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JOÃO CALVINO: 500 ANOS!
Ano 4 - Nº 17
Outubro de 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Página de KOINONIA
 
O protesto da Reforma

Neste quinto centenário do nascimento de João Calvino o que é mesmo que os protestantes estão a comemorar? Somente a data natalícia de uma pessoa que se tornou um ícone do protestantismo mundial e, segundo historiadores, um dos fundadores da Modernidade? Se for só isso seus admiradores e pretensos seguidores não estarão sendo fiéis à grandiosa obra do Reformador genebrino. Ele sempre entendeu que a igreja cristã deveria ser uma comunidade que emerge no meio da história humana por obra e graça do Espírito da Vida e que só se mantém como tal na medida em que se submete humildemente à Palavra criadora de Deus e celebra com alegria o Mistério de sua presença entre nós. Nela não pode haver espaço para o destaque de indivíduos isolados, nem para o culto de personalidades, porque se trata de uma comunidade de iguais. Fiel a essa compreensão da igreja como a representação humana da presença de Deus entre suas criaturas, renegou títulos, honrarias e, inclusive, um salário correspondente à sua condição de líder da igreja genebrina, vivendo modestamente até ao ponto de não permitir que colocassem uma lápide indicativa em seu túmulo. Para ele a comunidade, e somente a comunidade, importa. Porque só em comunidade podemos alcançar a plenitude de nossa humanidade.

Em sua leitura atenta das Escrituras, Lutero, e depois dele Calvino, vão descobrir que não existe nenhuma continuidade entre o criador e as diferentes ordens da criação. Deus é o “totalmente outro” que não podemos reconhecer, é o “extra nos” que nos envolve, “em quem existimos e nos movemos”, como nos ensina o apóstolo Paulo, e que, entretanto, toma a iniciativa de vir até nós revelando-nos sua vontade de comunhão e oferecendo-nos, sempre, novas possibilidades para uma vida plena de sentido. Isto é, a dimensão do Sagrado que os reformadores encontraram nas páginas da Bíblia era muito diferente da divindade que até então conheciam. Trata-se de um Deus diferente, que vive na voragem do tempo, agindo dinamicamente, sempre criando coisas novas, sempre convocando homens e mulheres para participarem da grande trama da redenção da vida. Portanto, um Deus sempre direcionado ao futuro; jamais prisioneiro de espaços sagrados e mediações estáticas de qualquer natureza.

Desta compreensão teológica só podia nascer uma eclesiologia totalmente distinta da manejada pela igreja medieval. Se Deus age na história e cuida do mundo, pelos mais diferentes e surpreendentes caminhos, para realizar os objetivos de sua vontade, a igreja só pode cumprir seu papel na medida em que responde com fidelidade a essa processo redentor da vida. Ou seja, quando percebe e persegue as novas possibilidades abertas em diferentes momentos da história, para tornar verdadeiramente humana a vida de todos os humanos. Nas palavras de um historiador: “Lutero mudou a igreja de vizinha no espaço para profeta no tempo. A igreja deveria estar não a cem passos do palácio ou da prefeitura, mas a cem horas, ou dias, ou meses, à frente de qualquer transação realizada nessas casas.” Com esta perspectiva não havia lugar para hierarquias de qualquer espécie. Todos os homens e mulheres são iguais diante de Deus, limitados e incompletos (isto é, pecadores!) e carentes de seu poder restaurador da vida.

É disso que trata o chamado espírito protestante, também chamado de princípio protestante - tão ausente das comunidades cristãs hoje em dia -, o qual como uma espora ou um espinho crítico e afiado recorda à comunidade de fiéis a necessidade de constante renovação, mudança e transformação, para tornar-se capaz de acompanhar a ação redentora de Deus no mundo. Entretanto, sua operacionalização histórica é sempre obstaculizada, seja pelas tendências estáticas de auto-reprodução presentes nas instituições eclesiásticas, porque a comunidade do fiéis ao ganhar forma dentro das culturas tende a tornar-se uma instituição social como qualquer outra, seja pelo temor do desconhecido, da novidade, que pode por em questão atitudes, práticas consagradas e interesses consolidados. Nem mesmo os Reformadores puderam se livrar dos ardis gerados pelo poder institucional. Lutero deixou atrás de si uma igreja comprometida com os poderes dos estados alemães e Calvino teve que travar uma batalha permanente, até sua morte, para não deixar-se enredar pelos interesses políticos do poder civil genebrino. Nem sempre conseguiu. As igrejas norte-americanas que se espalharam por toda a América Latina e Caribe estavam, culturalmente falando, submetidas, de uma ou outra maneira, aos valores e interesses da democracia liberal capitalista de seu país e vão relacionar esse projeto, e seu passado, como um modelo que deve ser repetido e não renovado e refeito em função das novas demandas postas pelas mutantes realidades experimentadas pelo mundo.

Como todos nós, Calvino foi um homem limitado pelas coordenadas de seu tempo e sua cultura. Não se pode repetir o que ele fez, porque nossa conjuntura é outra e fazê-lo seria não somente negar seus princípios, como violar as bases mesmas do evangelho cristão, dando mostras de uma terrível incompreensão acerca do que ocorre em nosso tempo e lugar. Mas, sim, podemos e devemos imitá-lo em sua aproximação ao sentido essencial do evangelho e às angustiantes questões que envolvem a condição humana e que são, em todo tempo e lugar, fundamentalmente as mesmas. Assim, os herdeiros da herança Reformada, com Calvino devem seguir para além dele no esforço de reinvenção da igreja cristã, de modo a responder aos grandes desafios que a injustiça que predomina no mundo coloca para a comunidade dos que se querem seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré.