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“RELIGIÃO E POLÍTICA: CON(VIVÊNCIA)? CON(FUSÃO)?”
Ano 5 - Nº 22-23a
Novembro de 2010
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Espiritismo: um Socialismo-Utópico-Ecumênico
Por: André Andrade Pereira (Cientista da Religião – professor da UFF)

Os antropólogos e sociólogos que me perdoem, mas não podem conhecer o Espiritismo a não ser que leiam os livros de Allan Kardec. É que o Espiritismo é um conjunto de livros publicados na França a partir de 1857 até 1869, por um pedagogo francês, famoso pelos seus livros didáticos e por sonhar empreender uma reforma educacional na França, inspirado pelas idéias revolucionárias de Johann Heinrich Pestalozzi.

Olhar o que acontece nos centros espíritas no Brasil de hoje nem sempre é ver o que, de fato, é o Espiritismo. Como todo movimento religioso, a prática espírita pode muitas vezes caminhar em sentido bem diverso da sua filosofia original. Um exemplo bem simples: nas reuniões mediúnicas de Kardec participavam judeus, muçulmanos, católicos... Sim, o professor lionês era profundamente ecumênico e acreditava que a nova ciência que ele descobrira (e dera o nome: Espiritismo) poderia ser estudada por todos, e que os fenômenos espirituais agora compreendidos ajudariam a fortalecer a fé de todas as religiões. Dificilmente se encontrará esse espírito ecumênico no movimento espírita hoje, em meio a mundial onda fundamentalista.

E por falar em Pestalozzi, Kardec herda de seu professor, com quem estudou dos 11 aos 18 anos em Yverdon, além da pedagogia otimista, amorosa e libertadora, uma visão de mundo que pensa a mudança do indivíduo numa relação dialética com a mudança da sociedade. O homem novo, espiritualizado, desperto das peias do materialismo, aquele que vence o egoísmo e o orgulho em suas atitudes e sentimentos, é homem de uma outra civilização: a civilização moral.

Diz ele: “o Espiritismo é chamado a desempenhar imenso papel na Terra. Ele reformará a legislação ainda tão freqüentemente contrária às leis divinas; retificará os erros da História (...)” (Obras Póstumas, pag, 299).

Pestalozzi: a teoria dos três estados
Na teoria de Pestalozzi, o primeiro estágio evolutivo das coletividades humanas é o estado natural. Nessa fase, os homens se movem pelos instintos básicos de sobrevivência. E são esses instintos, praticamente de natureza animal, que garantem ao homem a conservação da espécie. A humanidade, neste estágio, se assemelha a fase infantil da personalidade. Disso, Kardec ainda conclui que “todas as paixões têm sua utilidade providencial; sem isso, Deus teria feito algo de inútil e de nocivo” (Gênese, cap. III, ítem 10).

Após essa primeira fase, o homem cria novas necessidades e a civilização segue seu curso. Uma vez que “o homem não passa subitamente da infância à madureza” (Livro dos Espíritos, questão 790), cria sociedades cada vez mais complexas, civilizações com novas necessidades e, igualmente, novas paixões, novos conflitos, frutos de sua própria imperfeição. Entra-se na fase do estado social que é o que vivemos no atual momento. Para dar conta dos conflitos de interesse criam-se regras, costumes, leis para regular a convivência social. É preciso conter, canalizar os impulsos instintivos que, se no primeiro momento garantiram a sobrevivência da espécie, agora impedem a realização dos anseios nascentes de paz, de liberdade, de igualdade, de justiça, de harmonia. Dora Incontri, pesquisadora que hoje coordena o movimento da Pedagogia Espírita, acentua que Pestalozzi antecipa a teoria de Freud em cem anos: o conflito existe quando há o atrito entre a lei e o instinto, entre a regra e o desejo, podendo surgir neuroses e desajustes individuais e coletivos, tais com as guerras e revoluções. A regra impõe limites aos instintos, mas não os transforma (Dora Incontri, Para entender Allan Kardec, 2004:45).

O conflito teria fim no estado moral, destino final da evolução. Por essa concepção, a alma possui o germe de divindade. Quando essa potencialidade divina desperta o homem transcende a lei e o instinto, não há necessidade de leis que o punam e controlem os instintos porque passa a vigorar a liberdade do amor, a espontaneidade do bem e da bondade. Não se está nem escravo dos desejos, nem preso às convenções: é o estado da autonomia e da autoconstrução. Esse é o destino final, que surge após a superação e libertação do jugo da matéria que o embrutece. O homem livre é o que vence aos impulsos materiais que reside em si mesmo e internaliza o bem e o amor que brotam espontâneos e promovem o reino do amor.

A religião no estado natural, diz Pestalozzi, é a magia, a superstição, a crendice. As igrejas, as instituições e convenções religiosas que impõe freios à conduta humana pertencem ao estado social. Já no estado moral, a religião é a ligação direta do homem com a divindade, sem intermediações; é a pura moralidade: é íntima, ética e universal.

Podemos então descrever a evolução da sociedade humana em paralelo à evolução do homem. Para a doutrina espírita, a evolução espiritual se dá pelo confronto permanente entre o princípio espiritual e o princípio material. Um aspira liberdade, outro lhe oferece resistência, fortalecendo-lhe a vontade, a tenacidade, sublimando seus sentimentos através das experiências diferenciadas de prazer e dor, de felicidade e sofrimento. O princípio material põe o espírito diante de um problema prático: é preciso viver materialmente. É daí que começa a evolução, tal como descreve Kardec: "Na infância da Humanidade, o homem só aplica a inteligência à cata do alimento, dos meios de se preservar das intempéries e de se defender de seus inimigos." (Gênese, cap. III)

Satisfazendo as necessidades primárias, o homem se assemelha a um animal, entretanto Deus lhe deu, "a mais do que outorgou ao animal" prossegue o codificador, "o desejo incessante do melhor, e é esse desejo que o impele à pesquisa dos meios de melhorar a sua posição, que o leva às descobertas, às invenções, ao aperfeiçoamento da Ciência, porquanto é a Ciência que lhe proporciona o que lhe falta."

O espírito, como vimos, em seu desejo de infinito é inquieto, não se contenta, busca sempre mais e o melhor. Na busca de melhorar a sua situação, o espírito progride, desenvolvendo suas potencialidades adormecidas: inteligência, intuição, sentimentos, distinção entre o bem e o mal. Acontece que, para Kardec, "às necessidades do corpo sucedem as do espírito; depois do alimento material, precisa ele do alimento espiritual. É assim que o homem passa da selvageria à civilização (...) a alma passa gradualmente da barbárie à civilização material e desta à civilização moral."
O quadro abaixo resume as idéias de Pestalozzi e Kardec sobre os três estágios de evolução das formas sociais.


Pestalozzi

Kardec

Homem

Religião

Estado Natural

Barbárie

Instintos / paixões

Magia / Superstição

Estado Social

Civilização material

Razão / regras

Instituição / Convenções

Estado Moral

Civilização moral

Libertação / espontaneidade do bem

Íntima / Ética

Ir a um centro espírita tomar um passe, ouvir uma palestra, beber um copinho de água fluidificada, fazer sua oração em casa. Muitas vezes a prática religiosa dos espíritas começa assim. Mas se a pessoa deseja seguir os ideais do Espiritismo, sua prática precisa ir além disso. O Espiritismo, doutrina da esperança, não faz o homem sonhar com uma vida melhor só para si, o Espiritismo é um ideal de sociedade. O verdadeiro espírita é um ser político, ou seja, um cidadão participativo, consciente e, sobretudo, um rebelde.

A concepção dialética-espiritual da história que fundamenta o Espiritismo, produz uma espiritualidade cidadã, ativa e não-conformista. E a partir do princípio da reencarnação, essa conceção de história garante aos espíritas um otimismo quanto ao futuro, conferindo-lhes a “paciência histórica” necessária a adesão a um projeto revolucionário não-violento. Creio que um espírita, em sua moral radicalmente deontológica, passa longe das armas, apesar de sua ferocidade viril contra o sistema opressor. O engajamento revolucionário se assemelha, portanto, aos dos socialistas-utópicos.

O Espiritismo e o Socialismo Utópico
Nascido em meados do século XIX, o Espiritismo faz a crítica à sociedade capitalista então em expansão, e dialoga com as idéias socialistas que fervilhavam neste período, especialmente em Paris. Em comum, espíritas e socialistas, antepunham os ideais morais de amor e fraternidade às situações de injustiça e pauperização crescente que viam corroer a vida nas sociedades industriais nascentes.

A ligação entre espiritismo e socialismo vem do berço das duas doutrinas: os ideais revolucionários de meados do século XIX. Fourier, Saint Simon, Robert Owen eram reencarnacionistas e o socialismo utópico partilhava da perspectiva evolucionista de sociedade: acreditavam em uma sociedade regida pelo ideal de fraternidade, conquistada através de meios pacíficos, pela reforma moral do homem.

Quem mostra essa raiz comum é Cleusa Beraldi Colombo em um belo livrinho chamado “Idéias sociais espíritas” (sua dissertação de mestrado). A autora vai aos primórdios do espiritismo mostrar que as questões sociais estão em suas próprias raízes. O magnetismo, precursor científico do Espiritismo, que contava com o professor Kardec como adepto, chega ao século XIX através dos movimentos seguidores de Mesmer. E no fervilhar de idéias revolucionárias e ao mesmo tempo místicas, fazia-se uma correlação entre a cura magnética do indivíduo, através da renovação dos fluidos, e a transformação política da sociedade, através da renovação das idéias e dos sentimentos morais. Essa correlação, que aparece na Doutrina Espírita de uma maneira sistematizada, compunha os ideais filosóficos de grupos ativistas franceses. "A idéia mística que faziam da natureza combina com o estado natural de Rousseau. E a regeneração social e moral proposta por Rousseau alia-se a regeneração fluídica dos corpos, pregada por Mesmer" (Cleusa Colombo, Idéias Sociais Espíritas, 1998:29).

Segundo a doutrina espírita, a evolução moral do homem caminha no sentido do desapego material e isso promove a diminuição da densidade do perispírito. Quanto mais evoluído o espírito, menos denso se torna o seu corpo espiritual e mais apto a habitar regiões ou mundos superiores. A transformação moral do mundo, que significa a adoção da ética do amor no coração de cada indivíduo, torna o mundo menos material, menos denso.

"Bergasse, discípulo de Mesmer e ativo propagandista, lidera um grupo, que sintetiza as idéias de Rousseau e Mesmer, numa proposição de reforma política. 'Como os costumes são o cimento do edifício político', segundo Bergasse, a transformação política seria conseqüência de uma revolução moral" (COLOMBO, 1998:29). Idéia que se tornaria base da visão de transformação social entre os espíritas. Paul Deschanel, em "A questão social" afirma que os socialistas franceses revelavam uma reforma dos espíritos e dos corações, uma regeneração da humanidade através do amor (COLOMBO, 1998:85).

Este intercâmbio entre teses socialistas e teses espíritas se repetiu em vários autores, especialmente no que diz respeito à reencarnação. Dentre eles Pierre Leroux, Fourier, Ballanche e no Brasil, o Marquês de Maricá.

Este último, que viveu entre 1775 e 1848, não chegando a conhecer a obra de Kardec, publicou seus "Pensamentos e Reflexões" em 1844, tendo sido um dos precursores da doutrina espírita, em seus aspectos filosóficos: "A nossa existência apenas começada neste mundo tem seu progressivo desenvolvimento nos inumeráveis mundos e vidas, na imensidade do espaço e eternidade dos tempos, aproximando-se à perfeição Divina, sem jamais poder alcançá-la, por ser infinita e incomensurável no ser eterno, Criador e Regedor do Universo." (Marquês de Maricá, Pensamentos e Reflexões, 1958:305).

E com relação a individualidade do ser espiritual: "De que nos serviria a outra vida se o nosso espírito não conservasse o cabedal de idéias e conhecimentos que adquiriu na primeira, se perdesse a memória da sua identidade individual e intelectual!" (MARICÁ, 1958:315). Precursor do Espiritismo, igualmente no seu aspecto sócio-político, afirma a necessidade da modernização das idéias religiosas que permita a compreensão da necessidade da ação ativa na transformação e melhora do mundo. Segundo ele, "as sociedades modernas rejeitam a doutrina velha de padecer neste mundo, para no outro gozar. É uma das causas principais de fermentação e movimento geral da humanidade para novas formas civis e políticas e melhoramentos morais e materiais dos povos" (MARICÁ, 1958:427). Segundo o historiador Ubiratan Machado, Maricá não foi compreendido na sua época, "o ambiente social ainda estava imaturo para discutir socialismo e reencarnação" (Ubiratan Machado, Os intelectuais e o espiritismo, 1983:43).

O Socialismo precisa de espiritualidade
Mais tarde, já após a I Guerra Mundial e a Revolução de 1917, Léon Denis publica o livro que apresenta a correlação entre o socialismo e o espiritismo. Apesar de não se posicionar a favor de nenhum partido socialista, Denis quer enfatizar o fato da doutrina socialista trazer um apelo humano, ausente no capitalismo.
No entanto, os dois principais erros dos socialistas, diz Denis, seriam não falar ao coração do povo, o que ajudaria a promover a transformação de cada um, e não submeter a doutrina socialista a uma visão mais abrangente do funcionamento das leis do universo.

Por não tocar o sentimento dos homens, o socialismo perderia a chama de esperança e da perseverança incansável na luta pela fraternidade entre os homens e pela justiça. Para ele, “em todas as tentativas de reformas sociais é preciso falar ao coração do povo ao mesmo tempo que à sua inteligência e à sua razão” (Leon Denis, Socialismo e Espiritismo, 1982:67). Caso contrário, se não transformar o homem, o sistema perde sua base, e as primeiras derrotas teriam muitas desistências, porque as pessoas estariam então em busca dos objetivos pessoais e de curto prazo.

Aqui percebemos que a crítica social que se circunscreve as injustiças materiais é limitada. Uma vez despertada a sensibilidade para a dimensão da espiritualidade humana, pode-se perceber que a miséria e o problema existencial não são monopólio dos pobres. É todo um sistema corroído que infelicita pobres e ricos, oprimidos e opressores. A miséria do capitalismo é o seu materialismo. Diz Jean Jaurès:

“O que me aflige na sociedade presente não são só os sofrimentos materiais que um melhor regime poderá abrandar; são as misérias morais que desenvolvem o estado de luta e uma monstruosa desigualdade, uns são escravos de sua fortuna como outros são escravos da sua pobreza, em cima como embaixo, a ordem social atual faz apenas escravos, pois não são homens livres estes que não têm nem o tempo, nem as forças de viver para as partes mais nobres do seu espírito e da sua alma.” (COLOMBO, 1998:93).

O objetivo do espiritismo é a transformação estrutural da sociedade, a partir da reforma do homem, para que não haja mais classes em conflito a alimentar a competição sistêmica. Aqui a idéia de reencarnação, longe de gerar apatia, é a que fomenta a imprescindibilidade de uma transformação radical das estruturas sociais. E é o professor Herculo Pires quem lança a indagação: "De que vale amparar os pobres, os necessitados, e entregar à loucura e à embriaguez do dinheiro e do poder os ricos do mundo? Espiritualmente os dois são necessitados, pois o rico voltará na pobreza, a fim de corrigir-se pela reencarnação. Cumpre, por isso mesmo, lutar pela transformação social, pela modificação da ordem egoísta que incentiva e perpetua o egoísmo, no círculo das reencarnações dolorosas" (Herculano Pires, O espírito e o tempo, 2003:180).

O outro ponto de fraqueza do socialismo materialista é que, por não se submeterem a uma ordem mais universal, o socialismo se tornaria mais uma ordem perecível sobre a Terra, por cuidar apenas do corpo material. Segundo o filósofo operário, toda obra humana, para ser durável, e bela, deve ser como uma imagem reduzida da obra eterna. Os princípios, as instituições, as regras, devem se inspirar no plano geral da ordem do universo, e esse seria o ponto fraco do socialismo: ao não cuidar da finalidade última da vida, a evolução e o aperfeiçoamento geral, ele tenderia a degenerar, como outras instituições que não estariam em harmonia com os princípios eternos.

Associando a transformação social à inseparável transformação de cada homem, o principal caminho para a implantação do socialismo seria a educação. Mas não a educação meramente instrutiva, mas aquela que reforma o caráter, que toca os sentimentos, que produz homens de bem. Esse seria o melhor caminho para fazer avançar o progresso social. Leon Denis diz que “para colocar um freio às paixões violentas, às cobiças furiosas, a todos os baixos instintos que entravam o progresso social, não é preciso apelar para a inteligência e a razão, é preciso, sobretudo, falar ao coração do homem, ensiná-lo a reconhecer a finalidade real da vida, seus resultados, suas conseqüências, suas responsabilidades, suas sanções” (DENIS, 1982:51).

Em sua opinião, a nova educação deveria ensinar sobre as vidas sucessivas para que esta doutrina esclarecesse os caminhos do homem sobre Terra. Para ele, da mesma forma como a Humanidade deve se destacar do pequeno planeta e considerar o conjunto dos mundos para entrever a unidade e grandeza do Universo e suas leis, é fundamental que o homem se destaque de sua existência corporal e abrace com o olhar o panorama das diferentes existências e reconheça a ligação que existe entre elas pelo princípio de justiça que rege todas as coisas. Assim, todos teriam consciência, diz ele, “que construímos, nós mesmos, nossos destinos e que nossos atos, bons e maus, recaem sobre nós através dos tempos com suas conseqüências. Nossa maneira de viver e agir, desta forma, seria profundamente modificada” (DENIS, 1982:70).

O Socialismo pós-globalização
"Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome" (Livro dos Espíritos, questão 930).

Atualmente, passados 150 anos do início do movimento espírita, o desafio de influir nos rumos da transformação estrutural do sistema capitalista continua em aberto. Com o fim do regime socialista, e a homogeneização do discurso mundial em torno das propostas liberais, as reflexões que aproximam o espiritismo do socialismo parecem esquentar as prateleiras da bibliotecas. A postura crítica ante a ideologia do neoliberalismo não é uma constante nos grupos espíritas, e é possível que os espíritas ainda precisem revisitar estes textos para lembrarem-se de que o capitalismo não é uma estrutura social compatível com a prática do amor e de que a história da sucessão de configurações sociais está longe de atingir seu fim.

A caridade, marca dos espíritas, não existe fora de um contexto histórico, não há caridade sem pessoas concretas envolvidas. E a realidade da exclusão social não anda separada da estrutura de poder político desse país campeão em desigualdade; a realidade da fome não anda separada da questão da distribuição de terra; a perda de vidas nos contextos do narcotráfico não estão dissociadas do nosso sistema político; o cuidado com a natureza e a questão da ecologia não podem ser verdadeiramente encarados enquanto não se põe em xeque o sistema de consumismo, industrialismo e lucro engendrado por um sistema que nasceu cercando os campos ingleses e expulsando violentamente os agricultores de suas terras.

Hoje vivemos a globalização da economia, do consumo e da miséria. A violência sistêmica nasce da própria estrutura violenta do sistema capitalista: competição, ambição, egoísmo! São os valores vitoriosos no atual modelo. As religiões correm o risco de idolatrar a nova trindade mercado, tecno-ciência e dinheiro, se não cumprirem seu papel de crítica e de construção de novas redes de relações sociais baseadas em outra lógica. Mas a tentação de manter discursos vazios e emocionados, que falem a indivíduos cada vez mais fragmentados, solitários e desesperados é grande. É mais fácil.

Na contramão da onda de fundamentalismos (fundamentalismo do consumo, fundamentalismo da verdade única, fundamentalismo da velocidade) a globalização também aproxima as culturas, os povos do mundo, cada um com sua riquíssima  tradição espiritual a apontar valores diferenciados como fraternidade, simplicidade, tolerância, amizade, compaixão, ternura, gentileza e amor.
Crise é sinônimo de oportunidade.

Onde há sinais de tragédias, há também sinais de esperança.

De acordo com Kardec a humanidade vive as dores de parto de uma humanidade nova, uma nova consciência humana. Na revolução espiritual que ora vivemos, um dos valores espirituais básicos é a capacidade de aceitar o outro como ele é, de apreciar as verdade que o outro traz a partir de sua experiência. Contra o discurso único da expansão do estilo de vida capitalista, está o espírito ecumênico de alegria diante da diversidade de caminhos e de expressões de vida e fé.
Nunca é demais lembrar o esforço ecumênico de Kardec e a base ecumênica da fé espírita: fora da Caridade não há salvação.

“Será necessário que professemos o Espiritismo e creiamos nas manifestações espíritas, para termos assegurada a nossa sorte na vida futura?
“Se assim fosse, seguir-se-ia que estariam deserdados todos os que não crêem, ou que não tiveram ensejo de esclarecer-se, o que seria absurdo. Só o bem assegura a sorte futura. Ora, o bem é sempre o bem, qualquer que seja o caminho que a ele conduza” (Livro dos Espíritos, questão 982.)

É na capacidade de abrir-se aos outros movimentos religiosos que também partilham a utopia de um outro mundo possível que o sonho de uma sociedade sem injustiças pode começar a se realizar. E aqui, creio que os espíritas têm muito a aprender com os movimentos político-sociais empreendidos há anos pelos companheiros de outras tradições.

Paz, paz, paz!