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MILITÂNCIA ECOLÓGICA E LUTA SINDICAL NO CAMPO
Ano 4 - Nº 18
Dezembro de 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
O porvir do passado. O retorno das sensibilidades tradicionalistas e exclusivistas no catolicismo contemporâneo: uma interpretação Begueriana
Por: Rodrigo Portella

Rodrigo Portella 1

 

RESUMO: A comunicação tem como objetivo visualizar, a partir das transformações pelas quais a Igreja Católica passou após o Concílio Vaticano II - com abertura ao diálogo e à alteridade -, o movimento inverso a esta abertura, que se percebe hoje em setores e novas organizações da Igreja: a volta a um estilo de Igreja tradicional, pouco dialogante, exclusivista e afeita, algumas vezes, ao integrismo. O que causa uma nostalgia do passado? Por quais motivos muitas pessoas e movimentos eclesiais têm feito um caminho oposto ao do aggionarmento conciliar, e têm cultivado expressões de fé e espiritualidade fechadas e tradicionalistas? São questões que o presente texto levanta e tenta responder.

Palavras-Chave: Igreja Católica; exclusivismo; secularização; reencantamento; segurança ontológica.

 

O fundamentalismo faz a seguinte pergunta à modernidade:
“Podemos viver num mundo em que nada é sagrado?”
Anthony Giddens - Mundo em descontrole - p. 59

Introdução

Igreja Católica e secularização: sobre um namoro e suas conseqüências
A racionalização e a secularização levaram tempo para atingir internamente a Igreja Católica, cuja estrutura religiosa, ao contrário da do protestantismo, é mais afeita – e assim se sustenta – ao universo “mágico” e “encantando” de santos, anjos, aparições, milagres, intercessões, incensações. Já no século 19, e segunda metade do 20, as Igrejas protestantes históricas conheceram os influxos da sociedade moderna, dialogando e cedendo a ela, através da teologia liberal e das teologias do processo, ou seculares (vide análise em BERGER, 2004, p. 168-177). A Igreja Católica, entretanto, só veio a conhecer parecido processo interno de secularização – guardadas as devidas e grandes diferenças em relação ao processo protestante - após o Concílio Vaticano II. Mas conheceu.
Um mundo sagrado caiu, cedendo a um sagrado adaptado ao moderno. O clero já não necessitava mais de tonsuras, batinas, colarinhos eclesiásticos. O latim foi banido da missa. A própria missa foi amputada em sua estrutura tradicional, ficando mais simples, mais prática, com menos mistérios e incensos, numa palavra, mais moderna, racional. O padre, que antes falava seu latinório incompreensível, baixo e contrito, de costas para o povo, agora fala a língua nativa, de frente para o povo, em alto e bom som. A racionalização da missa. Eliminam-se a bênção do santíssimo e as procissões, ou pelo menos há drástica redução destas práticas (ANTONIAZZI, 1989, p. 22). A Igreja começou a comungar com o “inimigo” de antes, o socialismo, o marxismo. A política se redimensiona. A Igreja, de legitimadora sagrada do status quo econômico-social passa a ser contestadora dele. O confessionário cede à “psicologia pastoral”. As construções modernas de igrejas veem seu adro adornado com o mínimo de santos possíveis, às vezes somente aqueles intrinsecamente necessários (Maria e o padroeiro da paróquia). Anjos – cuja existência uma teologia mais racionalizada passou a contestar, ainda que à boca miúda – e santos “suspeitos” de inexistência ou sincretismo demasiado (Sãos Cristóvão, Jorge, Cosme e Damião, etc) passaram a ter pouca ênfase devocional por parte do clero. Ordens religiosas tiveram efeitos laxantes e frades e freiras ganharam liberdades dantes cerceadas. Nomes onomásticos deram lugar aos antigos nomes civis. A Igreja passou a ser vista não só como a santa hierarquia, magistério, mas como “povo de Deus”, colegiada. 
Sanchis (1988, p. 9) identifica, explicitamente, o mundo desencantado e racional como típico, por exemplo, da Teologia da Libertação e das CEB’s, onde não é o mundo sobrenatural que, em última instância, dirige e define o mundo natural, mas o próprio ser humano, através de suas construções sociais e lutas políticas. A secularização, ad intra catolicismo, levou a Igreja Católica pós-conciliar a apresentar, sobretudo na América Latina, sua mensagem mais em termos éticos (paz, justiça, direitos) que em termos estritamente teológicos ou trancendentalizados. Aí também Pace (1999, p. 33) vê um vetor de secularização interna da Igreja, que cede ao discurso moderno. Os anjos foram exilados. Inclusive os do “mal”, já que o demônio foi reduzido à metáfora, tendo sido substituído pela figura genérica do mal (GOPEGUI, 1997, p. 327-339), tantas vezes identificada com sistemas políticos ou econômicos.
A lista de concessões à modernidade, à democracia e ao zeitgeist é longa. Aqui nos valeu a pena citar alguns exemplos, para cruzá-los com seus contrapostos, respostas atuais, e dizer que, se hoje a Igreja se volta ao passado, é porque, talvez – e este é um de meus pressupostos – ela não só tenha perdido o poder do dossel sagrado em relação à sociedade e a indivíduos, como também tenha introduzido a perda de tal dossel para seu ambiente interno, estrutural. Em uma palavra, tenha cedido internamente à modernidade racionalizante e secularizante e, assim, conforme o olhar dos críticos internos a este processo, tenha cedido ao “mundo”. A Igreja teria abandonado uma teologia e compreensão de mundo e de si supostamente coesa, do passado, para adaptar-se à lógica plural moderna. E isto é tão mais evidente quanto o esclarece um “papável” da década de 70-80, o eminente cardeal Lorscheider, ao afirmar que a visão medieval do cristianismo e a antiga teologia escolástica são inadequadas ao mundo moderno, e assim se justifica a pluralidade teológica e a autonomia das Igrejas locais (LORSCHEIDER, 1996). Ou seja, o mundo moderno ditando quem deve ser a Igreja, como ela deve pensar e agir. Ecclesia ancila orbis.

Como a fênix ressurge das cinzas, os deuses renascem dos túmulos
Peter Berger, em seu clássico “O Dossel Sagrado”, fazendo um contraponto entre a estrutura protestante, propícia à secularização, e a católica, resistente a ela devido ao seu universo encantado, afirma que o universo católico, povoado de anjos, santos, “Marias”, é um lugar seguro, em termos de plausibilidade, para seus “habitantes”, abrigados nesta abóboda celeste (BERGER, 2004, p. 134). Mas justamente esta abóboda ruiu, ou teve graves rachaduras, após o Concílio Vaticano II e os influxos da sociedade moderna para dentro da Igreja Católica nos últimos 40 anos. Não que tenham desaparecido os elementos deste universo encantando. Porém, foram relegados, por muitos dos representantes da Igreja, ao segundo plano, e sequestrados da vida cotidiana das igrejas.
Quero ressaltar que “a realidade do mundo cristão depende da presença de estruturas sociais nas quais essas realidades apareça como óbvia e em sucessivas gerações de indivíduos sejam socializadas (...) Quando esta estrutura de plausibilidade perde a sua integridade ou a sua continuidade, o mundo cristão começa a vacilar e sua realidade deixa de se impor como verdade evidente” (BERGER, 2004, p. 59-60). Ora, a modernidade, desde longe, já vinha incomodando e questionando a realidade católica, que sempre respondia a ela com seus index errorum e seu fechamento ao mundo, cujo ápice foi o papado de Pio IX. Entrementes, após a 2ª grande guerra, a Igreja inicia ensaio de abertura – e consequente fragilização de sua auto-proteção contra a sociedade moderna – cada vez maior. O Concílio Vaticano II foi a oficial abertura aos novos ventos, como o frisou João XXIII. A partir daí ocorre o que Berger afirma acima, uma ruptura de integridade e continuidade, uma pluralização interna (ou a explicitação dela). Perde-se o elo, a liga, o chão. O catolicismo oficial passa a ser vários catolicismos “oficiais”. É neste sentido que, após tal primavera católica, alguns notam, de repente, o que foi, enquanto “unidade”, deixado. A saudade do útero, do uno, se torna presente. E, a partir daí, neste sentido, “quanto menos firme se torna a estrutura de plausibilidade, mais aguda se tornará a necessidade de legitimações para a manutenção do mundo. De um modo característico, o desenvolvimento de legitimações complexas ocorre em situações em que as estruturas de plausibilidade são ameaçadas deste ou daquele modo” (BERGER, 2004, p. 60).
Para a secularização que veio a permear a Igreja a partir da década de 1960, podemos usar a bela imagem de Berger (1973, p. 22-23), que diz que os teólogos – leia-se “a Igreja” -, após o naufrágio causado pela nova ordem científico-técnica e do pensamento moderno, aportaram nas terras dos “positivistas lógicos”; e também que, aos poucos, querendo ou não, foram exorcizados por seus antagonistas e influenciados por eles. Assim como havia ocorrido com o protestantismo liberal, o catolicismo foi conhecendo tal influência secular e sendo regido por seus pressupostos e regras, causando uma “profunda erosão dos conteúdos religiosos tradicionais” (BERGER, 1973, p. 24). A erudição histórico-crítica e secular que influenciou a Igreja pós-conciliar fez, em alguns lugares, uma política de terra arrasada. As ciências, sejam exatas, biológicas ou sociais, retiram do mundo a aura sagrada, e a “vida cotidiana fica privada da legitimação sagrada e do tipo de inteligibilidade teórica que a ligaria com o universo simbólico em sua pretendida totalidade” (BERGER, 1976, p. 152). Pois bem: a Igreja Católica, em boa medida e em boa parte de seus representantes oficiais, após décadas de resistência e oposição, apostou no namoro com a sociedade moderna, com as ciências, com o mundo "lá fora". E, como em todo namoro e casamento um dos enamorados, tantas vezes, tem que abrir mão de certos hábitos, pensamentos, maneiras de ser, a Igreja Católica teve que recrudescer em muito quanto a certos axiomas e hábitos que a sociedade moderna não admitia para o enlace matrimonial.
Na América Latina, de forma particular, a Igreja que se articulava de forma íntima com o zeitgeist teve que re-orientar seus paradigmas de seu específico, de seu papel. Afinal, o vácuo, a anomia, não é habitável e, se algo morre enquanto definidor de sentido e ação, outro elemento deve ser pensado como aquilo que preencherá a catedral, agora mais vazia de seus símbolos antigos. E, como o namoro com seu tempo - décadas de 1960 a 1980 - estava bom, a Igreja latino-americana assume um rosto emergente da época, da militância social e política - de viés à esquerda -, vindo a reinterpretar a Bíblia a partir e a serviço deste paradigma. O reino de Deus passa do céu à terra; a abóbada celeste encantada, em seus mistérios e em sua pompa, se esvazia para dar lugar à concretude de uma ação secular e histórica, sendo que a própria religião cristã é interpretada, agora, para dar sustentação a este giro copernicano, do céu à terra. E isto influi em todos os ambientes da Igreja: na liturgia, na moral, na oração, enfim, em seu jeito de ser e estar no mundo. E como se não bastasse, bricolagens, sincretismos, pluralidade religiosa, discurso da Igreja que se une a ideologias não religiosas ou que varre o universo encantado para adaptar-se a certa secularização, tudo isso constitui “não somente uma ameaça teórica para o universo simbólico, mas uma ameaça prática para a ordem institucional legitimada pelo universo simbólico em questão” (BERGER, 1976, p. 145).
Se uma das saídas para a sustentação plausível do catolicismo – já carente de seu mundo encantado de antes – foi a opção pela atuação política, do compromisso libertário para com os pobres, esta faceta, que para muitos foi o que sobrou do edifício católico de outrora, não dá conta do problema cognitivo fundamental (BERGER, 1973, p. 27), do poder aconchegar o ego e definir uma identidade diante da pluralidade a partir de um universo simbólico estável e normativo. Afinal, uma ação em favor de justiça social, por exemplo, pode ser oferecida com rótulos não religiosos e, talvez assim, inclusive, com mais eficiência. Os refúgios seculares aos quais a Igreja e a teologia aportaram (interpretação histórico-crítica da Bíblia, psicologia pastoral, métodos sociológicos para planejamento pastoral, ação político-social como mote principal do evangelho, organização comunitária de base) tinham seus correspondentes seculares. Mas, por trás de tanta novidade, que a "cidade secular" já oferecia a seu jeito, ficou, na organização existencial de muitos, um vazio de mistérios, de um mundo oculto e povoado do "povo do invisível", de adorações místicas e sofrimentos vicários. Não que boa parte das pessoas não mais tenham se ligado, em práticas e opções pessoais de fé, a este universo que, outrora, era tão estável e alienado - no sentido de Berger -, impossível de não ser, objetivamente, real. Mas o fato é que a própria Igreja tinha, em muito, se desligado desse mundo. É claro que sempre houve bolsões - de vários tamanhos, dependendo do lugar - de resistência e fidelidade à tradição passada. Porém, o fato é que, com a pós-modernidade, que por sua vez veio a derrubar as grandes narrativas seculares, inclusive aquelas em que a Igreja embarcou, o mundo de muitos, inclusive de ex-adeptos de uma Igreja enamorada da sociedade e de suas narrativas, se vê sem os referenciais que antes o ancorava em portos ou em utopias. Sobraram ou a resistência nas antigas trincheiras, agora enfraquecidas, ou a volta ao passado, reassumido após a decepção do namoro moderno.      
Para estes últimos não é nada engraçado, como aponta Berger com seu fino humor, estar despojado de um sentido cósmico, totalizante, e refém de um “desalmado” Darwin, por exemplo (BERGER, 1973, p. 48). Diante deste quadro, de insistente namoro com a modernidade ou da anomia geral do jogo pós-moderno, cada vez mais pessoas e setores na Igreja optam por “manter (ou possivelmente reconstruir) uma posição sobrenaturalista diante de um mundo cognitivamente antagônico. Isto exige uma sobranceira, uma recusa firme de ‘virar nativo’” (BERGER, 1973, p. 33). E cada vez mais há pessoas sobranceiras para tal resistência que se desenha nos contornos da tradição mais aguerrida de contraposição ao mundo. Sim, é quando o universo simbólico bem conversado de antes entra em colapso que surge a necessidade mais forte de mecanismos de manutenção daquele universo (BERGER, 1976, p. 143-144). Neste sentido, “a negação do nosso universo [pelos outros] transmuta-se sutilmente na afirmação dele [por nós]” (BERGER, 1976, p. 156).
Seguindo a intuição de Weber, Berger (1973, p. 44), “profeticamente”, vê que futuramente – hoje, se me permitem interpretar a localização de seu vaticínio:

Áreas significativas de sobrenaturalismo continuarão a se encravar na cultura secularizada. Algumas delas poderão ser remanescentes do tradicionalismo (...) outras podem ser novos agrupamentos. As grandes organizações religiosas continuarão provavelmente sua infrutífera busca de um meio-termo entre o tradicionalismo e o ajornamento, tendo pelas pontas o sectarismo e a dissolução secularizante sempre importunando.

            Diante e em resposta ao último espectro citado, o sectarismo vem se fortalecendo e encontrando, em novos grupos, cada vez mais espaço na Igreja. E Berger (1973, p. 117) arremata, em outro momento, que: “Com respeito a alguns elementos da tradição, posso ver uma forte reafirmação de suas formulações clássicas, uma reafirmação adversus modernos, ‘contra os modernos’ diante dos olhos da consciência secularizada”.
Esta é a nova cruzada santa. Mais ainda que fora, o inimigo está na própria Igreja, tomou alguns de seus postos. É preciso reconquistar as áreas da influência malévola, que deixou a tantos sem o teto de seu céu estrelado de mistérios e plausibilidades existenciais, para, exorcizando tais fantasmas, retornar ao lugar de onde a Igreja nunca deveria ter saído: do passado - idealizado ou não - que se opõe ao espírito do mundo e busca construir a cristandade baseada no mistério, na autoridade divina exercida através da Igreja, em seus ritos e universo simbólico, e este, o quanto mais povoado, melhor. 
Se é verdade que o catolicismo sempre lutou – embora também tenha cedido à modernidade – contra a secularização, o procedimento mais freqüente para tal batalha foi seu entrincheiramento em subculturas dentro da sociedade maior, “fortalezas a serem defendidas contra um mundo secular que não se pode mais querer submeter a uma reconquista” (BERGER, 2004, p. 178). Embora que, a meu ver, tais fortalezas, que se erguem na Igreja Católica, visem, sim, uma reconquista. Pois a via não é a do diálogo – que poderia ser interpretada como um ceder ao jogo secular do “mundo” – mas da afirmação de que apenas há uma realidade verdadeira, sendo as outras falsas e passíveis de denúncia. É, também, uma questão de poder, ou seja, de, na visibilidade do diferente e confronto com ele, saber qual a definição de realidade mais legítima (BERGER, 1976, p. 148).
Sim, a “cidade antiga”, os modelos do passado parecem estar melhores aparelhados para produzir certezas e mundos de sentido do que "nossas organizações sociais" modernas (BERGER, 1973, p. 63) e do que uma Igreja secularizada. Se no passado os indivíduos viviam em instituições sociais e religiosas que lhes davam um sentido geral e coeso de mundo, o indivíduo moderno se encontra numa pluralidade de plausibilidades que leva ao relativismo ou anomia (BERGER, 1973, p. 64-65). Neste sentido, movimentos religiosos que buscam identidades fortes são respostas a um vazio de rumos e rostos, na sociedade ou na própria Igreja, pois “todo nomos é uma área de sentido esculpida de uma vasta massa de carência de significado” (BERGER, 2004, p. 36). E somente numa contra-comunidade é que minorias cognitivas podem se sustentar, pois ela oferece constante terapia contra a dúvida e o “mundo” lá fora, através da solidariedade afetiva entre os membros e da oposição frente ao mundo externo ameaçador (BERGER, 1973, p. 34). Daí o surgimento de novos movimentos "terapêuticos" neste sentido, que visam, através da via (pós)moderna - sim, querendo ou não eles também são (pós)modernos - da comunidade emotiva e seletiva do passado, encontrarem veios de sustentação de um mundo que já não existe, mas que é reconstruído diante de um mundo que, atualmente, parece à deriva e que não diz a que veio.
Berger (1973, p. 19) analisa tais grupos como comunidades de minorias cognitivas. Mas, dando o necessário desconto à época em que escreveu, vejo que na contemporaneidade tais minorias são, para usar a expressão de Hélder Câmara, abraamicas; isto é, embora possam ser minorias cognitivas enquanto grupos distintos com distintas concepções espirituais e de encantamento, cada vez mais se tornam, quando juntas, maioria em uma sociedade cuja secularização leva pessoas à construção – ou re-construção – de universos religiosos – ainda que particulares – que deem alguma plausibilidade cósmica em meio a efeitos anômicos da sociedade.

Ares encantados: a volta de um estrepitoso rumor de anjos
Em um processo dialético, portanto, a Igreja Católica contemporânea volta a conhecer uma reafirmação daquilo que perdera, ou havia sido obnubilado, com a dinâmica pós-conciliar. Em um movimento de rejeição ao espírito de época que haveria contaminado a Igreja em sua estrutura (liturgia, devoções, teologia, comportamentos), se verifica, cada vez, mais um retorno ao baú de lembranças religiosas pré-conciliares. E isto não vale somente para o catolicismo e o Brasil, pois “na cena religiosa internacional, são os movimentos conservadores, ortodoxos ou tradicionalistas que estão crescendo em quase toda parte. Esses movimentos são justamente aqueles que rejeitaram o aggiornamento à modernidade tal como é definida pelos intelectuais progressistas” (BERGER, 2001, p. 13).
Seguindo a trilha de que o mundo atual vê estraçalhadas as grandes narrativas, as utopias e esperanças, os projetos e credibilidades políticos, que, como o quer Fukoyama a respeito da produção ideológica, a história teria chegado ao seu fim, é demasiadamente frágil e sem apelo, cada vez mais, o mundo como construção humana, especialmente para as desconfiadas e desiludidas novas gerações. Neste sentido, o mundo como opus alienum, dos deuses, do sagrado dossel, parece se mostrar cada vez mais atrativo e sólido para muitas consciências (BERGER, 2004, p. 99). Este mundo, vindo de fora, eterno, passa a ser, para muitos, o único a dar rumo seguro e duradouro, a definir estilo de vida com segurança. A alienação religiosa, conforme Berger (2004, p. 106), é penicilina contra a anomia, a falta de rumos seguros.
Neste sentido Berger aponta para uma “contra-secularização”, uma resposta em alto e bom som ao processo que também invadiu as estruturas internas de Igrejas e religiões. Aponta como características de tal “revanche” a forte paixão religiosa, a resistência aos costumes modernos e um retorno às fontes da tradição e da autoridade religiosa (BERGER, 2001).
Se o cristianismo católico reconhece a perda de influência matricial no modelamento da cultura e dos indivíduos, sua reação implica em iniciativas para retomar seu papel de referência totalizante, ao menos para os que se encontram sobre a égide católica. “Surge assim o catolicismo intransigente que se propôs a alimentar uma utopia reinstitucionalizadora” (CARRANZA, 2004, p. 124s). Carranza fala de utopia e mito da velha cristandade. Infere-se, daí, que tal projeto quer colocar novamente, na ordem do dia social e individual, a força católica de antanho, reerguendo uma utopia católica da religião perfeita e ideal a toda sociedade e aos seus fiéis. Enfim, a racionalização do mundo e sua consequente secularização “provocou problemas de anomia e de busca de sentido, tanto em nível institucional como individual; nem mesmo soteriologias secularizadas (a ciência, o marxismo) parecem estar em grau de construir equivalentes funcionais satisfatórios da religião, na sociedade moderna” (MARTELLI, 1995, p. 300). Portanto, com o fracasso em o mundo moderno dar sentido à vida e oferecer às pessoas um sobrenatural – ou natural social substitutivo, como o queria o marxismo – eficiente, o espectro da falta de rumos impele à volta dos mundos dantes construídos, num revival saudosista e idealista. Os revivals emocionais são interpretados como protestos implícitos a uma excessiva racionalização da religião (SANCHIS, 1988, p. 15).
O crescimento de práticas e filosofias de esoterismo, a partir da década de 1960, não deixa de ser, por outro caminho, uma crítica reativa ao catolicismo que perdeu seu lado misterioso, iniciático, enfim, que se secularizou (CARVALHO, 1999, p. 140). Muitos, de uma ou de outra forma, aderiram a movimentos esotéricos justamente nesta busca pelo mistério, pelos fundamentos últimos, que certa secularização/racionalização da Igreja relegou ao segundo plano, ou não mais enfatizou.
Porém, se os anjos voltam, não o fazem impunemente. Há uma luta a travar. Um mundo que os expulsou resiste a eles, e eles devem lutar contra esse mundo que os excluiu ou quer excluir. Assim, para uma Igreja – ou movimentos nela - que quer zelar pelo patrimônio de sua tradição, a cultura moderna é lida como potencialmente ameaçadora (CARRANZA, 2004, p. 125). Portanto, precisa ser negada. E negada mais do que com palavras, mas de forma performática, visível, apoteótica se possível, com hábitos, tonsuras, incensamento da eucaristia e triunfos eucarísticos. Enfim, os anjos que voltam precisam ser expostos triunfalmente.
Enfim, diante da ameaça que o mundo moderno representa e diante do desvirtuamento da religião e tradição que traria, alguns preferem aderir a uma utopia sócio-religiosa que rebusca uma identidade no passado, a partir da nostalgia de um tempo imaginado como ideal (IANNI, 1996, p. 221). A Igreja Católica, em boa medida, vem caminhando por esta estrada a partir de alguns de seus novos movimentos religiosos.
Como já apontei, uma das formas de se voltar a um mundo seguro, sustentado e protegido por forças encantadas, é a volta a um espiritualismo que cultiva um cosmos invisível cheio de vida e influências sobre a realidade empírica e sobre as vidas. Negrão (1997, p. 72) reconhece que, de forma adorcista ou exorcista, a crença no mundo dos espíritos e de suas influências no mundo está impregnado de forma visceral na cultura religiosa brasileira. Daí que movimentos de recuperação de um dossel sagrado têm grande facilidade de vingarem no Brasil. Assim como os movimentos esotéricos, novos movimentos religiosos – a maior parte à direita – na Igreja se colocam como uma crítica à modernidade religiosa, na luta contra a perda do mistério, contra interpretações “razantes” do mundo propostas pela ciência e modernidade (CARVALHO, 1998, p. 57s). O mundo é maior que o visível, e o visível passa a ser reflexo de um mundo invisível que o controla. Platão e seu mito da caverna voltam a questionar a modernidade científica e secularizante. Como no catolicismo rústico ou popular, de origem medieval e, mais atrás, gnóstico, “são os deuses e os demônios os seres que lutam entre si pela posse do controle do destino dos sujeitos terrenos” (BRANDÃO, 1986, p. 193).
Aí se insere a interpretação da “batalha espiritual”. Sempre lembrando que a luta contra o Diabo é, na história da Igreja, uma luta contra a heresia, a profanação, o outro, numa lide pela cristianização (THOMAZ, 1991, p. 54). E o mote da perseguição do “mundo” ou do Diabo - que se encontra por trás desta batalha - produz, outrossim, as bases necessárias para que se sustente a comunidade (BERGER, 1973, p. 34). Ou seja, enquanto houver um combate santo a ser travado, justifica-se a força e existência de um grupo e de seus padrões. É no antagonismo que muitos têm sua auto-referencialidade e auto-afirmação.
Enfim, em um mundo em que a racionalidade científico-técnica aboliu questões não empíricas ou não verificáveis empiricamente como influenciáveis da/na realidade, muitos movimentos eclesiais vêm a resgatar um mundo que, mais do que simbólico, é vivido e experimentado como mais real e definidor da realidade do que a própria empiria da realidade tangível.
Neste mesmo estilo de resgate de um mundo encantado e de sentido totalizante está a devoção aos anjos. Mais que a santos – pessoas concretas que viveram um dia na terra – a devoção a anjos recupera um mundo espiritualizado ao máximo. E aí se insere, novamente, a questão do mundo encantado, espiritualizado, como pólo de definição do mundo empírico. A devoção ao anjo militar, São Miguel Arcanjo, que é representado vencendo o demônio, é sua expressão ideal. A devoção a São Miguel também denota a cultura religiosa – que me parece universal – do divino como proteção, como armadura. Sem esquecer que o arcanjo Miguel, caracterizado como sendo da milícia celeste, é representado com armadura e espada, signos militares e de combate. Assim, o caráter de defesa da fé contra o Diabo – que, nas imagens, se encontra pisado sob os pés de São Miguel – também aponta para outro elemento bastante valorizado na religiosidade brasileira: o caráter de proteção que a religião e as forças espirituais cumprem (NEGRÃO, 1997, p. 73). Esse catolicismo, portanto, busca, além do combate, proteção, e por esse veio se dá sua ligação com o sagrado (BRANDÃO, 1986, p. 140). Nem um mundo moderno de indecisões, de pluralidade de rumos – e, consequentemente, de falta de um rumo unitário e encompassador das vidas e sociedades -, a busca por uma proteção segura e que esteja para além do que a sociedade moderna possa oferecer mostra a força que uma volta do mundo encantado exerce como exorcismo à crise de paradigmas da (pós) modernidade.

Conclusão
“A busca acentuada de valores tradicionais parece prometer a recuperação de toda aquela segurança que se perdeu” (BLANK, 1994, p. 12). O mundo encantado que parecia perdido ou exorcizado pela racionalidade moderna volta a ser um esteio de identidade segura e factível para pessoas – e, não por acaso, para muitos jovens – que talvez se tenham visto perdidas no emaranhado pluralista e sem rosto e contornos definidos do mundo contemporâneo. O recorrer ao passado e a um mundo não-secularizado, mas o mais povoado possível do sagrado e do encantado, se torna uma alternativa “nova” que dá estabilidade identitária, vínculo, chão. Diante do sentimento de insegurança que o pluralismo e a dúvida provocam, responde-se “com uma redução cognitiva defensiva e ofensiva”, com afirmações ortodoxas e com o espírito de cruzada, de “reconquista (...) em nome da tradição religiosa” (TEIXEIRA, 2008, p. 195). Anthony Giddens apresenta algumas expressões interessantes quanto à definição desta busca por identidade na sociedade de risco, tais como “confiança” (crença em pessoas ou sistemas, conferida num “ato de fé”); “casulo protetor” (proteção defensiva que filtra perigos do mundo exterior e se funda psicologicamente na confiança); “postura corporal” (conduta estilizada, envolvendo o uso da aparência para criar impressões específicas do eu); “segurança ontológica”, entre outros .          Em uma reação a um mundo moderno que estaria, segundo muitos setores e movimentos da Igreja, deturpando, corroendo a verdadeira religião, a verdadeira Igreja, e jogando milhares de pessoas na anomia, na autonomia religiosa ou no indiferentismo, interpretados como “chagas” da vida na sociedade contemporânea, surgem mais e mais movimentos que, quixotescamente ou não, lutam contra os moinhos de vento da sociedade contemporânea e da Igreja sucumbida a ela, apregoando, os mesmos, a volta à “verdade” das origens, do mundo seguro, totalizante e encantado de dantes, interpretado como o mundo ideal, a Igreja ideal, a vida ideal. O futuro como o eterno retorno ao passado do paraíso perdido.

Bibliografia

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Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador da coleção “Cultura & Religião”, da Editora Santuário.

Ver GIDDENS, Anthony.  Modernidade e identidade, p. 221-223.