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INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Ano 3 - Nº 13
Dezembro de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
FUNDAMENTALISMO: O delírio dos amedrontados (Anotações socio-teológicas sobre uma atitude religiosa)
Por: Zwinglio M. Dias

                                                      ““... os homens insistem com maior veemência sobre suas
                                                      certezas quando sua segurança a respeito delas foi abalada. A
                                                      ortodoxia exacerbada é um método para ocultar a dúvida.”
(Reinhold Niebuhr)

Introdução

A presente reflexão tem por escopo apresentar algumas considerações a respeito de uma atitude religiosa, oriunda e vigente, há cerca de um século, no amplo espectro do Protestantismo que, nas últimas décadas, extrapolou, semanticamente, esta fronteira teológica, para identificar comportamentos semelhantes também no espaço da eclesialidade católico-romana e ortodoxa, assim como em outros universos religiosos como o Islamismo, o Judaísmo, o Hinduismo e o Sikhismo. Mas esta dimensão institucional-religiosa está longe de esgotar o conjunto de proposições que caracterizam a mentalidade fundamentalista. Como destacam Pace/Stefani: “A idéia de defesa e de afirmação da verdade absoluta, contida num livro sagrado, alimenta a visão apocalíptica do combate final entre o bem e o mal, interpretando uma necessidade social emergente entre os indivíduos: o medo de perder as próprias raízes, de perder a identidade coletiva. O mal assume diferentes máscaras: o pluralismo democrático, o secularismo, o comunismo, o ocidente capitalista, o Estado moderno eticamente neutro e por aí adiante.” Ou seja,” a utopia religiosa, deste modo, vem a ser conjugada com a vontade de espiritualizar a política, de lhe dar uma alma, num esforço de contraste contra o fracasso das utopias políticas modernas, desde o comunismo até ao liberalismo. ” 1
Antes restrito ao ambiente eclesiástico protestante, como demarcador de uma certa interpretação teológica do texto bíblico e de uma visão da vida e do mundo dela derivada, o vocábulo passou a ser usado, na linguagem comum da atualidade, para designar posturas radicais ancoradas numa leitura supostamente correta dos textos sagrados. Trata-se de uma leitura de caráter literal que não leva em conta as mediações
decisivas da história, da cultura, da filosofia e das tradições religiosas. Caracteriza-se como um fenômeno próprio das religiões escriturísticas, basicamente das chamadas “religiões do Livro” (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). Como destaca E.J. Carnell o “... Fundamentalismo é hoje uma atitude antes que um movimento. E trata-se de uma atitude altamente ideológica. É intransigente e inflexível; busca a conformidade e teme a liberdade acadêmica.” 2 Assim, ganhou espaço nos media com conotação pejorativa e anti-moderna. Ou como expressou, mordazmente, G. Marsden: “Um fundamentalista é um evangélico com raiva de alguma coisa.”
Mas, contrariamente, ao que comumente se pensa, o Fundamentalismo é um subproduto da Modernidade inacabada, uma reação de protesto ao triunfo da racionalidade científica e a sua utilização na elaboração de novas pautas hermenêuticas no âmbito do tratamento dos textos fundantes do Cristianismo. Moderno, ainda que com sinal contrário, o Fundamentalismo representou, no interior da ortodoxia conservadora do Protestantismo norte-americano, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, uma tentativa de negação absoluta dos valores emergentes do desenvolvimento científico nesse período. Ao desatar uma polêmica radical contra as tentativas de uma releitura moderna da herança dos Reformadores, conduzida pelos teólogos liberais que defendiam o emprego de todos os instrumentos críticos das modernas ciências humanas para purificar o texto sagrado das mitologias e condicionamentos históricos, os teólogos conservadores, por entender que tal procedimento implicaria numa alteração inaceitável da “integridade da verdade” contida no texto sacro, lançaram as bases teológicas para uma batalha hermenêutica que se prolonga até nossos dias.
Por outro lado, ao procurar construir uma pauta interpretativa das Escrituras a partir da afirmação dogmática das formulações tradicionais, negando qualquer possibilidade de revisão, reformulação ou releitura da narrativa escriturística face às novas descobertas e desenvolvimentos epistemológicos, o Fundamentalismo enredou-se em seu negativismo absoluto das realizações da Modernidade e, com isso, não foi capaz de produzir uma visão de mundo afirmativa e, muito menos, de articular suas crenças basilares com as principais questões postas pela cultura em geral. Temeroso de perder ou pôr em risco suas certezas encapsulou-se em sua visão da “old time religion”, isto é, da tradicional formulação evangélica da religiosidade matricial norte-americana, virando as costas para a moderna sociedade industrial, então, em gestação. Isto porque, como assinala com clareza J. Moltmann: “O Fundamentalismo original não se defrontou diretamente com os princípios do mundo moderno, mas apenas com as influências que este exercia sobre sua comunidade de fiéis.”...) “ Os fundamentalistas não reagem às crises do mundo moderno, mas às crises que o mundo moderno provoca em sua comunidade de fé e em suas convicções básicas.”3 Ou, dizendo de outra maneira, constituiu-se como uma reação à reação da teologia institucional frente aos avanços da Modernidade.
Nos   parágrafos  seguintes   apresentaremos,   ainda   que  sumariamente,  um relato  da história  de  seu  surgimento,   alguns   aspectos  formais  de  sua  concepção  filosófico-teológica e sua incidência na consolidação da matriz teológica do mundo evangélico latino-americano e brasileiro. Embora nenhuma denominação do Protestantismo histórico brasileiro se declare aberta ou oficialmente fundamentalista ( com exceção de duas pequenas comunidades, a Ig. Presbiteriana Fundamentalista e a dissidência desta, a Igreja Presb. do Fundamentalismo Bíblico), não há dúvida de que  os símbolos teológicos tradicionais que lhes são comuns têm sido, historicamente, lidos e interpretados a partir de uma ótica fundamentalista e, assim, transportados, em grande medida,  para os subseqüentes movimentos pentecostais e neopentecostais. Daí a importância de verificarmos sua presença e interação no campo religioso nacional.

As Origens do Fundamentalismo
Para muitos estudiosos,  o ano de 1895 pode ser considerado como a data de nascimento do movimento fundamentalista. É que nesse ano, um grupo de teólogos conservadores norte-americanos reuniu-se  numa conferência, em Niagara Falls, para tomar posição contra a crescente aceitação do emprego do método histórico-crítico na interpretação dos textos bíblicos.  O documento final da conferência estabeleceu cinco proposições sobre as quais não poderia haver nenhum tipo de negociação:
a)  a inerrância absoluta do texto sagrado;
b) a reafirmação da divindade de Cristo;
c) a proclamação do nascimento virginal de Jesus;
d) a  pregação da morte e ressurreição de Cristo como garantia da redenção universal;
e) a proclamação da ressurreição da carne e a certeza da segunda vinda de Cristo.
Segundo Pace/Stefani 4, cuja síntese histórica das origens do Fundamentalismo nos serve de base para a elaboração desta seção, a primeira e a última proposições se tornaram como que um critério hermenêutico decisivo para a caracterização da atitude fundamentalista. Para Miguez Bonino “ Cristo está, é claro, ontologicamente acima da Escritura mas, epistemologicamente, está subordinado a ela. Por isso é essencial ter a Bíblia, honrá-la, dar-lhe o lugar de honra no coração e na mente, mas também na mesa da copa ou sobre o criado-mudo, ao lado da cama. De alguma maneira ela é o ícone e o sacramento da fé.” 5  James Barr, citado por Bonino, é ainda mais enfático: “Para os fundamentalistas a Bíblia é mais do que a fonte da verdade para a sua religião (...) faz parte da própria religião, na realidade, é praticamente o centro da religião (...)Na mentalidade  fundamentalista,  a  Bíblia  funciona   como  uma  espécie  de  correlato de Cristo.(...) Cristo é o Senhor e o Salvador pessoal (...) a Bíblia é uma entidade verbalizada, ‘inscriturada’(...) Na medida em que Cristo é o Senhor e Salvador divino, a Bíblia é o símbolo religioso supremo, tangível, articulado, que se pode possuir e é acessível ao ser humano na terra.”6

Nesta perspectiva  a Bíblia, “que se explica por si mesma”, segundo a hermenêutica fundamentalista, passa a se constituir na palavra viva de Deus mesmo. Como tal não está sujeita às limitações da interpretação humana. Trata-se, portanto, num corpo de verdades imutáveis, perenes, “que o ser humano não pode interpretar sem se confrontar continuamente com o problema da verdade incontroversa contida no próprio texto sagrado.” Daí que o passo para a consolidação de uma atitude bibliólatra foi muito curto.

O quinto artigo ou proposição da Conferência de Niagara Falls, o que faz referência a segunda vinda de Cristo, é um tema teológico que se tornou muito popular no universo protestante inglês e norte-americano do século XIX, em função dos movimentos de despertamento evangélico que varreram esses  países por várias décadas. Esta motivação teológica, comumente conhecida como Milenarismo, baseada particularmente no cap. 20 do livro do Apocalipse, esteve sempre presente no universo simbólico do Cristianismo, embora nas comunidades dos primeiros séculos se tratasse de uma convicção difusa, sujeita a diferentes interpretações. Refere-se ao iminente regresso de Cristo à terra para a instauração de um reinado de mil anos antes do fim do mundo. Sofrendo diferentes alternâncias interpretativas ao longo da história do Cristianismo, esta doutrina retomou força no século XIX, dando origem inclusive a vários movimentos religiosos como os Mórmons, os Adventistas e as Testemunhas de Jeová.  De acordo com  Miguez Bonino,  a ênfase no pré-milenarismo resultou da combinação de literalismo bíblico e intransigência, ao que acrescentamos a situação de insegurança e mesmo de anomia social, vivida por milhões de norte-americanos pobres, recém-imigrados, explorados e lançados a sua própria sorte na, dentre outras situações de desamparo, desumana marcha para o Oeste. Porém, como indicam vários autores,  a opinião dominante no Protestantismo em geral e nas consolidadas denominações norte-americanas sempre foi pós-milenarista. Ou seja, se entendia que as promessas escatológicas do milênio, como o derramamento do Espírito, a luta contra o anticristo (em geral identificado com o Papa e/ou líderes de outras religiões, especialmente do Islamismo) aconteceriam neste tempo e levariam a uma idade de ouro, na qual  sob a infusão do Espírito, o Evangelho seria pregado em todo o mundo e a história chegaria ao fim com o retorno de Cristo. Para fins do século XIX esta visão foi tornando-se cada vez mais “naturalizada”e, podemos dizer, secularizada: o caminho para o Reino passa a ser identificado com o progresso humano e o desenvolvimento da cultura e sociedade norte-americanas entendidos como um sinal de que a ligação entre religião e progresso civilizacional conduziria a uma era de paz, justiça e prosperidade. 7

Para os protestantes conservadores esta compreensão do Milenarismo soou como grossa e repugnante heresia. Viram-na, ao mesmo tempo, como uma negação da transcendência e “uma transformação da revelação bíblica numa ‘fantasia poética’  sobre a história que o ser humano vai forjando e tal coisa é  totalmente inaceitável para concepção do ‘realismo do senso comum’. O pré-milenarismo mostra-se pois como uma
reação contracultural que tira da cultura secular toda pretensão escatológica.” 8
Os debates teológicos entre as duas correntes que atravessam as denominações norte- americanas não teriam tido conseqüências maiores se as idéias discutidas e as tomadas de posição assumidas não tivessem se espalhado pelas congregações graças, especialmente, a uma coleção  de livretos (12 ao todo), produzidos pelos teólogos da presbiteriana universidade de Princeton, em defesa das teses conservadoras em relação ao avanço do secularismo, a qual levou o nome de The Fundamentals (Os Fundamentos) e acabou, mais tarde, na Conferência Mundial dos Cristãos Fundamentalistas, em 1919, por batizar o movimento. Estes pequenos volumes, que versavam sobre as doutrinas tradicionais do Cristianismo, com ênfase especial no valor transcendente e ahistórico da Bíblia, foram publicados entre 1909 e 1915. Sua disseminação terminou levando um debate teológico, interno ao mundo eclesiástico e de caráter altamente abstrato, à condição de conflito ideológico e político de interesse nacional que, embora com menor incidência,  continua  presente no espaço público norte-americano até hoje. Esta coletânea de textos doutrinários não   apresentava uma perspectiva doutrinária unitária. Embora nem sempre visíveis, duas tendências dividiam seus autores. Parte das reflexões seguiam a orientação do teólogo escocês James Orr, para quem  o propósito da inspiração bíblica não era tanto o conhecimento de Deus mas a comunicação da plenitude da vida revelada na pessoa de Cristo pela mediação do Espírito Santo. O outro grupo, representado pelos teólogos da Universidade de Princeton, priorizava a pureza doutrinária, baseada na inerrância das Escrituras, em relação à experiência doutrinária,  os quais se constituíram na matriz intelectual do movimento fundamentalista 9.
Alguns anos depois, em 1925,  um incidente jurídico polarizou a opinião pública norte-americana favorecendo, enormemente, a disseminação da mentalidade fundamentalista. Trata-se do caso de  um jovem professor de Biologia,  John Scope, da cidade de Dayton, no estado do Tenessee,  que foi denunciado aos tribunais, por um pastor fundamentalista, por estar ensinando a teoria evolucionista de  Charles Darwin. Do ponto vista jurídico estava em jogo a questão da legalidade do ensino das teorias seculares acerca da origem da espécie humana. O  julgamento ganhou as manchetes dos jornais como  o “processo do macaco”. Naturalmente,  os fundamentalistas apoiaram a exoneração do professor e tiveram, na figura do senador William J. Brian, seu principal advogado de acusação contra os avanços do secularismo, do modernismo e da imoralidade. Por outro lado o jornal New York Times,  acompanhando diariamente o debate jurídico, fez-se porta-voz dos liberais protestantes e do mundo laico norte-americano, estupefatos com a decisão das autoridades do Tenessee de proibirem o ensino do darwinismo nas escolas. John Scope, defendido por uma equipe de advogados, da recém criada American Civil Liberties Union, chefiados por Clarence Darrow, ganhou a causa em nome da liberdade de expressão e dos direitos individuais garantidos na Primeira Emenda. Este episódio teve tal repercussão nacional  que ganhou uma versão teatral sob o título de “Herdarás o Vento” que, mais tarde, virou filme. Como é óbvio, o incidente favoreceu a mobilização dos crentes e levou a formação de um significativo movimento coletivo sob a direção da World  Christian  Fundamentals  Association, criada poucos anos antes, em 1919.
Como  destacam  Pace/Stefani,  o movimento fundamentalista estadounidense se afirma “num arco de tempo bem preciso, entre 1909 e 1925,  no meio de acontecimentos como a revolução bolchevique na Rússia e a primeira guerra mundial. Estes dois acontecimentos reforçaram a convicção milenarista e foram interpretados como sinais apocalípticos do triunfo do mal no mundo.” 10 Durante a primeira guerra o império prussiano foi identificado com a “Besta” do Apocalipse e a revolução comunista como o novo “Anticristo”. Portanto, é nesse período que se consolida um patriotismo de bases bíblicas, que continua vigente até nossos dias, fundamentado  na convicção de que Deus chamou essa nação para assumir o comando da batalha final para fazer triunfar o bem e a liberdade no mundo. O surgimento da igreja eletrônica nos anos setenta e oitenta, com seus famosos tele-evangelistas, e o discurso político-religioso de Presidentes como Jimmy Carter,  Ronald Reagan e, atualmente,  W. George Bush, apenas ilustram a permanência e significativa incidência desta teologia política no interior do campo religioso norte-americano.
Da defesa de uma determinada concepção hermenêutica do livro sagrado o Fundamentalismo evoluiu para a defesa de uma cultura específica, ou seja, a defesa da América Cristã.. A esse respeito esclarece, mais uma vez, Miguez Bonino: “...todo universo simbólico de ampla difusão desempenha um papel cultural na sociedade.(...) Dentro do fundamentalismo evangélico coexistiam diferentes atitudes para com a cultura e a sociedade. Entretanto, predominavam as que poderíamos chamar mediadoras, representadas por uma reafirmação do que se considera a ‘tradição evangélica norte-americana’(...) e pela linha mais reformada de uma transformação da cultura sobre a base do ensino cristão.” 11 O movimento fundamentalista, portanto, nunca foi majoritário mas, nem por isso, deixou de estabelecer nichos operacionais no interior das principais denominações, como parte de seu projeto cultural-missiológico, ou seja, procurar retomar a hegemonia no interior das grandes igrejas, ocupar postos de influência nas estruturas de comunicação de massa e organizar lobbies para exercitar a pressão política sobre legisladores e autoridades do executivo.
Experimentando um processo de resistência a sua negatividade em relação aos avanços da modernidade e, particularmente ao seu anti-intelectualismo, ao não conseguir realizar a contento sua agenda de intervenção cultural para mudar os rumos da América cristã, um grande número de fundamentalistas moderados começou a se articular, a partir da década de 1940, para superar esse radicalismo. Para estes líderes, dentre os quais Billy Graham vai tornar-se mais tarde um dos expoentes, ao lado de Charles Fuller e mais tarde Pat Robertson, as velhas posições do Fundamentalismo original deveriam ser substituídas pelo que se denominou de  ortodoxia engajada. Assim nascia o neofundamentalismo A partir de então vamos presenciar o surgimento de algumas dezenas de organizações de caráter para-eclesiático como por exemplo: Juventude para  Cristo, Cruzada Universitária por Cristo, Associação Cristã Inter-universitária (conhecida como ABU no Brasil), Associação dos Atletas de Cristo, dentre muitas outras, sendo algumas de caráter eminentemente missionário. Mais tarde, nas décadas de setenta e oitenta  duas grandes iniciativas, pesadamente apoiadas nos aparatos do mundo da comunicação, vão ter papel protagônico no campo político norte-americano. Refiro-me à Coalizão  Cristã (Christian Coalition) e à Maioria Moral (Moral Majority) que consagrou o tele-evangelista Jerry Falwell. Como assinalam Pace/Stefani: “Os movimentos em questão, relativamente ao fundamentalismo das origens, demonstraram uma grande capacidade na utilização abundante, mesmo exagerada, de todos os meios modernos de mobilização e de agregação de consenso, superando decididamente as fronteiras que, no fundamentalismo das origens, se tinham mantido entre a ação religiosa e a ação política direta. Deste modo vem a criar-se nos movimentos uma estreita relação entre a adesão acrítica e literal ao texto bíblico e o compromisso direto para  com a sociedade civil e política, relação que os primeiros teólogos de  Niagara  Falls não tinham, certamente,  agendado.”(...)  Com isso “... a televisão – gerida pelos pregadores evangélicos qual expressão dos grupos ultra-conservadores -  torna-se o areópago da crítica pública em nome de Deus e dos valores religiosos, um lugar no qual os fiéis de outros credos se podem reconhecer.” 12
Com o fim da era Reagan houve um arrefecimento geral do neofundamentalismo e os desenvolvimentos recentes da sociedade norte-americana estão a indicar que o processo de secularização  continua sua marcha na construção de um universo simbólico mais solto em relação ao ethos  religioso tradicional. Isto não quer dizer que o fundamentalismo esteja morto e muito menos desarticulado mas, apenas,  redimensionado,  permanecendo como um elemento importante no substrato matricial da evangélica cultura norte-americana.

Pressupostos epistemológicos da leitura fundamentalista*
Uma das influências filosóficas decisivas na formação do universo de compreensão do mundo e da vida da cultura norte-americana foi a chamada “filosofia do senso comum” que, segundo alguns autores, se transformou na  “filosofia americana” por excelência. Esta perspectiva se inscreve na tradição indutivista ou empirista que situa a origem do conhecimento na experiência  dos sentidos, por oposição à compreensão dedutivista ou idealista, que baseia  a origem do conhecimento nas idéias ou no pensamento.   Este modo  de compreensão da realidade foi formulado por Thomas Reid (1710-1796) a partir de um estudo que realizou sobre a teoria de conhecimento de David Hume (1711-1766).  Este  filósofo  combateu  o  idealismo   cartesiano  (R.Descartes, 1596-1650), especialmente seu postulado das idéias inatas, inscrevendo-se na tradição oposta, desenvolvida por  Francis Bacon, que reivindicava a construção do conhecimento a partir da observação e da experimentação. Hume combateu acirradamente os postulados de Descartes acerca do poder das idéias ao ponto de negar, como ilusão, a noção de causalidade, elemento fundamental aos procedimentos científicos baseados na racionalidade.  Assim, o  empirismo indutivista pressupõe que o indivíduo é uma  tábula rasa, isto é,  carente de qualquer saber que lhe possibilite um pré-conhecimento da realidade. Isto significa que qualquer ato cognitivo  resulta de um contato sensorial com os objetos que compõem a esfera do conhecimento. Não há nada na mente que não tenha passado pelos sentidos.  Ao contrário, o método dedutivo parte de premissas e deduz delas as conseqüências que julga verdadeiras.  Enquanto o indutivo vai do singular ao universal, o dedutivo pretende chegar ao particular partindo do universal.
Com base nos pressupostos indutivistas, Reid vai concluir que o conhecimento proporcionado pelo senso comum está ao alcance de qualquer pessoa. Portanto, o conhecimento de uma  certa verdade não depende de outros conhecimentos filosóficos e nem da interposição de  qualquer idéia, estando ao alcance de todos. Isto significa que a realidade é diretamente acessível e sua compreensão não depende de qualquer tipo de mediação, seja ela de que natureza for.  Esta filosofia do senso comum  foi muito bem recebida nos Estados Unidos, sendo ensinada nas universidades como o fundamento filosófico por excelência. A  opção por esta perspectiva epistemológica   se combinava perfeitamente com o ideal de rejeição a todo tipo de autoritarismo que marcou o projeto político-cultural inicial dos norte-americanos  e contribuiu fortemente para a construção do pragmatismo que caracteriza essa cultura.
Ao oferecer elementos para a confirmação racional e científica das verdades bíblicas a filosofia do senso comum contribuiu, de modo particular, para a consolidação do pensamento protestante  conservador. Na medida em que se afirma que não existem fatores externos ao conhecimento individual,  sejam eles de natureza social, econômica, política, cultural ou étnica, os três elementos básicos da filosofia do senso comum, universalidade, linguagem e memória,  quando aplicados à reflexão teológica, podem ser assim apresentados, segundo a formulação de Velásquez Filho: “A verdade, portanto, é universal. No caso da Bíblia, suas informações e afirmações são tomadas como verdades universais, independentemente de quaisquer referências ao seu contexto. Quanto à linguagem, não se podem sobrepor interferências e interpretações à intenção dos autores bíblicos a fim de harmonizar o conflito, por exemplo, com as ciências naturais.(...) Quanto à memória: a Bíblia se compõe de testemunhos da revelação de Deus, em particular daquela ocorrida em Cristo e através dos primeiros cristãos.  Os escritores sagrados recorreram a sua memória e à memória dos outros para o registro desses acontecimentos. O armazenamento das informações colhidas foi fiel à revelação original.”  Dando continuidade a sua reflexão o autor conclui que “a Bíblia assume, assim, no conservadorismo protestante,  a condição de fonte exclusiva do conhecimento de Deus.  Igreja e mundo passam a depender, consequentemente, da interpretação literal do texto bíblico. Qualquer alternativa deve, obrigatoriamente,  traduzir a intenção de negação, ou mesmo destruição, da revelação divina e da civilização cristã. A investigação científica das Escrituras – a crítica bíblica – é um desses perigos.” 13
Heinrich Schäfer, por seu lado, ao refletir sobre esta mesma operação epistemológica elaborada pelo Fundamentalismo chama a atenção para o fato desta radical e conservadora teologia da história estabelecer um processo de conhecimento da realidade que transforma o relativo em absoluto. Os teólogos de Princeton  postulavam uma apreensão, sem obstáculos (não existem mediações!), da razão sobre a Escritura que objetivava, empiricamente,  as afirmações sobre Deus e suas relações com o mundo, os humanos, etc.  em objetos e dados sobrenaturais. Desta forma a razão empírica poderia  olhar de forma direta para o céu e conhecer com objetividade o absoluto e verdadeiro, livre de toda dúvida. Esta  modo de interpretação da realidade  tem como alvo oferecer às pessoas  um método para  equacionarem sua situação de crise (existencial, social, cultural, econômica, etc.) e  encontrarem, pelo menos no  plano simbólico, uma solução para seus impasses frente a vida.  Trata-se, segundo este autor,  de uma tríplice operação mediada seja pela razão, pela experiência religiosa ou qualquer outra instância, e que obedece aos seguintes passos:

  • “ o ator, a partir de seus interesses e necessidades sai de sua situação particular e entra em relação com o divino; ou seja, as pessoas lêem a Bíblia ou o Corão, ou procuram uma experiência extática ou alguma outra experiência entendida como revelatória. Esta representação do divino passa, desse modo, a fazer parte de seu ‘mundo’ emocional e racional.
  • a partir de então este ator estabelece uma relação imediata com o objeto religioso (o divino). É quando a distância entre o objeto e o sujeito (o ator)  - que ‘experimenta’ ou ‘conhece’ -  desaparece: como isso, na interpretação do texto sagrado é proclamado um suposto imediatismo da razão em lugar de uma consciência hermenêutica; no rito se pratica a fusão extáctica em lugar da adoração.
  • Num terceiro momento, o ator atribui uma nova qualidade ao objeto de sua ação religiosa, aquela do absoluto.

Desta forma – continua Shäfer - o fundamentalismo rompe a diferença categorial entre o divino e o humano, entre a fé e a visão, entre a confiança e o conhecimento.  Com isso ele transforma aquilo que é próprio dos atores ( suas necessidades e seus interesses) em algo que se torna absoluto e passa a ter validez universal. Isto acontece por duas razões: primeiro, por aproximar-se do texto, ou da experiência com o Sagrado, a partir de pre-compreensões (na maioria dos casos, não percebidas pelos próprios atores) determinadas por suas situações particulares (pessoais, sociais, políticas, etc.),   o texto, ou a experiência, é transformado num espelho - ainda que opaco – dos seus próprios interesses. Em segundo lugar, por atribuir a esta experiência, cognitiva ou emocional, que é necessariamente uma experiência particular, uma validez absoluta e universal.  Através desta operação conceitual o fundamentalismo religioso usa  a alteridade sagrada como meio para que o ator  retome aquilo que lhe é próprio de um modo novo, ou seja, como algo sagrado.” 14 Com este enfoque o autor procura sublinhar que a vivência sob  a  égide  da  hermenêutica   fundamentalista  é  sempre  auto-centrada.  O outro,  o diferente de mim, o que está fora de mim é sempre ilegítimo e ímpio. Trata-se, pois, de uma ideologia voltada para a transformação  de uma experiência de crise em outra de aquisição de poder. Ou nas palavras do autor: “O Fundamentalismo religioso transforma uma experiência de crise social e pessoal numa experiência religiosa de poder, numa nova visão de mundo e numa nova possibilidade de superação prática da crise e, se for o caso, inclusive por meio da busca do poder social.” 15 Daí a advertência de Rubem Alves: “ O Fundamentalismo é, talvez, a grande tentação que nos assalta. ‘ Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal,’ disse a serpente ao homem.  Qual é a pessoa que não anseia por trocar seus palpites por visões da realidade, suas dúvidas por certezas, sua provisoriedade por eternidade, suas inquietações e incompletude por paz e realização? A solução fundamentalista nos liberta do doloroso confronto com uma realidade sempre inacabada, sempre em mutação, sempre perturbadora, sempre questionadora.”16

O Fundamentalismo entre nós

Nos cerca de 150 anos de presença protestante no Brasil podemos perceber, com relativa facilidade, a presença do espírito fundamentalista entre nós. Principalmente entre as Igrejas oriundas do trabalho missionário das igrejas norte-americanas que refletiram, ao longo de sua história, repetindo-os aqui, numa versão tupiniquim, os embates teológicos que estremeciam suas matrizes norte-americanas.  Segundo o saudoso professor Antonio G. Mendonça, “ O protestantismo no Brasil é produto de uma teologia que veio se cristalizando a partir do primeiro missionário que aqui chegou. Na era missionária refletiu lutas com as quais nada tinha a ver; posteriormente, as crenças da realidade foram reforçadas e sistematizadas pelo Fundamentalismo. Assim, a essas doutrinas iniciais alienadoras da realidade, como a da Igreja espiritual e o apocalipsismo, juntaram-se as do fundamentalismo, como o entorpecimento dos estudos bíblicos e a desconfiança da reflexão teológica, o escolasticismo dogmático e a total alienação do homem da participação nos eventos históricos, por causa de sua inflexível teologia da história.  Não há espaço nem tarefa para o teólogo. A tarefa, quando se apresenta, resume-se na apologética e no ataque ao criticismo.” 17
O Protestantismo de missão no Brasil, segundo uma já recorrente tipologia, foi resultado do investimento missionário das igrejas norte-americanas a partir dos despertamentos religiosos dos séculos XVIII e XIX, principalmente, que deram forma a um protestantismo conservador, anti-moderno, por excelência conversionista e muito propenso às teses fundamentalistas.  A eclosão desse movimento nos Estados Unidos como que contaminou as sociedades missionárias reforçando o elemento conservador e criando espaços para a admissão, pelo menos dissimulada, das propostas fundamentalistas entre nós..  Nas décadas de quarenta e cinqüenta, do século passado,  a ofensiva fundamentalista, representada pela presença do pastor Carl Mcintyre visitando  as igrejas brasileiras, estabeleceu um divisor de águas bem claro. A  maioria das denominações protestantes brasileiras, optou por permanecer sem uma definição clara: não  aderiu abertamente às teses fundamentalistas mas, tão pouco, as renegou claramente. A indecisão revelou-se uma opção, pelo menos, latente. As transformações experimentadas pela sociedade brasileira a partir dos anos cinqüenta e sessenta  que, no mundo eclesiástico protestante podem ser emblematizadas pela polêmica “Conferência do Nordeste”, promovida pela Confederação Evangélica do Brasil e, na sociedade,  pelo golpe militar de 1964, se encarregaram de definir a natureza conservadora e, para a maioria dos setores do protestantismo nacional, fundamentalista. As conseqüências são conhecidas.
Se o professor Mendonça está certo, ao afirmar que o Pentecostalismo  tem por moldura teológica o Protestantismo de missão,  com o que concordo,  a inoperância social e política do Protestantismo entre nós,  por causa de sua ética individualista e sua cegueira em relação ao caráter decisivo das relações sociais, o coloca entre as forças que trabalham contra as dinâmicas de transformação e emancipação da sociedade brasileira. Se isto é verdade, não nos resta outra alternativa senão reconhecer que, no sucesso das iniciativas neopentecostais que hoje assistimos, está presente a contribuição fundamentalista do protestantismo.
Concluímos com uma declaração de Pace/Stefani que, a nosso juízo, resume de forma completa o desafio que o Fundamentalismo continua a nos colocar:  “A abordagem fundamentalista é perigosa, pois é atraente para as pessoas que procuram respostas bíblicas para os seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas mas ilusórias, em vez de lhes dizer que a Bíblia não contém, necessariamente, uma resposta imediata a cada um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem o dizer, a uma forma de suicídio do pensamento. Coloca na vida uma falsa certeza, pois confunde, inconscientemente, as limitações humanas da mensagem bíblica com a substância divina dessa mensagem.” 18
Morada dos Dias, 19 de agosto de 2008.

Zwinglio M. Dias, Doutor em Teologia pela Univ. de Hamburg (Alemanha); Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF; Pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil; Assessor de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço onde é Editor da Revista Tempo & Presença.

 

Pace, E., Stefani, P., Fundamentalismo Religioso Contemporâneo. S. Paulo: Paulus, 2002. Pg. 22

Carnell, E.J., Fundamentalism, in  Halverson M,/Cohen A .(Eds.) Handbook  of Christian Theology, London: Fontana Books, 1958, pg.  146.

Moltmann, J. Fundamentalismo e Modernidade, in  Concilium/241- 1992/3. Petrópolis: Vozes. 1993. Pg. 142.

Pace, E., Stefani, P., op.cit. Pgs. 29-46

Bonino, J. Miguez, Rostos do Protestantismo Latino-americano. S. Leopoldo: Sinodal, 2003. Pg. 39.

Barr, J., Fundamentalism, apud Bonino, J.Miguez, op.cit. Pg.39

Bonino, J. Miguez, ibdem, Pgs.37,38

ibdem, pg. 38

Cf. Velasquez Filho, P., “O nascimento do ‘Racismo’ confessional: raízes do Conservadorismo protestante e do Fundamentalismo”  in A. G. Mendonça/Velásquez Filho, P., Introdução ao Protestantismo no Brasil, S. Paulo: Ed. Loyola/Ciências da Religião,  1990. Pgs. 111 a 131.

Pace, E.,Stefani, P., op.cit. Pg. 32.

Bonino, J. Miguez, op. cit. Pg. 39

Pace, E./ Stefani, P., op.cit. Pgs. 35-36

Velasques Filho, P., op.cit. Pg. 117/118.

Schäfer, H., “Oh Señor de los Cielos, danos poder en la tierra!” in  Revista Pasos, nº 64 San José: DEI, 1996, Pg.  3

Schäfer, H., op. cit. Pg. 4

Alves, R., O Enigma da Religião, Petrópolis: Vozes, 1979. Pg.  117

Mendonça, A. G. “Vocação ao Fundamentalismo: Introdução ao Espírito do Protestantismo de Missão no Brasil” in  Mendonça, A. G./Velásquez Filho, P., Introdução ao Protestantismo no Brasil. S. Paulo: Loyola/Ciências da Religião. Pg.  143

Pace, E./Stefani, P., op.cit. Pg. 185