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EM DEFESA DA VIDA
Ano 3 - Nº 7
Março de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Vida: inter homines esse
Por: Kathlen Luana de Oliveira e Iuri Andréas Reblin

É corrente o mote, e é, pode-se asseverar, até consenso entre as pessoas, que a vida é um dom inalienável dado por Deus ao ser humano. É provável que ninguém em sã consciência negue tal expressão (à exceção de alguns anti-religiosos fervorosos, mas estes estão perdoados). Afinal, sem vida não haveria sociedade, não haveria cultura, não haveria religião. É por isso que a defesa da vida também se encontra nas constituições, nas leis religiosas, enfim, nas regras e nos preceitos que são considerados relevantes e que, de uma forma ou de outra, são utilizados como parâmetros para a convivência entre as pessoas.

A importância da vida está tão impregnada na consciência humana que pode ser identificada facilmente na criação e manutenção de hospitais, corpo de bombeiros, salva-vidas, para-médicos, bem como no desenvolvimento de pesquisas científicas capazes de descobrir como prolongar cada vez mais a vida. Todavia, será que a vida é mera existência, ou melhor, será que a vida é simplesmente a distância cronológica entre o nascimento e a morte? Este posto alto da vida na escala valorativa do ser humano também é evidenciado nas histórias, lendas, músicas e poemas que são ouvidos e contados de geração em geração, como aquele poema chamado Instantes, de autoria discutível (Nadine Stair ou Jorge Luis Borges?) em que um velhinho reitera todas as suas ações, caso tivesse a chance de viver sua vida novamente. No entanto, será que a vida pode ser definida simplesmente como o tempo entre o nascer e o morrer?

Não é só a importância da vida que está na consciência humana, mas também a luta pela qualidade dela. As pessoas querem viver e querem viver bem. É para isso e por isso que se ouve e se lê uma série de informações associadas ao bem-estar: a prática de caminhadas, a realização de dietas, o combate ao estresse, a busca pelo prazer, o exercício do lazer. Enfim, todos esses fatos e discursos estão aí apenas para ressaltar, quer seja explícita, quer seja implicitamente, que a vida é importante, que ela é única, que ela é uma dádiva e que ela não é nem descartável, nem alienável; embora deva obrigatoriamente ser considerada muito mais (e esse é realmente o impasse sutil que se quer evidenciar aqui) que uma mera existência, ou, se for assim terminologicamente preferido, muito mais que a distância cronológica entre o nascimento e a morte.

Nesse sentido, é interessante perceber como esse tipo de discurso acerca da importância e da defesa da vida emerge cada vez mais como imperativos e deveres e não apenas como uma emanação conseqüente de uma reflexão ou de uma paixão expressa em poemas, músicas ou reportagens. Parece que há cada vez mais a necessidade de se lembrar que a vida é um direito e que preservá-la é um dever. Agora, por que a defesa da vida necessita ser um dever, se é quase axiomática a afirmação de que a vida por si só é dádiva? A busca por essa resposta conduz inevitavelmente a um paradoxo: os detentores da vida são os próprios assassinos dela. O próprio ser humano, que recebe a vida e usufrui tudo o que produz (genericamente falando) é o causador da não-vida. Como explicar esse paradoxo?

Uma prerrogativa a ser considerada aqui é que falar da vida, de suas nuances, de suas peculiaridades, de seus limites e de suas possibilidades é, ao mesmo tempo, simples e altamente complexo, isto porque falar da vida envolve todo o universo de significado e de vivência no qual as pessoas se encontram e interagem umas com as outras. Cultura, política, economia, religião, psicologia, fisiologia, sociologia, tudo está relacionado à vida. E a busca por uma resposta que resolva o paradoxo apresentado acima (e não necessariamente a descoberta dela) precisa considerar e ponderar todos esses fatores. Por exemplo: a própria pergunta sobre o que é vida receberá as mais diferentes respostas, caso ela for direcionada a distintas classes sociais, etnias, povos, culturas, gêneros, orientações sexuais. No entanto, esse não é necessariamente o ponto central.

O aspecto central na reflexão acerca da vida é que as constantes experiências de violência que o ser humano vem enfrentando demonstram que “o mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano” 1. Desde a crise de autoridade e de sentido da própria vida da sociedade de consumo, há “[...] uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte’ de todos os valores  [... ] ” 2. Nesse sentido, a idéia de igualdade humana é construída na sociedade humana. Por exemplo, na questão do totalitarismo, o povo judeu destituído de cidadania podia ser massacrado nos campos de concentração, isto é, a qualidade de ser humano, de existir, não foi suficiente para garantir a vida. Assim, a vida humana não pode ser tratada como algo abstrato. É simples afirmar que todos têm o direito à vida, mas, a partir da realidade onde as pessoas são assassinadas, são vistas como descartáveis, é perceptível que a dignidade da vida precisa estar alicerçada nas relações humanas, na convivência. Por isso, inclusive, que a questão da dignidade de vida não pode estar vinculada apenas às pessoas cristãs, mas ela precisa estar justamente na relação entre os diferentes.
A preservação da vida não pode ser confundida com a preservação da vida individual. Ao fazer isso se está confundindo a vida com uma mera existência, com a distância cronológica que separa o nascimento e a morte. A vida é muito mais que isso! A vida é tal como descreviam os antigos romanos: inter homines esse3, isto é, a vida é estar entre as pessoas. Em termos bíblicos, o segredo da vida não está no sopro que a sustenta, mas no encontro que o ser humano tem enquanto este possui o sopro. É por isso que a morte, para os antigos hebreus, significava, antes de tudo, a perda da comunhão com Deus e o fim temporal da vida4 e ambas acarretavam no rompimento da comunhão entre as pessoas.

Segundo a pensadora política Hannah Arendt,

Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos. Mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens [...] e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros. 5

Isso significa que a decisão acerca do aborto e da eutanásia (dois temas que subitamente entram em pauta, quando se discute a questão da vida, da qualidade da vida ou do direito a ela) não é uma questão de escolha pessoal apenas. Essa escolha é fruto de um relacionamento humano. Em conseqüência, o aborto, por exemplo, não pode ser considerado pecado ou crime à primeira vista. Se não pode ser considerado pecado, não pode ser uma verdade pronta, isto é, a proibição do aborto não pode ser anunciada como lei por uma autoridade e ser passivamente aceita sem qualquer tipo de questionamento.

Grosso modo, convém ressaltar que o aborto não é o problema em si, pois ele é conseqüência e causa de ações não-pensadas, não-planejadas e violentas. Em primeiro lugar, há o dano prévio ao aborto, isto é, não é apenas uma questão de educação ou saúde sexual, mas, principalmente, de ausência de uma responsabilidade sexual que deve ser ponderada. Em segundo lugar, há, de qualquer modo, a prática clandestina do aborto, a qual mutila os corpos femininos e a posterior ausência de qualquer continuidade numa assistência psicológica à mulher. O maior risco em relação ao aborto é que ele seja considerado como uma prática sem risco, o que não resolve o problema da falta de responsabilidade sexual. Essa responsabilidade sexual não é algo individual. Enfim, o aborto é apenas a ponta de um gigantesco iceberg que se constitui de uma série de problemas sociais muito mais críticos que o aborto propriamente dito.

Em relação à questão da eutanásia, por exemplo, há de se considerar que nem todo mundo tem as condições financeiras de manter uma pessoa (ou um corpo) vivo por meio de aparelhos. No entanto, a questão da eutanásia provoca a reflexão acerca do apego excessivo à vida, bastante em voga na sociedade contemporânea, o que revela, por sua vez, o medo da morte. Afinal, quem disse que a morte é ruim? Não é sobre ela que se deposita a esperança de uma nova ordem das coisas? A morte não pode ser vista como um empecilho, no sentido de que a vida artificial (com a ajuda de aparelhos) não é também necessariamente vida. O fato profundo aqui é que a eutanásia é um convite para se repensar o que se entende da morte. Há um medo de morrer, mas é na morte que reside a esperança.

Segundo o teólogo alemão Jürgen Moltmann, a morte é o acontecimento da vida, mas as pessoas modernas reprimem a consciência da morte e tal repreensão acarreta na morte já em vida. As pessoas se agarram em doutrinas sem pensar de fato nas suas implicações. Assim, as pessoas se tornam insensíveis ou infantis, ignorando a realidade da morte. A individualização torna cada indivíduo produtor da vida, as relações são rompidas e os mortos são esquecidos. Não há espaço nem tempo para moribundos e (ou) enlutados. A conseqüência é a apatia pela vida. Hoje a morte é “totalmente estranha” 6.

Em Cristo, existe a comunhão entre vivos e mortos: comunhão de amor e de esperança em comum de vida eterna e da nova criação. Quanto mais próximos da comunhão com Cristo, maior a proximidade com mortos amados. As decisões de Deus não dependem das decisões humanas, o ser humano não pode se autosalvar ou se autocondenar. É aqui que acontece a superação da morte pela vida. A esperança dos cristãos é inclusiva e universal e não particular.
Enfim, o cuidado de Deus pelo ser humano extrapola os limites impostos pelo tempo e pelo próprio pecado (ou do conceito que se faz dele) e é isso que Jesus Cristo quer dizer quando disse que veio para que as pessoas tivessem vida e a tivessem em abundância (Jo 10.10). Vida em abundância é vida em abundante comunhão. Pensar a vida e todas as questões relacionadas intimamente a ela na sociedade hodierna implica, portanto, pensá-la além de si mesmo e dos desejos e dos princípios egoístas e além de um instante cronológico. Pensar a vida na sociedade hodierna é pensar na alteridade e escolher a vida é escolher a comunhão.
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Kathlen Luana de Oliveira, teóloga brasileira, mestranda no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG), em São Leopoldo, RS, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua pesquisa está direcionada aos consensos e dissensos acerca dos Direitos Humanos a partir do pensamento de Hannah Arendt.

Iuri Andréas Reblin, bacharel, mestre e doutorando em teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) e com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Pesquisa a teologia que está além das fronteiras institucionais e que se manifesta em outros planos de expressão.
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Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
______. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. 7. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 6. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MOLTMANN, Jürgen. A Vinda de Deus: escatologia cristã. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. (Theologia Publica; 3)
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1975.


NOTAS
1     ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. 7. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 333.

2     LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 6. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19.

3     ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 15.

4     Cf. MOLTMANN, Jürgen. A Vinda de Deus: escatologia cristã. São Leopoldo: UNISINOS, 2003, p. 96ss. (Theologia Publica; 3) e Cf. também WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1975, p. 137-160.

5     ARENDT, 2007, p. 31.

6     MOLTMANN, 2003, p. 65ss.