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BRASIL, PAÍS DE TODOS?
Ano 2 - Nº 5
Novembro de 2007
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
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Que bom ser criança, meu mundo é brincar
Por: Maria Helena Masquetti

Ao lado do prédio onde moro, havia uma escola infantil construída num terreno arborizado onde uma cerca viva, quase simbólica, separava o pátio de um pomar contíguo. Repleto de árvores frutíferas, pássaros multicores, gatos sem teto e um papagaio alucinado por burburinho de crianças, o pomar era protegido por dois cachorros vira-latas que há muito já haviam sido corrompidos pela farra de compartilhar com a molecada a aventura de subir nas árvores. Para brincarem de “selva” e roubarem as frutas. Os donos – um casal de professores baianos – pareciam fazer vista grossa àquela usurpação miúda do patrimônio comunitário com a alegação descarada de que ”O bom de tanta fruta caída é que a passarinhada aumenta cada vez mais...”.

O privilégio de assistir àquele espetáculo diário da janela de meu apartamento num oitavo andar não era suficiente para atenuar a certeza aflita de que, mais dia menos dia, aquele cenário sucumbiria a uma proposta irrecusável de demolição. A escola ocupava um dos últimos terrenos nos arredores da Avenida Paulista, uma clareira verde no meio da densa floresta de bancos, hospitais, restaurantes, lojas e outros bichos estranhos à natureza. Amparada por uma negação meio cúmplice, substituía, de vez em quando, aqueles presságios tristonhos pela travessura secreta de me debruçar na janela, transformando-me numa perigosa espiã eleita pela imaginação dos pequenos. Quando o sinal do recreio tocava e, então, a invasão dos alunos era permitida, destituiam-me de minhas funções de inimiga, transformando-me em platéia animada para suas estripulias, ora me dando tchauzinho – e eu dando também -, ora fazendo caretas, mostrando-me a língua ou oferecendo-me frutas na esperança de que, tal como a Mulher-Elástico, eu as conseguisse apanhar.

Aproveitando a providencial técnica moderna dos filmes, vou abreviar os pormenores doídos da destruição daquele cenário com um corte rápido para o edifício espelhado que em poucos meses lá se ergueu: um flat para executivos. Homens e mulheres dinâmicos que, próximos às suas janelas, vejo andar de um lado ao outro. Gesticulando e gargalhando estrategicamente, entabulam conversas nervosas, em celulares minúsculos, com pessoas em cujos olhos talvez não convenha olhar de frente para êxito maior dos negócios. Desencantada com a nova paisagem, decidi mudar-me para outro apartamento, um que me cativou mais que os outros, nem tanto pelas acomodações, mas pelo terreno baldio ainda repleto de verde que fica ao lado do prédio. Sei que será por pouco tempo, um dia as máquinas chegam e outro edifício crescerá ali da noite para o dia. Mas, para quem viveu tanto tempo com uma janela aberta para esse mundo criança, é difícil agora suportar a presença daquele cortinão de concreto erguido sobre as lembranças de um tempo tão vivo e tão de verdade em cores. E quando o novo edifício chegar, possivelmente desistirei de reagir a este empilhamento humano ao qual convencionou-se chamar de progresso.

Admitindo essa possibilidade, andei pesquisando nas lojas do ramo os preços de uma TV tela plana, de preferência bem grande, de modo a me lembrar a janela de onde eu assistia àqueles programas legais em tempo literalmente real. Certamente, preferirei a que tiver uma imagem bem nítida de modo a me convencer dos incômodos da experiência real. Talvez seja mesmo mais confortável olhar um temporal sem um pingo de água em minha roupa, encolhendo-me sob minha manta de lã no sofá. Ou sorrir a sós para a tela ante o burburinho alegre dos amigos reunidos na praia, sem danificar meus cabelos com a água salgada do mar. E por que não considerar também a economia de viajar pelo mundo sem ter que gastar tanto dinheiro, velejando sem ser fustigada pelo sol quente das férias ou mergulhando fundo e olhando nos olhos dos tubarões sem sentir qualquer frio na barriga. E porque não computar também a virtual alegria de colar meu rosto no do bebê sorridente sem o ônus de borrar minha maquiagem com seu beijinho molhado e o narizinho escorrendo. Materializada em pontos brilhantes de luz, terei a realidade a um toque no botão do controle remoto e a convicção do que devo sentir comprimida na assinatura do comercial de sanduíches “Amo muito tudo isso!”.

Andando pelas ruas e shoppings, as crianças que vejo agora são bem diferentes daquelas que eu via brincar no pomar da escolinha. No lugar das casinhas, do faz-de-conta e das bonecas que eram filhinhas, cada menina desfila e rebola mirando-se no espelho padrão de suas bárbies e susies, semelhantes na silhueta anoréxica e diferenciadas pelo arsenal de objetos supérfluos promovidos a necessidades pelas artimanhas do marketing. No lugar do estilingue construído com uma forquilha e borracha, meninos pequenos ainda, alvejam, com metralhadoras possantes, um suposto agente infiltrado. Cada um em seu posto de atirador de elite, concentrados no menor movimento do alvo, na tela solitária de seus video-games ironicamente classificados como equipamentos de última geração. O que acontecerá com a próxima? Como serão os filhos dos jovens executivos do flat imponente que cobriu de concreto aquele pomar de estripulias e abafou, com o concerto frenético das campainhas de seus celulares, a musiquinha impagável que eu ouvia da minha janela: “Que bom ser criança, meu mundo é brincar, de dia na escola, de noite no lar...”

MARIA HELENA MASQUETTI é psicóloga e integra a equipe do Projeto Criança e Consumo http://www.criancaeconsumo.org.br/, do Instituto Alana http://www.institutoalana.org.br/. Este texto foi publicado na Newsletter Projeto Criança e Consumo.