiosa contra crianças e adolescentes: interface na violência de gênero
Por: Ilcelia Soares

Mães zelosas, Pais corujas Vejam como as águas De repente ficam sujas... Transformai As velhas formas do viver.  Ensinai-me oh pai O que eu, ainda não sei mãe senhora do perpétuo
Socorrei!...  Gilberto Gil


No Brasil, a discussão sobre a temática da violência contra crianças e adolescentes surge nos anos 80 com a atuação de pediatras, criando as primeiras agências especializadas no atendimento aos infantes. No final dos anos 1980 e início de 1990, as organizações não governamentais contribuíram para tirar a violência doméstica da invisibilidade, com o apoio de movimentos sociais feministas e dos direitos humanos.
Por sua vez, a violência doméstica contra crianças e adolescentes coexistem nas relações com abuso de poder, na convivência desigual e adultocêntrica, em meio à pessoa adulta/autora de violência (sujeito e produtora de violência) e criança-adolescente/pessoa em situação de violência (objeto de violência). Nesse caso, violência essa que encontra lugar de manifestação na comunidade, na casa, na família e na igreja e/ou nas comunidades de fé.

A violência doméstica contra crianças e adolescentes deixa marca tanto nas meninas quanto nos meninos, e se caracteriza como fenômeno recorrente. Os meninos sofrem mais violência física doméstica, na infância; e as meninas, também na adolescência; e a sua “taxa de recidivas é de 50% a 60% ,quando não se instauram as medidas de proteção”.
As pessoas autoras de violência doméstica são homens e mulheres que exercem funções parentais, de quem crianças e adolescentes dependem, e em quem confiam. O homem aparece predominantemente como autor de violência física e sexual e a mulher como a autora de violência física e psicológica doméstica contra crianças e adolescentes.
No momento, em que a mulher e mãe se destaca como a autora de violência doméstica com seus filhos e filhas, o que é percebido e identificado é que essa conjuntura diz respeito a um ciclo maior em que todas as pessoas são atingidas: de forma padronizada o homem/marido violenta tanto a mulher/esposa quanto os filhos e as filhas, e a mulher/mãe, por sua vez, violenta os filhos e as filhas. O pai estabelece relação violenta com a mãe e, por conseguinte, desencadeia violência da mãe para com os filhos e/ou filhas.
Partindo da premissa de que tanto a violência contra a mulher, quanto a violência doméstica contra crianças e adolescentes acontecem em ciclo, e estes são marcados por fases, sua manifestação ocorre, de acordo com cada relação estabelecida pelo casal, e pela família: entre pessoas adultas e entre mães/pais e filhos e filhas.

Nessa configuração, em que os pais e as mães aparecem como autoras e autores de violência, e os filhos e filhas como pessoas em situação de violência, a postura dos sujeitos da violência com relação a filhos e filhas é marcada por abuso de poder, sendo esse poder legitimado como disciplinador e natural, ou até mesmo como preceito divino.

O fato da violência doméstica aparecer como algo “natural”, provavelmente sinaliza não somente a banalização da violência na sociedade, como também a legitimação dessa violência no seio das famílias (independente do credo religioso) como algo que faz parte da educação doméstica e da orientação bíblica, em que as pessoas adultas exercem sua autoridade como abuso de poder para educar crianças e adolescentes: batendo, castigando fisicamente, humilhando e exigindo obediência incondicional.

Os espaços familiares em que se defende o uso da força física como meio de educar, possibilitam que os pais e as mães ensinem seus filhos e filhas a aceitarem e aguentarem a violência como algo natural, apropriado para seu processo educativo e religioso. Geralmente a dinâmica de uma família que vive em situação de violência doméstica aponta para relacionamentos conflituosos nos subsistemas; tanto entre o casal parental, quanto entre os pais, as mães, e os filhos e as filhas.

Contudo, nos casos em que a mulher e mãe aparecem como autora de violência, ela admite ter cometido a violência doméstica contra seus filhos e filhas, e afirma ter ido em busca de ajuda, seja na ONG, seja no conselho tutelar, na psicoterapia com a psicóloga, e/ou na igreja. Com isso, pode-se considerar que essas mulheres há muito tempo não compactuam em manter a violência silenciada; Elas rompem com o pacto do silêncio.

No cotidiano, as famílias trazem em suas falas, a presença do religioso, da “ajuda divina e misericordiosa” para educar seus filhos e filhas.  Paradoxalmente, observa-se que a mesma família pode fazer uso de uma retórica religiosa com apelo a Bíblia como forma de justificar as violências cometidas por pais e mães. Lideranças das comunidades de fé também não estão isentas de  exercerem um abuso de  poder religioso respaldado em textos da Bíblia na defesa da perpetração da violência física contra meninas e meninos reproduzindo o mesmo modelo que está na sociedade: a violência de gênero.

Diante disso, as comunidades de fé e as casas de formação religiosa, têm a responsabilidade de desconstruir, desmitificar os ensinamentos de textos bíblicos que são interpretados equivocadamente sobre as mulheres e as meninas e sobre as violências. Alguns destes textos bíblicos são utilizados para legitimar as violências, geralmente, lidos e usados por alguns fiéis e lideranças, ainda hoje, fora de contexto e da cosmovisão da época em que foram escritos.

A igreja é convocada para o seu papel profético. Olhar para o problema e denunciá-lo. Sair às ruas, colocar-se ao lado das mulheres, meninas, meninos e das organizações que atuam na busca da justiça, da inclusão, da saúde e da vida – direitos de cidadania, que serão obtidos através da consciência e da mobilização popular.

Cabe às comunidades de fé a responsabilidade de pensar profundamente sobre seu papel sociopolítico, pedagógico e cultural na prevenção e no enfrentamento das violências contra as mulheres, meninas e meninos.

Ilcelia Soartes - Psicóloga, mestre em psicologia clínica na área de família e interação social, pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).  Especialista em violência doméstica pela Universidade de São Paulo (USP), ativista em HIV-AIDS pela Articulação AIDS de Pernambuco.  Professora convidada do Seminário Anglicano de Estudos Teológicos (SAET) da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB). Contato Diocesano do Serviço Anglicano de Diaconia e Desenvolvimento (SADD) na Diocese Anglicana do Recife  (DAR) e membro da Secretaria de Diaconia Social e Direitos Humanos da DAR