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VOZES DE ALERTA SOBRE A CRISE...
Ano 9 - Nº 28
Junho de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
PT, “síndrome do Flamengo”, mito de origem e dilemas do presente
Por: Ignacio Godinho Delgado
Data: 03/06/2015

Síndrome do Flamengo é uma expressão cunhada por Fábio Wanderley Reis nos idos da década de 1980, para identificar certo padrão de comportamento presente no “eleitorado popular” brasileiro, “em cuja percepção não se integram senão precariamente os diversos aspectos ou dimensões do universo sociopolítico”, embora efetue escolhas dotadas de “consistência e estabilidade”, vinculadas “ao contraste vagamente apreendido entre o popular e o elitista (‘pobres’ versus ‘ricos’, ‘povo’ versus ‘governo’)”, que se reitera em diferentes momentos, “assentada a poeira das perturbações do quadro partidário (...), em seguida a cada rearranjo mais ou menos artificial ou imposto desse quadro” (Reis, 2000: 78-79). Reis considerava que esse padrão explicava, por um lado, “o crescente êxito eleitoral de um PTB de pré-64 ou a afirmação eleitoral de um MDB a partir de 1974, bem como os prospectos favoráveis que se abrem para o PT”, e, por outro, a “renovada atração eleitoral personalista” exercida por figuras que conseguiam canalizar para si tal inclinação do “eleitorado popular”(Reis, 1988:23)

Não obstante a idealização implícita das opções políticas de eleitores de qualquer extração social em outras paragens, além de qualificações que faremos à frente, a noção de síndrome do Flamengo capta com acuidade o singular processo de aprendizado e formação das identidades políticas nos setores populares brasileiros. Ela indica, também, como tal processo é frequentemente embaraçado pelas elites políticas conservadoras, por via do “rearranjo mais ou menos artificial ou imposto” do quadro partidário, efetuado especialmente quando as opções firmadas entre os setores populares adquirem “consistência e estabilidade”. Por fim, a noção de síndrome do Flamengo -  daí sua evocação nesse momento - pode servir para alguma cautela nas avaliações em curso, no campo da esquerda, sobre o futuro do PT, bem como sobre a oportunidade e eficácia de iniciativas que mirem a constituição de outras alternativas partidárias para canalizar e dar expressão aos interesses dos setores populares na cena política brasileira. Voltaremos a isso.

Duas qualificações à noção de síndrome do Flamengo são decisivas para compreensão das opções políticas dos setores populares no Brasil. A primeira emerge de considerações sobre as alternativas partidárias que Reis tomava como exemplo. O PTB e o PT, conquanto constituídos a partir de culturas políticas distintas, ergueram-se a partir de extensa base sindical, ambos firmando uma identidade política associada à representação dos interesses dos trabalhadores. Assim, se o “eleitorado popular” procede de forma “tosca” na avaliação de Reis (que se ancora na controversa noção de populismo), sua percepção dos lados na estrutura social e na cena política, no caso do PTB e do PT, denota certa clivagem e componente classista nas escolhas que se afirmam a partir da síndrome do Flamengo. Já a opção pelo MDB acabou por se impor em decorrência do bipartidarismo na ditadura. Quando esse deixou de existir, o PMDB viu esvaziada sua imagem de representante do “eleitorado popular”, na medida em que outras alternativas apresentavam-se para o exercício do aprendizado que se associa à operação da síndrome do Flamengo.

A segunda qualificação refere-se exatamente às sutis diferenciações no comportamento político dos segmentos que compõem o “eleitorado popular”. O desempenho eleitoral do PTB, até o golpe de 1964, e do PT, até 2002, sempre foi muito expressivo junto aos trabalhadores do mercado formal detrabalho, mas errático junto aos segmentos populares dele excluídos. De fato, conquanto compartilhem espaços comuns de sociabilidade com os trabalhadores do mercado formal no mundo urbano, as pessoas dele excluídas, ao longo da trajetória brasileira de desenvolvimento, não puderam dispor (especialmente até 1988), dos mecanismos de proteção associados à de cidadania regulada - referente ao conjunto de benefícios assegurados aos que possuem carteira de trabalho (Santos,1979). Além disso, sempre ficaram mais vulneráveis diante do fenômeno inflacionário - que acompanhou a trajetória brasileira de desenvolvimento -, cujo impacto era contornado parcialmente, por empresários e trabalhadores formais, segundo diferentes mecanismos da convenção da estabilidade presumida (Castro, 2012) 1. Certa feita denominamos de coalizão inflacionária a complacência com que sindicatos e associações empresariais assistiam, antes de 1964, à elevação dos preços (Delgado, 2007). No limite, ela incorporava o aumento da tributação incidente sobre a folha de pagamentos, garantindo o alargamento dos benefícios assegurado pela previdência social brasileira aos trabalhadores formais (que, desde 1954, tinham salários reajustados acima da inflação), a rigor custeados pelo conjunto dos consumidores, dentre os quais uma imensa e diversificada massa de trabalhadores autônomos, rurais e empregadas domésticas. Investigando a relação do sindicalismo brasileiro com os trabalhadores situados fora do mercado formal entre as décadas de 1950 e 1990, Valéria Lobo demonstrou que, apesar das variações verificadas ao longo do período, os últimos nunca foram plenamente incluídos nas pautas e ações dos primeiros (Lobo, 2010).

Por isso, nem sempre o trabalhismo, em sua expressão petebista/varguista e petista/lulista, embora uma expressão da síndrome do Flamengo, conseguiu atrair o conjunto do “eleitorado popular”. Por vezes a retórica da direita alcançava este feito, construindo identidades difusas para os setores populares -  dissociadas de clivagens de classe -, contrastadas a outras igualmente difusas, a exemplo dos descamisados e dos marajás de Collor, em que a chave para a distinção dos dois polos era a suposta presença de privilégios entre os marajás, o que permitia serem identificados em qualquer grupo situado em posição acima de quem os observa. Ademais, a inflação sempre foi tema decisivo nos discursos que embalaram os êxitos políticos da direita, como no golpe de 1964, nas eleições pós Plano Cruzado, em 1986, e na vitória eleitoral de Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Um flagelo para todos os setores populares, a inflação atinge mais duramente os segmentos destituídos de alguma proteção, como a existente para quem pode dispor de reajustes periódicos, contas remuneradas e outros expedientes, além de contar, adicionalmente, com a ação coletiva sindical para minimizar perdas, num processo que, simultaneamente, reforça a identidade política trabalhista.

A eleição de 2002 foi um desses momentos em que os segmentos heterogêneos do “eleitorado popular” caminharam juntos, em boa medida por força do monumental carisma de Lula. A preservação do controle sobre a inflação e políticas como o Bolsa Família criaram condições para que tal arranjo se tornasse mais estável. Junto à elevação consistente do salário mínimo e da renda do conjunto dos setores populares, ela se integrava ao pacto proposto ao empresariado no Plano Plurianual de 2004-2007, que sinalizava para “um processo de crescimento pela expansão do mercado de consumo de massa e com base na incorporação progressiva das famílias trabalhadoras ao mercado consumidor das empresas modernas” (grifo nosso) (BRASIL-MPOG, 2003: 17). Tal perspectiva era parte decisiva de uma nova convenção, que poderíamos chamar de desenvolvimento com inclusão, detalhada e desdobrada em diversas políticas setoriais, ancorando-se, ainda, na construção de mecanismos de articulação com a sociedade civil, a exemplo das inúmeras conferências realizadas no governo Lula e da atuação de organismos como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.

Com tal arranjo o PT alcançou mais três vitórias nas eleições que se seguiram à sua ascensão à presidência em 2002, num cenário marcado por um combate sem tréguas de seus adversários. Em 2003 o desafio veio da esquerda, resultando no aparecimento do PSOL, a reunir críticos do ajuste fiscal e da reforma da previdência conduzidos por Lula. A partir de 2005, iniciou-se a longa e diuturna batalha da mídia tradicional contra o governo do PT, o partido e o petismo, no rastro do chamado mensalão. Voltava à cena o velho expediente udenista de preencher o debate político exclusivamente com denúncias de corrupção, dada a secular incapacidade da direita de apresentar alternativas reais para sensibilizar o “eleitorado popular”. De todo modo, firmavam-se os elementos principais do discurso antipetista, que amoldou-se ao ressentimento de certos segmentos da classe média, aguçado pela proximidade dos pobres em espaços nunca dantes frequentados, sob o embalo de campanha furiosa da mídia, a fomentar um novo padrão de idiotia, combinando esnobismo, incultura, desinformação e agressividade inauditas.

Registre-se que o PT e o governo pouco fizeram para combater tal discurso. Diversas medidas tomadas nos governos do PT – Portal da Transparência, criação da CGU, fortalecimento e acentuação da autonomia da Polícia Federal e do Ministério Público –, conquanto dirigidas à acentuação do combate à corrupção, eram pouco destacadas nas inciativas de comunicação do governo e do partido. Assim, a maior visibilidade conferida à ocorrência da corrupção, resultante de tais medidas, podia ser explorada pela mídia como expressão de um crescimento da própria corrupção – e não do combate a ela.  Além disto, o partido adaptou-se ao padrão das campanhas eleitorais brasileiras, cujos custos elevados representam um dos principais estímulos à ocorrência de relações promíscuas de agentes públicos e empresas, sem propor de forma aberta o debate sobre medidas que estabelecessem limites à participação do setor privado nos processos eleitorais. Nas campanhas nacionais do PT, o tema da corrupção só foi abordado na disputa pela reeleição de Dilma e o tema da reforma política apenas depois das manifestações de 2013 ganhou destaque na agenda do governo e do partido. Por fim, confortado com os efeitos eleitorais imediatos da ascensão social de segmentos do “eleitorado popular”, eximiu-se o PT de promover um debate político-ideológico capaz de firmar a compreensão dos elos que uniam tal processo à construção de um projeto soberano e solidário de Nação. Facilitava-se, assim, a afirmação de percepções individualistas sobre as mudanças em curso, abrindo espaço para a disseminação de valores conservadores no “eleitorado popular” e para a abordagem moralista do fenômeno da corrupção, identificada às inclinações intrínsecas de determinados grupos e não ao funcionamento inadequado das instituições.

A vitória de 2002 assentou-se em ampla coalizão refratária à continuidade das políticas neoliberais, com seu cortejo de vulnerabilidade externa, erosão da capacidade governativa do Estado, regressão social e desnacionalização da economia. Realista (para parte da esquerda em excesso), tal coalizão comprometeu-se com a estabilidade, por um lado acalmando o capital financeiro, e, por outro, assegurando o controle da inflação, condição decisiva para a preservação da unidade e apoio do “eleitorado popular”. Intocado o regime de metas inflacionárias, a política macroeconômica pouco colaborou para o estímulo à indústria, embora a ampliação das reservas cambiais, em situação crítica no governo anterior, estabelecesse uma importante demarcação com o passado recente, reduzindo a vulnerabilidade externa da economia brasileira. Reaparecia, por sua vez, a política industrial, mirando a elevação da capacidade, a modernização das empresas e a inovação, através de instrumentos diversos como as linhas de financiamento do BNDES, compras públicas, assistência técnica e isenções tributárias, embora não compensasse plenamente a pressão dos importados2. No segundo mandato de Lula, que alcançou níveis estratosféricos de popularidade, foram mantidas e aprofundadas as políticas de inclusão e acentuou-se, com o PAC, o investimento público, retomado em 2006. Não se assistiu, contudo, à reapresentação de propostas abrangentes de reformas, como a tributária, sindical, ou previdenciária (presentes até 2005), ou, ainda, a reforma política e a regulação do sistema de comunicações (esta última destacada por diferentes segmentos de esquerda), denotando, a partir da crise política de 2005, a adoção de crescente cautela e pragmatismo na relação com o parlamento, no âmbito do presidencialismo de coalizão 3.

No primeiro mandato de Dilma Rousseff, em seguida à adoção de um programa de ajuste fiscal no primeiro ano de governo, prosseguiu a política de indução do crescimento através do investimento público, orientado ao enfrentamento de antigos dilemas da infraestrutura, e foi proposta uma nova política industrial, com o objetivo mais definido de fortalecer a capacidade de inovação. Perseverou, contudo, a toada oposicionista da mídia, de forma ainda mais intensa que sob Lula, e surgiram rachaduras no pacto proposto desde 2002, com o enfraquecimento das conexões do governo com o empresariado. A rigor, não obstante a pressão dos importados, favorecida pelo câmbio valorizado, no governo Lula até 2010, a indústria brasileira apresentou desempenho expressivo, proporcionado pela ampliação da demanda e as políticas de apoio. O redirecionamento mais intenso das exportações asiáticas para a América Latina, por força da crise europeia, e os elevados estoques criados com a expansão superlativa de 2010, refrearam a disposição de investir dos empresários, que voltaram a flertar com a abordagem do Custo Brasil, central no discurso neoliberal da década de 1990, associando a elevação da competitividade das empresas à precarização das relações de trabalho e à contenção salarial. Proposições para revisão da política de valorização do salário mínimo e de extinção da cobrança do adicional de 10% na multa do FGTS pago pelas empresas em caso de demissão sem justa causa, todavia, foram rechaçadas pelo governo Dilma Rousseff que, alternativamente, dispôs-se a enfrentar o calcanhar de Aquiles do arranjo firmado após a ascensão de Lula à presidência – a combinação de câmbio sobrevalorizado e juros altos para conter a inflação, fórmula herdada do governo Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, algum voluntarismo na condução da política econômica e o esvaziamento dos frágeis mecanismos de coordenação da política industrial, associado a certa passividade na política de comunicação do governo, acentuaram a distância com o empresariado, contido em sua disposição de investir, apesar de medidas como a desoneração da folha de pagamentos e as linhas de crédito do BNDES.

Desta forma, era favorecida a disseminação de um ambiente de instabilidade, magnificado pela mídia com o propósito de desalojar o PT da presidência. Ainda assim, a vitória de Dilma Rousseff num pleito acirrado evidenciava a profundidade dos laços que ainda ligavam o PT ao “eleitorado popular”. Será que em quatro meses do segundo mandato de Dilma Rousseff esta construção que atravessa quase quatro décadas finalmente conheceu seu canto do cisne?

O PT que alcançou a presidência em 2002 e nela tem se mantido desde então passou por um tortuoso processo de mutação e aprendizado desde seu nascimento ao final da década de 1970. No seu partejar e anos iniciais de existência, o partido afirmou-se como a negação de tudo que está aí, rejeitando qualquer elo de continuidade com o passado. Leito em que confluía uma nova geração de sindicalistas, sem qualquer conexão com as lutas das décadas de 1950 e 1960, além de correntes marxistas e da esquerda católica (cada qual, a seu modo, profundamente crítica do veio principal da tradição comunista), com uma forte pitada da sociologia da USP, o PT dissociou-se do velho PTB e do PCB. Os antigos trabalhistas se dispersaram em diversas agremiações, embora sua principal liderança, Leonel Brizola, mantivesse um importante protagonismo na cena política brasileira até sua morte, à frente do PDT. O PCB, que ao final da Segunda Guerra parecia representar uma alternativa real ao que seriam os processos de construção identitária associados à síndrome do Flamengo, perdeu seu timing, por força dos longos anos na ilegalidade, da crise do movimento comunista e do aparecimento do PT. Por causa disso, diversos nomes vinculados à tradição do PCB desenvolveram forte ressentimento com o PT e o petismo, o que tem embalado seu sucedâneo mais destacado, o PPS, à triste trajetória em direção à direita.

A possibilidade inesperada de êxito eleitoral em 1989  representou, de certa forma, um momento de inflexão na trajetória do PT. A épica campanha eleitoral de Lula, foi o momento culminante da trajetória anterior e a evidenciação de seus limites. A partir daí, o partido não só seria o adversário a ser batido em todos os pleitos presidenciais que se seguiriam, como também ele próprio passou a guiar-se de forma mais definida para a concretização da possibilidade da vitória e da construção de condições para governar. Além do apego crescente e inevitável à dinâmica institucional, comum a todos os partidos de esquerda que tomam a decisão de jogar o jogo eleitoral, na década de 1990 o PT conheceria mudanças importantes em sua política de alianças, abrindo-se a coalizões com o empresariado e partidos políticos conservadores, além de reconciliar-se com o nacionalismo e a tradição trabalhista de extração varguista, revalorizadas face aos efeitos deletérios da política neoliberal colocada andamento desde o governo Collor. Ainda assim, perdeu duas eleições para direita, favorecida pelas facilidades de consumo derivadas do controle da inflação, ancorado na dobradinha câmbio valorizado e juros altos.

Quando venceu em 2002 o PT já não era mais o partido dos primeiros anos. Nem poderia sê-lo. A lembrança desta fase heroica, essencial na fundação da identidade petista, por certo pode servir à correção de rumos, no sentido de alertar o partido para a necessidade de reiterar continuamente seus laços com a base social que lhe deu vida, no discurso e na organização da estrutura partidária, mas não é suficiente para enfrentar os desafios do presente. Para habilitar-se à presidência o PT soube construir pontes com o passado e dialogar com atores antes desconsiderados.  Além disso, o êxito de seus governos envolveu a capacidade de forjar a unidade do “eleitorado popular”, inclusive com o controle da inflação, além de propor ao empresariado nacional uma nova convenção para o desenvolvimento. O eventual fracasso do PT não favoreceria outras alternativas à esquerda, mas viria a favorecer “o rearranjo mais ou menos artificial ou imposto” do quadro partidário, dificultando a expressão política do “eleitorado popular”, fadado a percorrer mais uma vez o caminho das pedras em busca de uma identidade política capaz de representa-lo. Não é sem razão que o alvo principal da direita e seu braço midiático tem sido sempre o PT, como fora, nas décadas de 1950 e 1960, o PTB. Não é sem razão que até sua colocação na ilegalidade foi cogitada por figuras como Aécio Neves, este estranho personagem, surgido à sombra de seu avô, Tancredo Neves, para desonrar sua memória, ao abraçar o discurso, o vocabulário e os métodos do udenismo, além de flertar com atitudes de inclinação claramente fascistas.

O principal desafio do PT é redesenhar o pacto proposto em 2002, num cenário de maiores dificuldades no cenário econômico internacional e fortes restrições fiscais, preservando sua identidade trabalhista e a unidade do “eleitorado popular”. Calibrar a passagem a um novo padrão de crescimento, que desfaça a armadilha cambial e dos juros, com seus efeitos deletérios sobre a indústria, minimizando os impactos sobre a inflação, é condição decisiva para preservação da unidade do “eleitorado popular” e a contenção da disposição do empresariado em seguir o caminho de Damasco, ao inclinar-se para a linha de menor resistência, atribuindo ao custo do trabalho suas dificuldades do presente. Se este último caminho prosperar, compromete-se de forma considerável o propósito de se construir um mercado de consumo de massas, ancorado na elevação da participação dos salários e da renda dos setores populares, que provoque os efeitos virtuosos de indução sobre a disposição de inovar do empresariado, conforme nos ensinava Celso Furtado (Furtado, 1979). Na construção dessa travessia, é absolutamente crucial dinamizar os fóruns de interlocução entre os diferentes atores envolvidos. Não é com pacotes e surpresas que se constrói um clima de confiança para a pactuação do desenvolvimento.

Do ponto de vista estratégico, sabe-se que a democracia brasileira exige uma reforma política e nova regulação do sistema de comunicações. Todavia, os passos nesta direção têm que considerar as condições do terreno. Vivemos um tempo sombrio, de afirmação de valores conservadores e acentuação da presença política da direita, especialmente no congresso. Mudanças incrementais têm mais possibilidade de êxito que o confronto de proposições abrangentes e polares. Não se trata de evitar o debate, que precisa ser acentuado na sociedade, destacando os déficits à representação e à pluralidade que derivam da natureza do sistema eleitoral brasileiro e da perversa concentração da mídia no país, evocando, inclusive, de forma didática, os padrões existentes em outros países, de longa tradição democrática, cuidadosamente ocultados pela direita política e midiática. Todavia, nos dias que correm, vale mais mudar pouco, na direção certa, do que perder tudo. Assim, no congresso importa construir acordos que evitem retrocessos e assegurem, se possível, algum avanço.

Por fim, desafios cruciais para o PT são o reparo dos danos criados em sua imagem pelos ataques sistemáticos que tem sofrido, a reconstrução dos laços com sua base social tradicional e a definição de mecanismos de incorporação dos segmentos que as políticas de governo beneficiaram, mas que não foram integradas ao discurso e à dinâmica partidária. Não há respostas prontas para o enfrentamento de tais desafios. O certo é que exigirá disposição para responder de forma convincente, sistemática, clara e amplamente a todas as denúncias dirigidas contra o PT. Exigirá, também, abertura para redimensionar a própria maneira de funcionamento do partido, aproximando-o especialmente das novas gerações, que não viveram sua trajetória, superando certos ritualismos burocráticos esterilizantes e estabelecendo espaços de intermediação com diferentes atores sociais com a incorporação dos instrumentos de comunicação que emergiram desde a década de 1990.

Poderá o PT enfrentar tais desafios? O aprofundamento da democracia brasileira e a construção de um desenvolvimento soberano e inclusivo exigem que sim.
Referências

  • BRASIL – MPOG (2003) Plano Plurianual 2004-2007- Mensagem Presidencial. Brasília: MPOG.
  • CASTRO, A.B. (2012) “Brasil: Desenvolvimento Renegado”. In CASTRO, A. C. & CASTRO, L. B. (org)  Do Desenvolvimento Renegado ao Desafio Sinocêntrico – Reflexões de Antônio Barros de Castro sobre o Brasil. RJ/SP: Elsevier /Campus.
  • DELGADO, I.G (2007) “O Empresariado Industrial e a Gênese das Políticas Sociais Modernas no Brasil” Locus: revista de história, 13 (2), pp. 135-160. Juiz de Fora: Editora da UFJF.
  • DELGADO, I.G (2015) “Política industrial na China, na Índia e no Brasil: legados, dilemas de coordenação e perspectivas”. Texto para Discussão. Nº 2059. Brasília: IPEA.
  • FURTADO, C. (1979) Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. 7ª Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional
  • LOBO, V. M. (2010) Fronteiras da Cidadania: sindicatos e (des)mercantilização do trabalho no Brasil – 1950-2000. Belo Horizonte: Argvmentvm
  • REIS, F. W. (2000) “Identidade, Política e Teoria da Escolha Racional”. In Reis, F.W Mercado e Utopia. São Paulo: Edusp, pp. 63-82. (Publicado pela primeira vez em 1988, na Revista Brasileira de Ciências Sociais, 6 (3), 1988)
  • REIS, F.W. (1988) “Consolidação democrática e construção do Estado – notas introdutórias e uma tese”. In Reis, F.W & O’Donnel, G. A Democracia no Brasil – Dilemas e Perspectivas. São Paulo: Vértice, pp. 13-40.
  • SANTOS, V. G. (1979). Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campus

 

*Professor de História e Ciência Política na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED). Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e foi Visiting Senior Fellow na London School of Economics and Political Science (LSE), entre 2011 e 2012. Publicou diversos trabalhos sobre os dilemas da cidadania e do desenvolvimento, bem como sobre o empresariado industrial e a trajetória das políticas sociais e industriais no Brasil. Atualmente dedica-se à análise histórica comparativa das políticas industriais contemporâneas.

A estabilidade presumida, segundo Castro, seria, no contexto do desenvolvimento brasileiro até a década de 1980, uma convenção que assegurava a disposição dos empresários investirem num cenário de inflação recorrente, dada a presença de mecanismos definidos para contorná-la, minimizando perdas. Junto à convenção do crescimento garantido, assegurado pelos investimentos das estatais a sustentar o crescimento continuado, operava como um equivalente funcional das agências coordenadoras de outras formas de desenvolvimento liderado pelo Estado.

Sobre a política industrial nos governos do PT ver Delgado (2015).

Registre-se, contudo, na política de comunicações do segundo mandato de Lula, a mudança nos critérios de distribuição dos recursos da propaganda governamental, que foram descentralizados, com maior participação de veículos locais. Ademais, em dezembro de 2009 realizou-se a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), sinalizando para a proposição de uma nova regulação da mídia no Brasil, no sentido de acentuar sua diversidade e pluralidade. O governo Dilma, contudo, não deu continuidade a tais iniciativas.