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“RELIGIÃO E POLÍTICA: CON(VIVÊNCIA)? CON(FUSÃO)?”
Ano 5 - Nº 22-23a
Novembro de 2010
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Brevíssimas reflexões sobre as rarefeitas distinções modernas entre política e religião
Por: Dr. Raul Francisco Magalhães (Prof. no Curso de Ciências Sociais da UFJF)

Embora possa não parecer este é um micro-ensaio que mira também o Brasil e o tema, sempre lembrado nas eleições, do papel das organizações religiosas nos processos de tomada do poder. A forma de levar essa reflexão é pouco convencional na superfície, mas profundamente ortodoxa na lógica: vai do geral para o particular e daí para considerações prospectivas. O uso da filosofia, mais que dos dados sociológicos, prende-se à necessidade de pensar para além contextos, usando o mundo empírico como provocação e não como realidade inarredável e único lugar de residência da ciência. Pois bem, um dos cânones da modernidade, que ainda estiolada persiste nesse terceiro milênio, consiste em entender nosso tempo como uma multiplicidade de gavetas nas quais podemos observar campos de discussão autônomos sobre religião, arte, política, esportes, saúde, e tantos outros mananciais de ação e sentido no mundo, tomados como esferas relativamente independentes. O esforço interdisciplinar pode e deve, então, cobrir as fronteiras das áreas falando de “religião e política”, ou de “saúde e economia”, ou de “arte e mitologia”, por exemplo. Nesse sentido, a tarefa de gerar um enquadramento entre religião e política se filia ao pressuposto de que tais esferas têm uma lógica interna própria que lhes dá identidade e que reclama o discurso do especialista. Os parágrafos que se seguem, a despeito de cometerem, em certa medida, o mesmo “erro” de separar analiticamente uma e outra, pretendem, também em certa medida, sugerir que os olhares sobre a religião e a política podem dispensar a cirurgia de corte e sutura mais comum no desenho do discurso resultante dos dois tópicos. Embora nada do que foi dito na crítica acima seja original, em termos de uma crítica orientada pela ciência social, há sempre que se tentar, pela escrita, alertar eventuais leitores que a complexidade de um mundo “total”, no qual as dimensões da ação se interpenetram como um quiasma, não é uma particularidade de um outro tempo “primitivo”, que cedeu lugar ao desencantado especialismo da modernidade, mas, ao contrario, está operante diante dos nossos olhos e, mais grave, pelas nossas mãos.

Nesse sentido, sem medo dos anacronismos, cabe lembrar que jamais houve um ponto claro na historia no qual política começou a ser impactada pela religião, ou vice versa, mas antes não há também como estabelecer precisamente o ponto no qual os dois campos se viram depositários de discursos autônomos, com platéias autônomas, capazes inclusive de ficar preocupadas quando encontram superposições entre falas da religião e da política. Religião, crença e irracionalidades de um lado e política, racionalidade instrumental, economia, e conquista “impiedosa” do poder de outro, para não falarmos no campo ainda mais autônomo: a ciência. Se se trata de uma formulação retórica da modernidade separar as esferas de sentido, cabe convidar os interlocutores a uma reflexão talvez não menos retórica, e por isso persuasiva, de olhar para os fatos da política e da religião como possibilidades da vida social, que não se estancam em templos, orações subjetivas, comícios nas ruas ou discursos de assembléias.

Quando Maquiavel nos diz que a religião é importante para manter o povo obediente às leis, mas que as exigências de conquista e manutenção do poder dependem das boas armas e da astúcia dos príncipes então, como regra de interpretação, falamos que ali a política estava se descolando da religião, doravante apenas um recurso ideológico como outro qualquer para se manter a ordem. Esse descolamento se completou com o iluminismo e a ciência social veio sacramentar o processo tornando política, religião, arte, ética, vida, economia, e o todo o mais, lugares discursivos específicos. Não obstante, e essa é a sugestão de reflexão doravante, é cada vez mais possível trabalhar as fronteiras dessas esferas como borradas sem nenhum prejuízo de entendimento da complexidade do mundo.

Uma vez que o propósito desse texto não é se circunscrever ao debate filosófico sobre a hermenêutica dos espaços de sentido da religião e da política, o mais importante para tornar o argumento final operacional, e, num certo sentido, mais complexo e desconcertante como a própria realidade, é traçar algumas hipóteses de trabalho: primeiramente dizer que a religião sempre foi historicamente instrumentalizada para fins políticos e a política um espaço de manifestação do inefável, do sagrado, enfim dos ritos e mitos que pertencem à vida social. Outra hipótese é de que os conflitos religiosos do mundo atual, não obstante seus fundamentos “de igreja”, orientam-se por lógicas políticas e econômicas, ou seja, são ações racionalizadas. A terceira hipótese é a de que as religiões, ao contrário do que se propaga, são centrais para fornecer às democracias contemporâneas e às sociedades modernas o sentido ético do convívio. Observamos para o leitor que essas hipóteses dependem de assumir que estruturas primarias muito antigas da religião e da política são reatualizadas nas sociedades contemporâneas.

Talvez a melhor forma de entendermos como a religião e a política se instrumentalizaram mutuamente desde sempre e continuarão a fazê-lo seja imaginar tensões diante de crucifixos em repartições públicas, orações para iniciar trabalhos “invocando a proteção de Deus...” como dizia um presidente da Câmara de Vereadores da cidade de Juiz de Fora, ou lembrar de um pastor evangélico ligado ao governador do Distrito Federal fazendo uma oração para agradecer ao dinheiro da corrupção, filmado por câmara escusa e exibido para todo o Brasil. A resposta geral e virtuosa dessa instrumentalização recíproca está em que a política e a religião são formas de gestão e reprodução da vida coletiva. A vida é um ponto nodal que une a religião e a política como agências superpostas e até competitivas e, ao falarmos assim entendemos que essa gestão não pode ocorrer sem que aja uma identidade de propósitos entre o sagrado e o secular. Aqui nossa segunda hipótese ganha corpo: a disputa pela gestão da vida implica a racionalização dos interesses dos agentes envolvidos no seu gerenciamento e que deve se materializar em resultados: não em almas salvas, mas em concessões de canais de TV e rádio, em isenções fiscais e, sobretudo, em acumulação de capital. Padres católicos, ou pastores evangélicos que se elegem, para não falar no provável pietismo íntimo de muitos deputados, são atores articulando interesses de natureza prosaicamente econômica, assim como um bem público, como água tratada é, afinal, responsável pela vida, o tema maior do sagrado. A política não é mais ou menos religiosa por ser feita por religiosos e, em todos os casos, ela mobiliza a articulação de interesses como peça da relação meios fins. Nesse sentido, estudar como igrejas fazem candidatos não se diferencia de pensar como o esporte faz candidatos, nada sabemos de um caráter especificamente “religioso” ou “esportivo” dessas investigações.

Se o que foi dito acima é minimamente procedente temos olhos desconfiados para fenômenos alardeados como “bancada evangélica” posto que tais parlamentares votaram, votam e votarão com as direções dos seus partidos, ou conforme suas convicções e, nos casos limite (como aborto), votariam de acordo com a moralidade tradicional. Se as igrejas são uma forma eficaz de organizar votantes isso nada nos diz de mais claro sobre os interesses dos parlamentares em atuação, a menos que se admita o absurdo de que eles portam “interesses religiosos” de natureza singular e não apenas interesses. Na atual campanha de 2010 para a Presidência da República do Brasil literalmente todas as invocações religiosas que aparecem, sobretudo em um candidato, são meras instrumentalizações do imaginário de uma “luta do bem contra o mal”. Então o que estamos estudando quando nosso tema é o uso de igrejas para fazer deputados, governadores e presidentes? Nada mais que política, ou seja, como instituições que operam com o imaginário sagrado são levadas a jogar seus movimentos no campo dos interesses econômicos e, paradoxalmente, influir no maior bem sagrado, que justifica a um só tempo Estados e Igrejas: a vida.

Então entramos na terceira hipótese de trabalho, que nos permite alguma prospecção sobre a questão da esfera religiosa ter ou não de se recolher ao quietismo nas democracias laicas, sob a acusação de que as religiões só podem prover éticas finalistas e assim constituem obstáculos a uma política que opera pelo princípio da responsabilidade, isto é, da avaliação sistemática das conseqüências do ato como elemento que motiva uma decisão de agir ou omitir numa direção ou noutra. A atual campanha presidencial de 2010 gera uma polaridade entre a centralidade do uso de temas religiosos para balizar a escolha do governante. Há um campo que defende que esses temas mistificam a campanha eleitoral, empobrecem o debate político, manipulando o sentimento de cidadãos que são eleitores e simultaneamente pessoas com convicções religiosas. O argumento contrário, inclusive para o Brasil, começa com Durkheim: nossas crenças são sistemas de ação; elas orientam decisões que serão tomadas. Então imaginamos que talvez seja importante rediscutir alguns princípios que guiam nossa moralidade cotidiana. A religião responde a uma condição de capilarizar os valores que vão guiar vidas. Assim, mesmo quando a escolha de um governante traz o aborto para o centro do debate com intenções manipulatórias e eleitorais ele revela problemas sociais que só podem emergir, no contexto conservador da sociedade brasileira, se forem dramatizados politicamente. O tema do aborto entrou na agenda de debate da sociedade brasileira com amplas possibilidades de catalisar outros temas, como as liberdades da pessoa e seus limites.

Um outro argumento é realista: simplesmente não se pode pedir às igrejas e pessoas que parem de entrar na política e que questões religiosas não sejam consideradas tão válidas como outras, para produzir agregação em torno de opiniões para se escolher um governante. O antídoto para a jaula de ferro da política burocratizada e operante pela ética da responsabilidade é a decisão por princípios finalistas generosos com a vida e o nosso reencontro com a natureza e qualquer que seja a linguagem de sua formulação, laica ou tradicional, tais princípios operam como a religião: são tratados como mitos e praticados como ritos; desafiá-los invoca reações morais. Essas idéias são apenas esboços, não devem ser tomadas como afirmações analíticas sedimentadas e apenas orientam um tipo de olhar para o mundo que quer se recusar a pensar dicotomias entre religião e não-religião, arte e não-arte, política e não política.