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JOÃO CALVINO: 500 ANOS!
Ano 4 - Nº 17
Outubro de 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Sobre as vocações em João Calvino (Cultivo, Cultura, Culto)
Por: Emmanuel Flores Rojas

Para quem se torna protestante-reformada, LARJ.”

“A palavra vocação quer dizer “chamado”... e implica que Deus faz um sinal com o dedo e diz a cada um: ‘quero que viva assim ou assim’.”
(João Calvino, Sermão XLIV, Mt 3, 11-12)

“Não existe capacidade, indústria ou aptidão que não se deva reconhecer como proveniente de Deus.”
(João Calvino, Comentário a Mt 25,15)

“Aqueles que consideram a Calvino como um mero teólogo não estão bem inteirados da grandeza de seu gênio.”
(J. J. Rousseau)

Calvino e sua ausência no Presbiterianismo do México
Por ocasião do Jubileu Reformado e Reformador pelos 500 anos do nascimento de João Calvino, cristão universal (verbigracia católico) e reformador francês do século XVI, sempre será pertinente voltar ao primigênio pensamento teológico, político, social e econômico de tão insigne servo de Deus e homem da Igreja. Num esforço, não tanto para exaltar sua própria figura ou personalidade, coisa que ele mesmo teria detestado e reprovado, mas numa tentativa sempre louvável de resgatar parte da grande tradição calviniana que configurou nossa cosmovisão como cristãos reformados. Ao mesmo tempo é uma oportunidade para ressaltar o fato, nunca bem ponderado, do reconhecimento de Calvino como o grande impulsionador da Reforma latina dentro da Igreja Ocidental. Por isso que nós, como reformados latino-americanos, estamos sendo chamados a ler Calvino numa chave hermenêutica latina, a partir de nosso próprio contexto cultural e social, sem a mediação do calvinismo holandês e norte-americano, tão presentes em nossas estruturas mentais e eclesiásticas. Pois, como afirma o teólogo portoriquenho Rubén Rosário-Rodrigez: “O Calvino que se conhece na América Latina é um Calvino mediatizado, mais calvinista que Calvino e filtrado através da ortodoxia doutrinal encapsulada pelo Sínodo de Dort (1618) e importado graças aos esforços missionários anglo-americanos.”1 Nosso desafio, como reformados mexicanos, consiste em des-aprender acerca desse Calvino filtrado por olhos alheios aos nossos.
O Jubileu pelo 5º centenário de nascimento do Reformador genebrino não podia ser mais propício para o caso mexicano, principalmente quando vemos que dentro da Igreja Nacional Presbiteriana do México sopram ventos de conservadorismo e de revanches bíblico-teológicas da direita recalcitrante, nunca satisfeita e sempre ávida de evocações fundamentalistas e puritanas que já deveriam ter ficado no passado. No meio de tudo isso, torna-se necessária a reflexão sobre as origens de nossa tradição teológica e eclesial. Talvez seja interessante não passar por alto aqui que uma parte majoritária do presbiterianismo mexicano se tenha assumido como o grande paladino do que eu chamo de “ortodoxia deformada” que pouco ou nada sabe de Calvino e de seu legado. Para amostra basta um botão.
Em 1951, apenas há poucos anos da recém formada Assembléia Geral da então chamada Igreja Presbiteriana no México, aconteceu o primeiro cisma no presbiterianismo mexicano, quando o Presbitério Nacional da Cidade do México decidiu separar-se da comunhão com a Igreja Presbiteriana no México por causa do que denominou como “modernismo” bíblico e teológico, uma luta totalmente estranha à realidade da Igreja Presbiteriana mexicana. Daí surgiu o que hoje se conhece como Igreja Nacional Presbiteriana Conservadora do México. Comunidade estancada no tempo e no espaço que continua usando a tradução da Bíblia de Reyna-Valera, revisada, de 1909, como autêntica palavra de Deus, infalível e divinamente inspirada, embora seja uma tradução pouco confiável. Nada mais próximo da bibliolatria. Uma Igreja Reformada conservadora? Sim, por absurdo e paradóxico que isto possa parecer. Seria demais afirmar, por outro lado, que reformado e conservador são dois antônimos irreconciliáveis como a graça cara e a graça barata, na formulação de \Bonhoeffer. Ou se é reformado ou se é conservador porque, ontologicamente falando, não podemos ser reformados-conservadores. É inaudito que muitos presbiterianos mexicanos continuem crendo que tal como se vive o presbiterianismo no México, assim se o experimenta em todas as partes do mundo. Não concebem, por exemplo, como um presbiteriano mexicano possa ser ecumênico, porque tal palavra esta proscrita da linguagem dos presbiterianos mexicanos! A estes, se lhes torna difícil pensar em categorias diferentes daquelas em que foram domesticados e alienados. Nas palavras de Leopoldo Cervantes-Ortiz, na minha opinião um dos principais calvinólogos do México, para celebrar adequadamente a Calvino é preciso começar por desmistificá-lo, buscando uma teologia contextual que responda às nossas necessidades mais agudas:

A primeira parte destas últimas palavras [Calvino, às vezes, cumpre uma função mítica] descreve exatamente o que acontece no México no sentido de que foi uma caricatura (ou um mito) de Calvino o que tem guiado a conduta da Igreja Nacional Presbiteriana. Alguns líderes e membros pensam que a Reforma Protestante é apenas um assunto do passado, sem importância para os problemas atuais da fé cristã. Assim, o culto, a evangelização, a educação e outras áreas do trabalho eclesiástico, não estão informadas pela influência histórica e teológica da herança reformada. Assim, a geografia tem estabelecido as circunstâncias nas quais a Igreja  trabalha e pensa: a longínqua Europa, com seus próprios problemas é alheia, estranha, no que se refere à compreensão do legado reformado, porque existe uma associação entre a figura dos líderes religiosos europeus, tanto no passado como agora, cujo estilo de fazer teologia não responde às nossas necessidades.2

Qual é, então, a influência exercida por João Calvino nas Igrejas Presbiterianas mexicanas? Como se pode sentir o legado de Calvino no México, tanto na Igreja como na sociedade? Onde mais se nota a ausência de Calvino? Pelo que se disse até aqui se poderia pensar que Calvino tem estado completamente ausente do México, mas o certo é que a influência de Calvino, embora não se tenha deixado sentir em sua totalidade no presbiterianismo mexicano, deixou suas marcas em nossa sociedade ainda que por meio de formas que os presbiterianos atuais não têm a mínima suspeita.

Calvino e seus filhos/as no México
Apesar dos diferentes, variados e contraditórios rostos da reforma reformada mexicana, a influência de Calvino sobre seus filhos espirituais mexicanos se fez sentir em diferentes âmbitos como a política, a economia, a educação e o indigenismo mexicano. Um exemplo disto são os irmãos Aarón y Moisés Sáenz Garza, os quais influenciados e impulsionados pela Fe reformada que seus pais abraçaram primeiro e logo depois eles, no século passado e no ante-passado, puderam se destacar na sempre difícil política mexicana. Onde poderemos encontrar signos de esperança que possam reorientar o presbiterianismo mexicano em sua luta contra o dogmatismo que ameaça afogá-lo? Que luz podemos encontrar nesta procelosa hora escura? Aqui apresentamos algumas coordenadas que podem iluminar nosso caminhar como comunidade de fé, da mesma maneira que fizeram com outras gerações:

A religião reformada impactou aqueles setores que transitavam da sociedade tradicional para a capitalista: os trabalhadores das minas, os ferroviários, os trabalhadores fabris, os diaristas das fazendas dedicadas à agroindústria e à exportação, e os pequenos proprietários e arrendatários rurais. Isto é, nem os pobres, nem os ricos, nem as classes médias tradicionais: os adeptos da nova religião eram do mesmo tipo de homens nos quais a propaganda anarco-sindicalista dos irmos Flores Magón e a radicalização do liberalismo estava encontrando eco, ou seja, o proletariado emergente, as novas classes médias urbanas e alguns grupos de pequenos sitiantes.
Ainda que seja falsa a idéia de que o protestantismo tenha dado vida à Revolução mexicana, é verdade, no entanto, que foi uma das correntes que a alimentaram. Na medida em que o governo de Díaz foi se tornando uma ditadura, muitas sociedades protestantes, surgidas no calor da abertura liberal dos governos de Juarez e Lerdo e os primeiros anos do porfiriato, foram se legando ao liberalismo radical e transitando à oposição. Não foi à toa que, já começado o século XX, Juan de Sáenz (pai de Aarón e Moisés) foi se aproximando dos círculos da oposição liberal (moderada), até ao ponto em que por volta de 1909 mantinha estreitos laços com Venustiano Carranza. Ao mesmo tempo, por mais paradoxo que pareça, as comunidades protestantes eram ferventemente nacionalistas, dentro do nacionalismo liberal e laico que exaltava os líderes da independência e da reforma e reclamava o desenvolvimento capitalista do México e a educação de seu povo.3

Como podemos ver, os filhos de Calvino no México, trouxeram importantes contribuições para o desenvolvimento acadêmico, educativo e cultural do país. Entre eles se encontra o Professor presbiteriano Moisés Sáenz Garza, que foi o pai da educação Secundária no México. Atuou como Diretor Geral de Educação no Estado de Guanajuato e também no Distrito Federal. Foi Diretor da Escola Nacional Preparatória e Diretor da Escola de Verão da UNAM, sendo também catedrático de Filosofia e Letras na escola Nacional de Professores, Oficial superior e Subsecretário de Educação Pública. Sob o mandato de Plutarco Elias Calles ocupou, por breve tempo, a Secretaria de Educação Pública em 1028. Foi também Diretor Geral da Beneficência Pública e Presidente do Comitê de Investigações Indígenas. Sobre ele escrevi, em 2007 para El Faro, o seguinte:

O presbiterianismo mexicano se tem caracterizado por ser de corte conservador e, às vezes, no intuito de cuidar esse perfil pietista e puritano, esquece muito da rica tradição reformada. Em muitas ocasiões, tristemente, chegou à glorificação do Evangelho, já que o pastor, na tradição reformada é, por autonomasia, um docente. Por isso é importante recordar hoje um dos professores presbiterianos mais destacados do México. Não apenas para nos sentirmos orgulhosos no interior da Igreja Presbiteriana do México, mas, principalmente, por seu compromisso acadêmico com nosso país.
O professor Sáenz foi um dos filhos mais brilhantes do presbiterianismo mexicano do século XX. Moisés Sáenz nasceu em 13 de fevereiro de 1888, em Mezquital, município de Apodaca, Nuevo León. Passou ali sua primeira infância e, depois, trasladou-se a Monterrey para realizar seus estudos primários. Instalado na capital de Nuevo León, freqüentava a Igreja Presbiteriana “Bom Pastor”. Segundo os dados proporcionados pelo pastor Saúl Tijerina G., também militou na sociedade do Esforço Cristão da citada igreja. Em 1899, sendo apenas um esforçado militante juvenil, já que contava com apenas 11 anos de idade, foi comissionado, na importante igreja. [...] Moisés Sáenz não apenas se destaca como educador, mas também como político e diplomata. Foi representante do México na Dinamarca, Equador e embaixador no Peru. Seu modelo educativo no México teve tanto êxito que os governos da Bolívia e da Guatemala vieram a estudá-lo para implantá-lo em seus países. Assim, Moisés Sáenz se nos apresenta como um autêntico reformador educativo, colocando-se entre os grandes mestres da fé reformada mundial, que nasce com Ulrico Zwinglio e se aprofunda com João Calvino. Onde estão hoje os grandes mestres reformados que tanto necessita a Igreja Presbiteriana e, principalmente, todo o México? A pátria reclama professores comprometidos com Jesus Cristo, que venham a impactar a Igreja e o mundo.”4

Hoje poucos sabem no México, que um dos pais do indigenismo no país foi um cristão-calvinista reformado, que aplicou o aprendido nas aulas presbiterianas em favor dos indígenas mexicanos. Sáenz criou, no tempo do presidente Lázaro Cárdenas, o Departamento de Assuntos Indígenas (DAI) e foi um dos principais organizadores do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, convocado e celebrado em 1940, em Pátzcuaro, Michoacán. Como intelectual protestante, Moisés Sáenz “se reconheceu como um pregador da reforma social e confessava que possuía ‘tanto os defeitos como as virtudes de todo pregador”5  Será que Calvino influiu realmente no pensamento e ação dos irmãos Sáenz Garza? Não será nossa tese um simples anacronismo? Para responder a estas perguntas tomemos nota da seguinte questão que envolve a Aarón Sáenz e que fala por si mesma:

Com o tempo Aarón Sáenz terminaria por desligar-se da Igreja Presbiteriana, mas, entretanto, a disciplina, o amor ao trabalho – o vício pelo  trabalho – [marcas calvinistas] e a idéia de que  só a educação e o progresso fariam o México um país rico e forte, foram princípios e idéias determinantes na construção de sua concepção de mundo [cosmovisão calvinista?] Pois se isso fosse pouco, o hábito da discussão e da expressão, próprios de uma religião na qual o fiel toma parte ativa, lhe permitiram destacar-se entre seus companheiros, tanto no Colégio Civil de Monterrey como no ateneu Fuente de Saltillo, porque antes de ser líder estudantil (para dizê-lo em termos atuais) tinha participado ativamente na comunidade presbiteriana: em março de 1909, a Sociedade do Esforço Cristão da Igreja Presbiteriana de Saltillo (Bethánia?), que agrupava a 40 jovens de ambos sexos que faziam o trabalho de difusão da religião reformada e organizavam reuniões científicas e literárias, elegeu como presidente a Josué Sáenz Garza e como secretário a Aaron Sáenz Garza. Foi neste cargo que o jovem Aaron publicou seu primeiro escrito, no qual resenhava os festejos organizados em saltillo pela Sociedade do Esforço Cristão em homenagem ao quarto centenário do nascimento de João Calvino. Na verdade, é bastante sintomático das características dessas sociedades protestantes o fato de que, tanto na celebração em honra de Calvino como no artigo de Sáenz, o reformador genebrino seja comparado com Benito Juarez.6

Apesar do dito anteriormente o presbiterianismo mexicano aprendeu a “descafeinar” o rico (e às vezes picante) pensamento calviniano, para conformar-se com leituras fundamentalistas totalmente alheias ao pensamento dinâmico da fé reformada. Tais leituras constituem uma traição à “tradição” calviniano-reformada porque se encontram descontextualizadas do marco “material” da existência humana; são transmundanas, em termos weberianos. Por isso, nos 500 anos do nascimento do reformador reformado, mais do que repetir a Calvino se impõe interpretá-lo num esforço de re-apropriação (ou quem sabe de apropriação?) numa perspectiva latino-americana e, especificamente, mexicana.
Ao pai espiritual dos cristãos reformados convém também criticá-lo porque como ser humano não é infalível. Assim que não podemos meramente repetir o que Calvino pensava, sem traí-lo, trair a nós mesmos e à herança reformada da qual somos beneficiários. Por isso mesmo ao Calvino histórico é preciso lê-lo e relê-lo “a partir de diferentes perspectivas para conservar a sua historicidade”, frescor e dinamismo. Mas isto não significa, entretanto, que tergiversemos o seu pensamento em favor de certa postura ou ideologia, pois “aqueles que se contentam em repetir as palavras de Calvino não são bons calvinistas; não aprenderam dele, [como] dizia Barth.” 7

Fé reformada e cultura
A fé cristã, como acertadamente comentou em suas intervenções o Rev. Dr. Zwinglio M. Dias, não está desvinvulada de um contexto histórico-concreto, portanto, social, já que, como ele mesmo afirmou: “Igreja e sociedade são termos gêmeos”.8 Como é evidente a tradição reformada não existe num vazio cultural, mas nos devidos marcos de referência, tanto teológicos como políticos, econômicos e sociais que a tem configurado como um dos sistemas de pensamento mais vigorosos historicamente conhecidos. Aqui se configura um certo ethos, ou seja, uma “natureza” que dá forma à identidade e princípios protestantes. Esta natureza do protestantismo reformado e sua consequente  filosofia da vida nos leva, pela força da necessidade, a problematizar acerca da ideia da vocação e das vocações no pensamento teológico do reformador genebrino.
Como compreendia Calvino as vocações em seu sistema teológico? Que vinculações encontramos entre essa teologia das vocações e a doutrina reformada do “mandato cultural”? Ninguém desconhece que Calvino significou um passo mais à frente em muitas questões da chamada “reforma pela metade” proposta por Martinho Lutero. O francês, à diferença do alemão (com sua teoria dos dois reinos), considerava que o mundo era o “teatro da glória de Deus” (theatrum gloriae Dei), onde o Senhor manifestava todo o seu glorioso resplendor. Já no início da Instituição... (I, v) se afirma que a glória de Deus resplandece de forma majestosa em toda a criação.
Para Calvino cada parte do universo criado por Deus estava “salpicada” do esplendor divino: “... a qualquer parte que olhemos, - diz ele – não há coisa no mundo, por pequena que seja na qual não se veja luzir certos brilhos de sua glória”.9 ,Sendo Deus o soberano do mundo, nada escapa a sua potestade divina e, por isso, nada acontece por azar, mas tudo é obra de sua Providência. Em consequência, seu ‘desígnio amoroso’ está na base das vocações cristãs, como o mandato cultural dado a todo ser humano para realizar-se e construir-se no mundo criado por Deus. Para Calvino o mundo foi criado para o homem. (Embora, como assinala Croatto, também acontece o contrário, porque Deus cria o ser humano para trabalhar a terra)10.
Talvez, como nenhum outro livro da Bíblia, os Salmos exaltam o poder, a deidade e a majestade de Deus: “Deus está nos céus e nós na terra”; essa é a grande diferença entre Deus e nós. Assim, o Salmo 8 começa dizendo: “Ó Javé, Senhor nosso, quão glorioso é o teu nome em toda a terra (v. 1) a grandeza de Deus está acima dos mais altos céus! Deus é soberano e é exaltado na majestade das alturas”. Mas, segundo o salmista qual é a glória de Deus ? Onde se encontra a maior glória de Deus?
A glória de Deus é o ser humano vivo sobre a terra! Não há maior glória de Deus que a vida humana, isso é o que o engrandece como nada. O salmista assim o reconhece e se sente subjugado ante o sentimento de que, apesar de todas as obras da criação de Deus, e ele quis mostra-se como Deus no ser humano, porque ele, como nenhuma outra criatura, leva as marcas do divino. O nome de Deus é glorioso em toda a terra porque os únicos que podem pronunciar esse nome são precisamente os homens. Os homens cultivam o horto, criam a cultura e, assim, rendem culto ao criador no cotidiano da vida humana.

Diversidade Cultural e Fé Reformada
Que importância tem a cultura para a fé cristã? Como se concebe a cultura a partir da tradição calviniana-reformada? Em primeiro lugar é preciso ter em conta o seguinte:

Homens e mulheres constituem o objeto da crença cristã em Deus, mas também são parte da cultura: são seres culturais. Por esta razão o contexto específico, social e cultural no qual vivem os crentes, sobre o qual se modela a fé cristã, é, ao mesmo tempo, aquele através do qual se assimila esta fé de forma vivencial e, finalmente, aquele no qual se experimenta a fé em termos concretos por homens e mulheres viventes aqui e agora. [...] a crença em Deus também mantém uma relação crítica com toda cultura, e esta cultura se encontra, além disso, preparada pela graça que chama a homens e mulheres para atuarem...11

Na visão calviniana a cultura também teria que redimir-se de seu estado de prostração no qual caiu por causa do pecado humano. Esta redenção inclui o trabalho do ser humano para a glória de Deus. Deus criou os seres humanos do ó da terra e para a terra! Moisés Sáenz conceituou em sua visão educativa a “diversidade cultural indígena”: “Em lugar do ensino exclusivo do castelhano, favoreceu a preservação e promoção das línguas indígenas e alentou a publicação de dicionários, gramática e literatura. Os programas educativos deveriam respeitar a diversidade cultural.”12

O Mandato Cultural e as Culturas
Aqui recusaremos dois conceitos que nos parecem errôneos para nos aproximarmos do estudo das culturas. Por um lado está o etnocentrismo cultural e, por outro, o relativismo cultural. O primeiro se baseia numa espécie de “evolucionismo cultural” que proclama as diferenças abismais entre culturas primitivas ou simples até às culturas modernas ou mais complexas. Fala-se, então, em “cultura” no singular e em minúscula para dar ênfase às diferenças entre estas e a outra “Cultura”. Cada cultura “inferior” deve “progredir” até chegar a norma. Assim, “a cultura ocidental se considerava superior às outras culturas porque acreditava que era a civilização mais evoluída. [...] a implicância – sic – era uma forma torcida, eurocêntrica de avaliar as culturas: a cultura ocidental se converteu na norma segundo a qual devia ser julgada toda outra cultura.”13
Por outro lado, o relativismo cultural embora negue que as culturas sejam hierarquizadas das inferiores às superiores, afirmando que devam coexistir umas com as outras e ser apreciadas apesar de suas diferenças, como de igual valor, também não nos satisfazem. Por isso, aqui sub-escrevemos a seguinte tese: “Este ponto de vista, portanto, é de opinião de que, na medida em que cada cultura é “verdadeira” em seus próprios termos, uma cultura não tem o direito de avaliar ou julgar outras”14 Isto é correto, mas ao afirmar que qualquer cultura está acima de qualquer crítica tem, entretanto, o problema de fazer com que as pessoas permaneçam cativas em sua própria cultura, fechando-lhes a possibilidade de ver sem apreciar – do mesmo modo que o etnocentrismo – a diversidade cultural.
Entretanto, a teologia reformada é particularmente aberta à diversidade cultural baseada num de seus conceitos fundamentais, como o é a doutrina do “Mandato Cultural”. A partir dos dois relatos bíblicos da criação, esta postura procura o reconhecimento da diversidade cultural como algo positivo e querido por Deus.

A tradição reformada apela a uma atenção especial ao chamado mandato da criação ou mandato cultural dado por Deus a todos os seres humanos no Gênesis. Em Gn 1, 28 se lhes ordena povoar a terra e dominá-la, e segundo Gn 2, 15 deviam cuidar do Jardim do Éden. Este mandato não se limita à agricultura, mas ao pleno desenvolvimento do potencial da criação. Inclui todos os demais aspectos da cultura como o surgimento dos idiomas, as ferramentas simples e a tecnologia sofisticada, todos os tipos de relações humanas, as artes, as ciências, etc. [...]
Um exame cuidadoso dos primeiros onze capítulos do livro de Gênesis confirma o fato de que a intenção de Deus não foi que houvesse uma única cultura, mas o desenvolvimento de muitas respostas diferentes a seu mandato. Depois da inundação, os descendentes de Noé se dispersaram povoando “toda a terra” (Gn 9, 19). Em Gênesis 10, aparece “uma tábua das nações” e se repete (Gn 10, 32) que se “desparramaram as nações em toda a terra”. Isto implica, automaticamente, na diversidade cultural. Em razão das diferenças do meio-ambiente se desenvolveram diferentes ferramentas, formas de agricultura, idiomas e estruturas sociais”15

Cultivo, Cultura e Culto
À luz do exposto até aqui podemos afirmar que existe uma relação intrínseca entre o culto, o cultivo e a cultura, e não apenas por causa do prefixo! Expliquemo-nos. Quando Deus criou os seres humanos para que o glorificassem, os colocou no Horto ou no Jardim do Éden (Gn 2, 7-8) para que o lavrassem e cuidassem (Gn 2, 5). Ao contrário do que se pensa, os seres humanos não estavam “gazeteando” no Jardim, mas já trabalhavam; porque o ser humano foi criado para glorificar a Deus por meio de seu trabalho, isto é, foi chamado para transformar a natureza (Gn 2, 5). Isto significa que, biblicamente falando e de acordo com a teologia reformada, não existem dualismos ou dicotomias, nem profissões ou vocações profanas, na medida em que sirvam a Deus e ao próximo. Da mesma maneira não há vida “secular” a parte da espiritual, mas sim que tudo aquilo a que nos dedicamos – por insignificante que pareça – deve honrar e glorificar a Deus (I Co 10, 31; Cl 3, 23). Um cristão reformado não pode se permitir falar de vida espiritual na Igreja e vida secular no mundo.

 ...é preciso dizer, enfaticamente, que a atividade cultural responde ao mandato de Deus. A confeitaria, a eletrônica, a jardinagem, o esporte, a arte, a saúde, a educação, a indústria, etc. são atividades que, em si mesmas, são um serviço (culto) a Deus, porque em todas essas empresas o ser humano responde à vocação de Deus de cultivar e cuidar do Jardim, de subjugar e assenhorear-se da terra. Quando um pedreiro constrói uma casa, a própria atividade de pegar os tijolos e levantar as paredes é uma resposta à vocação de Deus. Quando esse pedreiro se converte a Cristo, sua fé não deveria relegar a sua profissão ao plano do âmbito mundano ou secular, como se não fosse uma atividade espiritual em resposta a uma vocação divina. Na verdade, sua fé deveria reorientar sua profissão a fim de cumprir dita vocação de modo a glorificar a Deus. O pedreiro glorifica a Deus não apenas quando evangeliza seus companheiros de trabalho ou canta hinos cristãos enquanto levanta as paredes, mas Deus é glorificado quando cultiva sua profissão de forma que ela mesma é uma glória a Deus. Minha fé deveria me capacitar para realizar uma contribuição cultural à sociedade. Por meio do cultivo de minha profissão, qualquer que seja esta, minha fé deveria me habilitar para trazer justiça e bem-estar ao um mundo decaído. A tarefa pastoral não é mais espiritual que o trabalho de ser chefe de manutenção de uma fábrica, uma vigília de oração não é mais espiritual do que uma marcha de protesto organizada por um assistente social cristão em favor dos oprimidos. Cada um, no lugar em que Deus o chamou para cultivar e cuidar do Jardim, deve servir a Deus. Converter o mundo para Cristo não significa converter a todos em religiosos alienados da sociedade; e ser cristão não significa escapar dos problemas da sociedade para se refugiar num suposto mundo espiritual. Parte do que é ser cristão implica em perguntar-se como cultivo minha vocação, como desenvolvo minhas capacidades, como contribuo para a sociedade, como posso desenvolver uma perspectiva cristã de justiça e amor dentro da vocação em que me toca servir ao Senhor. É a fé que deve nos levar a isso, é a doutrina cristã, o evangelho o que deve guiar e inspirar nosso cultivo do Jardim.16

O “cultivo” de uma profissão ou trabalho presta culto ao criador, porque responde à vocação a qual Deus nos chamou como criaturas feitas a sua imagem e semelhança (Gn 1, 27). O Jardim é o mundo no qual Deus nos colocou para cultivá-lo. Desta idéia de cultivar o Jardim surge o conceito de cultura; tudo o que o ser humano cultiva (ou transforma) por meio de seu trabalho e de sua atuação no mundo, se converte em cultura, e isso glorifica a Deus, isto é, lhe presta culto. Por isso a Deus se lhe glorifica em cada área de atividade da existência humana. De nenhuma maneira estamos de acordo com Croatto quando afirma que “não há, com efeito, em Gn 2-3 nenhuma palavra sobre o culto a Deus. Nem em 2, 15 onde se lhe poderia esperar”17 Em oposição a esta visão encontramos a posição calviniana e reformada sobre o mesmo tópico de cultivo-cultura-culto:

O texto diz “para que o cultivasse” [2, 15]. Desta idéia de cultivar o Jardim vem a palavra cultura. Pode-se dizer que toda ocupação humana participa de alguma maneira deste cultivar e guardar. Ao usar estes verbos o relator nos dá uma definição básica da atividade humana. Ao mesmo tempo quer-nos dizer que a intenção do Criador para com sua criatura está no trabalho e em tudo o que uma pessoa é capaz de realizar. A cultura é, portanto, o resultado do cultivo ou desenvolvimento de tudo que o ser humano toca. O ser humano interatua com o mundo e o muda, o transforma, o cultiva, e assim aparece a cultura. Intrínseca à nossa cultura está a inclinação a cultivar tudo o que está ao nosso redor. Além disso, Deus coloca Adão no Jardim para que “o guardasse”. Aqui este verbo tem o sentido de “preservar, cuidar”. Isto indica que o mandato cultural não deve por em perigo a integridade da criação. Quando Deus diz ao homem que subjugue e domine sobre a terra, não lhe permite que a explore e oprima destruindo o eco-sistema. A imagem de Deus só se faz presente naquelas atividades culturais que desenvolvam o potencial da criação numa forma que ressalte sua beleza, frescor e vitalidade.”18

De evocações e equívocos calvinianos
Embora Calvino esteja profundamente interessado no ser humano e sua vocação, nunca perde de vista o horizonte mais amplo da criação em sua totalidade. Calvino, mais do que qualquer  outro teólogo da Reforma, foi constantemente mal interpretado e injustamente acusado de situações anacrônicas com as quais ele não tinha nada que ver, como são os chamados pecados ecológicos. O pensamento de Calvino em nenhuma parte nos ensina a acabar com a criação de Deus. Nada mais absurdo poderia ser inferido de uma leitura preconceituosa de seus textos.
Mas, vamos em frente – comenta Calvino. Quando se nos diz “não os destruirás” o propósito é recordar-nos que sempre devemos preservar o que foi instituído por Deus, especialmente quando sabemos de seu amor paternal para com a raça humana. Deus deu aos seres humanos uma terra para morar e os estabeleceu ali. Quando causamos tanta destruição que os pobres habitantes se vêm forçados a deixar sua terra, e quando, se lhes permite regressar a seus lares em tempos de paz, encontram tudo tão devastado a tal ponto que a terra, que alguma vez foi fértil e bem cuidada, agora é estéril e deserta, sem uma única árvore da qual recolher uma maça, por acaso não destruímos a bondade amorosa que Deus demonstrou para com a raça humana? Certamente, devemos estar cegos pela ira para agir desta maneira contra a graça de Deus que deveria abrandar nossos corações, embora estes sejam duros como a rocha.
Há uma regra que faríamos bem em observar. Se em algum momento nos sentimos movidos para fazer algo danoso ou prejudicial, devemos recordar isto: nosso Senhor nos colocou neste mundo e nos deu tudo o que considerou necessário para a nossa vida. Se eu privo a esta terra de todas as bondades que Deus lhe deu para prover alimento aos seres humanos, certamente isto significa que estou destruindo a generosidade que Deus derramou sobre a raça humana e a torno inútil. Sou digno de que esta terra me sustente quando deste modo trato de destruir as bondades que Deus dispôs tanto para meu próximo como para mim? Sou digno quando já não estou disposto a deixá-la viver livre e soberanamente? Por acaso isto não me converte num monstro?19

*Graduado em Filosofia e Letras e em Psicologia pela Universidade Autônoma do Estado do México; Pastor da Igreja Nacional Presbiteriana do México; Diretor Acadêmico do Seminário por Extensão “Nicanor F. Gómez”.

 

1  Apud Cervantes-Ortiz, L., Juan Calvino em México y América Latina: su presencia y ausencia en la Iglesia y la Sociedad. (http://www.lupaprotestante.com/pdf/17a-16abr-ic.cons-esp.pdf)
2  Cervantes-Ortiz, L., op.cit.
3 Salmerón S., Pedro, Aarón Sáenz Garza. Militar, Diplomata, Político, Empresário. México: Grupo Editorial Porrúa, 2001, PP.30-31. (Ênfase do autor)
4 Flores-Rojas, E. Moisés Sáenz Garza, Educador y Reformador Presbiteriano, El Faro, Nov.Dez./2007. O texto original que enveiei a El Faro não foi publicado na íntegra nesta citada edição, foi mutilado e mudado sem meu consentimento, apresentando um sentido triunfalista que originalmente não possuía, mas era uma crítica à ‘glorificação da ignorância’. Neste fato se mostra, por um lado,  a falta de liberdade de expressão dentro da INPM e, por outro, o perfil fundamentalista que não aceita crpiticas de nenhuma índole.
5 Aguilar R., José Antonio, no prólogo a Moisés Sáenz, México Íntegro, México: CNCA, 2007, p.29
6 Salmerón, P. op.cit., p.31. O artigo mencionado tinha por título: “Em honra de J. Calvino” e foi publicado no El Faro ,t.XXV, nº.31, México, 30 de julho de 1909.
7 Arjona M, Rubén, De la sumisión a la revolución: a influencia de Calvino en el desarrollo del protestantismo francés. México, Centro Basilea de Investigación y Apoyo, A. C., 2001, p. 7
8 Dias, Zwinglio M., La pastoral reformada y sus desafíos (apuntes sobre la identidad y las tareas de la comunidad Cristiana reformada em el presente contexto histórico). Inédito.
9  Calvino, J., Institución de la Religión Cristiana, (I,v,1) . Barcelona:  FELiRe, t. 1, 6ª ed., 2006.
10 Cf. Croatto, J.S. Crear y amar en libertad. Estudio de Genesis 2,4 – 3,24 (El hombre en el mundo, vol.2): Buenos Aires, 1986, pp.31ss.
11 Schillebeeckx, E., Jesús em nuestra cultura. Mística, ética y Política. Salamanca: Ed. Sígueme, 1987.p.10.
12Sáenz, Moisés, op.cit., p. 20..
13 Van der Walt, B.J., op.cit., pp.7-8.
14 Ibidem.
15 van der Walt, B. B., El choque de culturas: cómo explicar y evaluar las diferencias culturales desde una perspectiva cristiana reformada. Pp.4-5.
16 Meeter, H. Henry, Marshall, P., Principios teológicos y políticos del pensamiento reformado. Grand Rapids: Libros Desafio, 2001. Pp 14-15
17 Croatto, op.cit.,p.206.
18 Meeter, H. Henry, Marshall P., op.cit. p.11
19 Calvino, J., Quarto Sermão sobre Deuteronômio 20, 16-20. Pregação do dia 20 de dezembro de 1555.Aliança Reformada Mundial. Genebra: Centro Internacional Reformado John Knox, 2008, pp, 59-60.