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INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Ano 3 - Nº 13
Dezembro de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Afirmar a liberdade de culto como estratégia de combate à intolerância religiosa
Por: Marcio Alexandre M. Gualberto

No dia 21 de setembro de 2008, entre 15 e 20 mil pessoas marcharam em Copacabana, Rio de Janeiro, sob o lema: “Liberdade Religiosa – Eu Tenho Fé!”. Eram judeus, católicos, muçulmanos, bahais, ciganos, protestantes e, principalmente, umbandistas e candomblecistas.
Em Salvador, no dia 23 de novembro deste ano, pelo quarto ano seguido, pelo menos 10 mil pessoas marcharão sob o lema “Caminhada pela Vida e Liberdade Religiosa”. Belo Horizonte, Recife, São Luiz do Maranhão, Curitiba, Porto Alegre e outras cidades do País mobilizam-se para também construir suas próprias caminhadas, suas marchas.
As caminhadas religiosas são apenas uma das várias estratégias que estão sendo construídas pelos seguimentos religiosos, notadamente, pelo povo ligado a Umbanda e ao Candomblé para, antes de tudo, afirmar sua religiosidade, seu direito ao culto, sua fé e, por conseguinte, combater a intolerância religiosa que se não vem crescendo, vem se tornando cada vez mais visível dado o nível de agressividade que alguns setores, principalmente os neo-pentecostais, têm adotado como prática comum.

Casos recentes de intolerância religiosa
O caso mais emblemático de intolerância religiosa no Brasil é, infelizmente, o de Mãe Gilda de Ogum, morta em janeiro de 2000. Perseguida por outras denominações religiosas; numa das invasões ao seu terreiro foi agredida com uma Bíblia na cabeça. Mãe Gilda teve a foto estampada num jornal da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), com a seguinte legenda: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida de clientes”. Morreu pouco depois, aos 65 anos, de infarto fulminante (nota do editor: lei mais sobre o caso no artigo de Jussara Rêgo, nesta edição da TPDigital).
No Rio de Janeiro o escandaloso caso dos traficantes convertidos, capazes de usar em seus fuzis dizeres como “Jesus Salva” e ao mesmo tempo expulsarem das favelas que controlam os adeptos das religiões afro-brasileiras e seus sacerdotes, chocou a sociedade de tal maneira que a mobilizou para a criação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, que foi a responsável pela construção e realização da marcha do dia 21 de setembro.
No Rio Grande do Sul a luta para tornar inconstitucional a lei estadual que proíbe o sacrifício de animais ainda não terminou. Essa lei, proposta por um parlamentar evangélico, sob o pretexto de proteger animais de rua de maus-tratos, na verdade atinge diretamente e, conscientemente, as religiões de matriz africana. Sua inconstitucionalidade é considerada exatamente pela liberdade de culto apregoada pelo Artigo 5º da Constituição; portanto, uma lei estadual não pode confrontar uma lei federal, ainda mais se esta constar da Carta Magna da nação.
Em Belo Horizonte, dois anos atrás a Polícia Militar invadiu, a partir de uma denúncia, o Ilê Unzo Atim NzazeIya Omin, ofendeu religiosos, agrediu pessoas e o caso só não caiu no esquecimento porque organizações do Movimento Negro e religiosas agiram acionando os órgãos públicos que tomaram as medidas cabíveis.
Por fim, um dos casos mais sintomáticos dos últimos anos se deu na negra cidade de Salvador, quando o prefeito reeleito neste último pleito, João Henrique, evangélico, decidiu derrubar o terreiro Oyá Onipó Neto sob alegação de que o mesmo estaria em área irregular, mesmo estando a casa de santo instalada há 28 anos no mesmo local e pagando rigorosamente em dia sua taxa de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Dada a repercussão do caso, o prefeito retirou a ordem, mas o estrago já estava feito. Grande parte do terreiro ruiu e com ele as imagens dos santos e os espaços sagrados do terreiro foram destruídos.

Na origem de tudo, o racismo
A Wikipedia nos dá a seguinte definição de racismo:
O racismo é a tendência do pensamento, ou do modo de pensar em que se dá grande importância à noção da existência de raças humanas distintas e superiores umas às outras. Onde existe a convicção de que alguns indivíduos e sua relação entre características físicas hereditárias, e determinados traços de caráter e inteligência ou manifestações culturais, são superiores a outros. O racismo não é uma teoria científica, mas um conjunto de opiniões pré-concebidas onde a principal função é valorizar as diferenças biológicas entre os seres humanos, em que alguns acreditam ser superiores aos outros de acordo com sua matriz racial. A crença da existência de raças superiores e inferiores foi utilizada muitas vezes para justificar a escravidão, o domínio de determinados povos por outros, e os genocídios que ocorreram durante toda a história da humanidade.
A firme convicção que têm os evangélicos, principalmente os neo-pentecostais, de que somente sua visão religiosa é a certa, é a verdadeira, já implica numa concepção preconceituosa e racista na qual as religiões afro-brasileiras são taxadas de feitiçaria, bruxaria, macumba e outros termos depreciativos.
Os dizeres que circundam os pilares dos viadutos na saída da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, com frases do tipo: “Só Jesus expulsa Exu das pessoas”, “Só Jesus expulsa Ogum das pessoas”, “Só Jesus expulsa o demônio das pessoas”, e por aí vai, só alternando-se o nome do Orixá qualificativo, mas sempre com a relação com o demônio já estabelecida, deixam clara a percepção vigente para estes setores da relação direta que existe entre a religiosidade de matriz africana e a figura do Diabo cristão.
A bem da verdade deve-se afirmar sempre que a figura do Diabo, do Canhoto, do Belzebu, é uma criação cristã. Não há no panteão da religiosidade afro-brasileira a figura do diabo. Houve-se por bem, sincretizar Exu – o mais semelhante às características humanas – com a figura do Malévolo. Mas quem conhecer um pouquinho que seja da história e do sincretismo saberá que isso funcionou muito mais como estratégia de guerrilha para que a religião de matriz africana se perpetuasse, do que como um dado da realidade.
Santa Bárbara não é Iansã!”, afirmou, Mãe Stella de Oxóssi, em 1983, para demarcar o campo e deixar claro que o sincretismo nada mais foi que estratégia de enganação dos africanos escravizados para os senhores. Hoje Mãe Stella afirma, com relação ao sincretismo: “Não faz mais sentido. Porque as pessoas já sabem por que estão aqui. É cansativo de falar, mas houve ocasião de precisar esconder orixás com santos, embaixo da mesa tinha os assentamentos. Pra enganar o senhor, cantava, evocava em sua língua natal, ele não entendia nada, pensava que era festejo pra santa. ”.
Quando Mãe Stella decreta o fim do sincretismo ela está, em verdade, realizando dois movimentos. Um primeiro é afirmativo: nós somos uma religião e como tal devemos ser vistos; o outro vai no sentido de deixar claro que não é preciso mais que o praticante da Umbanda e do Candomblé se escondam. Pelo contrário, ele deve sim, afirmar sua fé, deve usar seus elekés, deve vestir branco às sextas para Oxalá e, claro, dar de comer a seu santo e trocar a bênção com seus irmãos. Deve afirmar sua fé, deve dizer sim, eu tenho fé!
O Brasil está vivendo um momento complicado no que tange às relações étnico-raciais. No momento em que negros e negras passam a reivindicar espaços na educação formal, no mercado de trabalho, nos veículos de comunicação, na economia e nas esferas de poder, os racistas brasileiros e seus porta-vozes resolvem dizer que os negros é que estão querendo dividir o País entre racistas e não-racistas. Ou seja, quando a vítima de racismo se rebela, é ela mesma taxada de racista por aqueles que a discriminam.
Enfim, o racismo à brasileira está na ordem do dia e com ele a intolerância religiosa. Atitudes urgentes precisam ser tomadas e não bastam apenas ficar nos discursos. É necessário que o Estado brasileiro se posicione, que órgãos públicos legislativos, executivos e judiciários estejam atentos ao que está acontecendo. Pois chegará o momento em que as vítimas começarão e se revoltar e passarão a reagir. E quando isso acontecer talvez seja muito tarde para buscar soluções que já deveriam ter sido implementadas há mais de cem anos.

Construindo novas estratégias
O desafio que está posto para as religiões de matriz africana e para aqueles que, mesmo sem professarem uma fé vinculada a essas tradições, as respeitam como espaço de resistência da população negra no Brasil, é que formas deverão ser usadas para repelir esses ataques.
Daí a compreensão de que é necessário não só buscar ações unificadoras como, também, ampliar o diálogo para além dos terreiros. Ou seja, é preciso fortalecer para dentro e para fora ao mesmo tempo. Para dentro construindo pontes de diálogos entre os setores da religião que há muito tempo não conversam entre si e aqueles que podem gerar um cinturão de apoio na política, na cultura, nas artes e em outros espaços importantes da sociedade.
Desenvolver uma tática de isolamento dos setores que atacam e ao mesmo tempo ampliar conversas com católicos e protestantes que hoje compreendem a importância do diálogo inter-religioso e a dimensão macro-ecumênica será também um passo essencial para ampliar o leque de apoio.
Essencialmente deve-se pensar na construção de estratégias que não só busquem isolar os setores mais radicais, mas, ao mesmo tempo, construir uma nova imagem e uma nova percepção da religião de matriz africana para o cidadão comum.
O Candomblé é uma religião extremamente sofisticada, não é para qualquer um, não é qualquer pessoa que terá condições de compreender a ritualística, a liturgia, o encanto, o saber acumulado, a doutrina em tão perfeita harmonia com a natureza e com as energias primevas da criação. Portanto, a busca por desqualificá-lo como religião é ao mesmo tempo a afirmação da dificuldade em compreendê-lo. Talvez seja hora do Candomblé, tal como faz a Umbanda, tentar se fazer mais compreensível, mais simples para as pessoas comuns. Isso, claro, sem perder sua essência, sua raiz, sua força e seu Axé.
No âmbito da sociedade civil, cabe a nós, pesquisadores, formadores de opinião, religiosos, simpatizantes, militantes, um olhar mais próximo, uma maior aproximação dialogal e, ao mesmo tempo, constitutiva de relações harmônicas que ampliem os arcos de aliança e permitam que novos e novos espaços de comunicação e troca se dêem.


Somente dessa forma poderemos talvez não superar a intolerância religiosa, mas mostrar à sociedade como um todo, e aos intolerantes em particular, que há um universo a ser conhecido e compreendido e que sua compreensão é a base para o fim de todo e qualquer preconceito.

Marcio Alexandre Martins Gualberto, jornalista, Coordenador Nacional de Política Institucional do Coletivo de Entidades Negras, assessor do Se Essa Rua Fosse Minha, membro da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro.