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“RACISMO AMBIENTAL E CRIMINALIDADE – DESAFIOS À DEMOCRACIA”
Ano 6 - Nº 24
Abril de 2011
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
A 4ª Jornada Ecumênica e o Mapa da Injustiça Ambiental
Por: Dra. Tânia Pacheco, Historiadora, Coordenadora do Projeto “Mapa da Injustiça ambiental” (Fiocruz/Fase)

Antes de mais nada, quero saudar todas as pessoas presentes e agradecer pelo convite para trazer à 4ª Jornada Ecumênica* o Mapa da injustiça Ambiental e Saúde no Brasil.

Gostaria de começar explicando que o Mapa tem uma peculiaridade que o diferencia e valoriza: os conflitos que ele registra são apresentados através do olhar e das vivências das comunidades e das populações atingidas. Isso significa que é a partir de suas vozes que as denúncias são relatadas, embora busquemos complementá-las com outras informações, obtidas junto a seus diferentes parceiros, estudos acadêmicos, notícias de jornais e da internet, e outros mais. Mas são as comunidades as nossas protagonistas, e é a partir das lutas que elas vivenciam e enfrentam que construímos a nossa pesquisa. Ressaltar esse fato é importante, pois ele também vai determinar os comentários e as referências que farei a seguir.

Minha fala será dividida em três partes: primeiro, quero mostrar alguns dados retirados do próprio Mapa, que considero devem embasar a nossa discussão. À luz desses resultados, gostaria de falar um pouco sobre um tema que é minha grande frente de luta: o Racismo Ambiental. Finalmente, pretendo concluir com algumas observações sobre o momento presente, no qual racismo, xenofobia e fundamentalismos parecem nos levar de volta para momentos vergonhosos da história da humanidade, o que só torna mais importantes a existência de eventos e espaços como este.

Ainda há outro esclarecimento importante a ser feito: o Mapa é um processo em construção contínua, recebendo novas informações, não só sobre os casos em andamento, como sobre outros que já existem ou estão surgindo. Nesta apresentação, entretanto, falarei dos 297 conflitos que foram mapeados inicialmente e disponibilizados na internet no início deste ano. Esse número não se divide uniformemente por estado, variando de cinco a 30, selecionados pela sua dramaticidade e/ou abrangência em cada unidade da Federação.

1. As principais revelações que o Mapa nos traz
O primeiro dado que gostaria de partilhar diz respeito ao nosso cenário maior, à relação urbano-rural, que poderemos ver no slide 1: “A localização dos conflitos”.

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Embora esses números sejam questionados por muitas pessoas, as estatísticas do IBGE nos dizem que cerca de 83% da população brasileira vivem em cidades de portes variados, e apenas 17% estão ainda no campo. Esses índices são radicalmente invertidos se olharmos para os 297 conflitos presentes no Mapa. Como é possível ver no slide 1, 60,85% deles estão na zona rural; 30,99%, na zona urbana; e 8,38% atingem moradores de áreas onde campo e cidade de alguma forma se misturam.
A essa informação podemos agregar outra, que acrescenta mais uma dimensão a esses dados no que se refere à abrangência dos conflitos. No Amapá, temos apenas oito casos registrados, contra 30, em São Paulo. No entanto, esses oito conflitos do Norte atingem 100% dos 16 municípios do estado. A situação de São Paulo é bastante diferente: seus 30 conflitos afetam apenas 38 dos 645 municípios, correspondendo a 5,89% do total.
Isso não acontece por acaso. Enquanto os conflitos paulistas são, na maioria, urbanos e localizados, no geral envolvendo alguns milhares de metros quadrados, os do Amapá são contados em milhares de hectares de território, muitas vezes se espraiando de um município para outros, vizinhos. Sabemos bem os motivos que levam a isso: é no campo que os grandes projetos “produtivos” e de infraestrutura se expandem, no atual processo de desenvolvimento que une os interesses de empresas e Estado.
Isso pode ser ainda melhor ilustrado se usarmos agora o próprio Mapa, fazendo uma busca com as palavras “terra e território”, para verificar o número de conflitos que têm nessa disputa sua origem principal. Vamos ao slide 2:

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Na imagem, o que temos são as marcas de 227 de um total de 297 conflitos, o que corresponde a 76,5% dos casos. E vale registrar que: primeiro, muitos dos demais casos envolvem também questões ligadas a terra e território nas suas origens; e, segundo, como podemos ver um grande número desses conflitos está na zona costeira, e muitos acontecem também em áreas urbanas, como mostrarei.
Nesse cenário construído em rápidas pincelas, nossa segunda questão diz respeito a quem são as populações e comunidades mais atingidas. É o que veremos a seguir.

2. Quem são os principais atingidos  ( slide 3)

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À medida que se desenvolve, a luta pelo território determina aquelas e aqueles que serão por ela atingidos. A liderança dos 18% de conflitos envolvendo povos indígenas se torna muitíssimo mais expressiva se considerarmos que, segundo a FUNAI, há apenas cerca de 660 mil índios no País, dos quais somente 460 mil vivem em aldeias. Mais: esse número equivale a 0,25% da população brasileira! É claro que não estão sendo computados, nem pela FUNAI, nem pelo próprio Mapa, as centenas de milhares de indígenas que, expulsos de suas terras, viram como única solução negar suas origens, na busca pela aceitação e pelo emprego nas cidades. Ou alguns deles, que ultimamente nos levaram a um novo campo de estudos: os índios urbanos.
Ainda no campo e em seguida aos povos indígenas, temos, entre os “mais votados”, os agricultores familiares, com 17%; os quilombolas, com 12%; os pescadores artesanais, com 8%; os ribeirinhos, com 7%; e os caiçaras, com 2%. Na faixa do 1%, temos as quebradeiras de coco babaçu, marisqueiras, catadores de caranguejos, extrativistas, faxinalenses, geraizeiros, seringueiros, entre outros.
Circundei de cores diferenciadas alguns grupos com um propósito específico. Em branco, temos os percentuais mais altos envolvendo povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Optei por “cercar” de vermelho os 17% de agricultores familiares, uma vez que muitas vezes torna-se difícil separar, nessa autoclassificação com a qual trabalhamos, os camponeses que efetivamente estão vivenciando conflitos em suas terras e os que ainda estão lutando por ela, que seria o caso dos que se reconheceram objetivamente como “sem terra”, somando 1%. E a eles talvez pudéssemos acrescentar, englobando os três num mesmo tipo de problema, os boias-frias, que também totalizam 1%.
Busquei igualmente reformatar as principais informações referentes ao mundo urbano, marcando-as em amarelo. Se deixamos de lado os 6% de operários envolvidos nos conflitos e focalizamos as informações referentes a “moradores”, agrupando-as, temos um quadro bastante interessante. Nas “periferias inóspitas”, temos 2% dos conflitos acontecendo;  em “bairros normalmente atingidos por acidentes ambientais”, outros 4%; os “moradores de aterros contaminados” somam 8%; os do “entorno de incineradores” não chegam a 1%, mas os que vivem no “entorno de lixões” somam 2%; os sem teto são 3% dos casos; e os que habitam “encostas ou favelas”, 1%.
O total é bastante expressivo e mostra que, mesmo nas áreas urbanas, 20% dos casos envolvem diretamente a questão do território. Ou do direito cidadão à moradia, se assim quisermos falar. E eu diria que na maioria isso acontece por causas duplamente ligadas ao direito à terra e ao território. Se de um lado não há dúvida de que eles sobrevivem nesses locais pela mais completa falta de opção, por outro, sabemos que a grande maioria deve estar agora vivendo essa situação por ter sido expulsa de seus espaços e moradias originais, provavelmente no campo.
Mas o que gostaria de deixar marcado, acima de tudo, é quem exatamente são os protagonistas no nosso cenário desumano. No campo, além dos índios e quilombolas, outros componentes de comunidades tradicionais, como vimos; e na cidade? Quais serão as ‘identidades’ predominantes nos aterros contaminados, nas periferias inóspitas, nos lixões e nas favelas?

3. Introduzindo o conceito de Racismo Ambiental no cenário
Partindo exatamente do que foi dito anteriormente, gostaria de inserir rapidamente aqui um conceito que para algumas pessoas poderá ser novo: o de Racismo Ambiental. Chamamos de “Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e outras comunidades, discriminadas por sua origem ou cor” 1.

Nos casos dessas e desses excluídos urbanos, moradores de diferentes locais de alguma forma inóspitos, temos consciência de que, além da questão da classe social, há outro componente presente na grande maioria: o racismo. Pode-se dizer, inclusive, que na formação das classes sociais o racismo é um componente determinante das desigualdades. Basta um olhar um pouco mais atento para se identificar que a pobreza tem cor. Nas grandes cidades ou, mesmo, nas menores, as pessoas envolvidas nesses conflitos são majoritariamente negros, nordestinos ou, ainda, nordestinos negros. Porque o Racismo Ambiental tem uma composição de origem simples: ganância mais preconceito. E quando uso a palavra “preconceito”, entendo-a englobando suas consequências diretas: discriminação, subordinação, segregação e marginalização 2.

Nossa tendência quando ouvimos falar em racismo é considerar apenas a população negra. Mas o que está em pauta vai bem além dela. Engloba a maioria absoluta daqueles que foram listados entre os mais atingidos pelos conflitos estudados, dos povos indígenas, que lideram os números, às quebradeiras de coco, que aparecem na lista do 1%. E sem esquecer que é igualmente racista a forma como os nordestinos são encarados e tratados no “Sul Maravilha”, numa situação que hoje também se repete no Centro-Oeste, em cidades como Sorriso, a chamada “capital da soja”.

É o mesmo preconceito racista que imperou e impera ainda na Casa Grande, jogando cada vez mais para as periferias – as “senzalas modernas” - os que chamo de “não brancos”. E que agora se alia à ganância para expulsar de suas terras aqueles e aquelas que estão no caminho das monoculturas; dos agro e hidronegócios; dos grandes empreendimentos turísticos; das minerações e siderurgias; dos atuais grandes complexos portuários, previstos para escoar nossas riquezas; de tudo o que pode ser transformado em lucro e poder, enfim.

Gostaria, neste instante, de mostrar rapidamente alguns slides, para que possamos ver como se espalham no Mapa os conflitos envolvendo essas comunidades. Os próximos slides falam por si.

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Não vou desrespeitar as pessoas aqui presentes repetindo o óbvio acerca do modelo de desenvolvimento hegemônico e de suas implicações para com o território e as pessoas que o habitam. Estamos vivendo a “farsa das invasões estrangeiras”. E não uso a palavra farsa apenas numa menção à célebre frase marxiana, ligando-a à repetição de algo que estudamos nas aulas de História do Brasil. Uso-a na medida em que sabemos muito bem que a apropriação e expropriação do território não estão sendo feitas, no nosso caso em especial, apenas por estrangeiros. E esse ponto nos diferencia do que vem acontecendo em outros países da América Latina e, mais recentemente, da África.

Muitas das empresas e empreendimentos que vêm cortando, desmatando, expulsando e dizimando o meio ambiente e seus habitantes, num vórtice de ganância que se espraia principalmente do Sul para o Norte e Nordeste, arrasando na passagem o Centro-Oeste, têm como responsáveis capitalistas brasileiros. Pessoas que se orgulham de terem entrado para as listas dos mais ricos do mundo, mas não se envergonham – como deveriam – do custo que essa riqueza impõe ao nosso País e à grande maioria da população. E os conflitos ambientais mapeados nos mostram que as mais atingidas são sobretudo comunidades historicamente discriminadas por suas origens étnicas ou “raciais”, como os povos indígenas, quilombolas e outras populações consideradas “não brancas”. Vale repetir.

No interior, o que temos é a pecuária, a soja, a cana de açúcar e os grandes empreendimentos eletrointensivos, devoradores de energia (e, em consequência, determinantes de mais e mais hidro e termoelétricas e, agora, de novas usinas nucleares) desmatando, queimando, inundando e contaminando… Do Sul ao Norte, os Desertos Verdes se sucedem, numa outra invasão exótica: a das monoculturas do eucalipto. No litoral Nordeste, principalmente, vemos a carcinicultura e os mega empreendimentos turísticos destruindo manguezais e apicuns e privatizando praias e o próprio mar. Em todos esses processos, povos indígenas, pescadores, marisqueiras, caiçaras são expulsos; quilombolas, ribeirinhos e outros tantos são sumariamente condenados ao degredo.

A ganância e o preconceito – ingredientes essenciais ao Racismo Ambiental, repito – tratam o território como se ele fosse deserto de vidas. Como se terra, água, mata e praias não fossem habitadas por serem humanos que ali nasceram e cujos ascendentes ali constituíram suas moradias, seus meios de sobrevivência, suas tradições, seus laços de parentesco e de amizade. Povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais são meros “entraves” na paisagem, aos quais são negados cidadania e direitos, começando pelo direito à própria existência.

Em alguns casos, essa expropriação se dá de forma relativamente pacífica. A falácia do desenvolvimento e do progresso, aliada ao oferecimento de empregos temporários, transforma o assalto em uma forma de suicídio. As próprias comunidades são convencidas a colaborar no desmatamento, na destruição dos manguezais, ou até mesmo no garimpo que envenenará suas águas. Cumprida essa última parte de sua “função social” na ótica do capital, essas sub-raças podem ser “dispensadas” – o que no caso é sinônimo de expulsão sumária – para que os “grandes empreendimentos” se instalem. Quando resistem, os métodos mudam. E irão desde o uso da violência e dos jagunços, à compra de registros e autoridades, numa usurpação de direitos que é um verdadeiro escárnio à concepção de Justiça.

4. Os impactos na saúde das populações
O próximo slide, pelo qual passaremos rapidamente, mostra como essas populações são impactadas por tudo isso e deixa claro, melhor que qualquer discurso que possa aqui ser feito, os efeitos da injustiça e do Racismo Ambiental.
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Dentre os “Danos e riscos à saúde” causados pelos conflitos, a “Piora na qualidade de vida” está presente em 25% dos casos, urbanos e rurais, implicando em diferentes causas e situações. Logo em seguida, entretanto, temos outra questão, para nós considerada tipicamente urbana, mas que aqui se refere fundamentalmente a conflitos da zona rural: a “Violência”. Ela está presente em 24% dos casos, de diferentes formas: como ameaça (12%), coação física (5%), lesão corporal (4%) e assassinatos (3%).
Mas há também outros tipos de violência praticados contra essas populações. Seguem, pois, “Insegurança alimentar e desnutrição” (14%); “Doenças não transmissíveis ou crônicas” (13%); “Falta de atendimento médico” (9%); “Doenças transmissíveis” (6%); “Acidentes” (4%); e “Suicídios” (1%). Desses dados, vale ressaltar que a maioria absoluta dos que envolvem doenças transmissíveis está ligada a povos indígenas. Principalmente a mulheres e adolescentes contaminadas por doenças sexualmente transmissíveis, inclusive AIDS, como subprodutos da expansão agrícola e da mineração.

Como se isso não bastasse, todos os casos incluídos no 1% de “Suicídios” dizem também respeito a indígenas que, expulsos de suas terras, alijados de suas tradições e culturas e/ou transformados em párias nas periferias das cidades, acabaram “optando” pelo “não ser” absoluto. Sobre esse assunto, vale lembrar que o CIMI divulgou, no início de julho passado, seu Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – 2009. Segundo esses dados, que ainda não constam do nosso Mapa, houve 19 casos de suicídio de indígenas no ano passado. Todos em um mesmo estado: Mato Grosso do Sul, que é também recordista em outro quesito, registrando 54% de todos os assassinatos de indígenas do País em 2009.

A violência do Racismo Ambiental poderia ainda ser vista de outro ângulo, se tivéssemos tempo para mostrar aqui o slide sobre os “Danos ao meio ambiente”. Nele, com uma incidência em 6% dos casos, consta o item “Poluição atmosférica”. Mas o que para nós é tido como algo típico das cidades, lá se refere predominantemente à zona rural, através do uso indiscriminado de agrotóxicos.

O que me faz mencionar esse item aqui, entretanto, é o fato de esses agrotóxicos serem em grande parte dos casos pulverizados por aviões, obrigando as pessoas a se esconderem em casa, o que não impede que envenenem a tudo e a todos. Mas o pior é que muitas vezes isso é mais que um “combate às pragas” das monoculturas. Trata-se também de uma estratégia utilizada para expulsar as comunidades, submetidas a um verdadeiro “bombardeio tóxico”, no qual o ar que respiram, suas hortas, suas criações, suas terras e sua água são contaminados, assim como elas próprias. Os cearenses presentes sabem melhor que ninguém do que estou falando, aliás.
Se deixarmos de lado a área rural e voltarmos nosso olhar para as cidades e, em especial, para as origens dos seus habitantes aos quais são negados os direitos da cidadania, sabemos que, excetuando os negros pseudamente libertos da escravidão urbana, na maioria absoluta esses não cidadãos vieram do campo. Negros, índios, caboclos, cafuzos ou até brancos, não importa; as histórias se repetem e seus efeitos são os mesmos.

Em muitos casos, há algumas décadas seus ascendentes foram atraídos para as grandes cidades, interessadas na mão de obra barata do Norte/Nordeste. Uns poucos conseguiram realizar seus sonhos e de alguma forma se estabilizar nas grandes cidades; outros voltaram para as suas origens; a maioria provavelmente tornou-se parte do grande exército de reserva que deu início às Cidades Tiradentes e às Rocinhas da vida.

Faz tempo que São Paulo tornou-se a maior cidade do Nordeste brasileiro. Agora, é também o grande habitat de uma categoria mais recente, que já mencionei: os “índios urbanos”. E não são mais as promessas e sonhos de emprego que atraem povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais para os centros urbanos, mas o desespero, a marginalização, a perda de seu espaço de vida e a expulsão sumária. E o racismo – ambiental, institucional e também impregnado na visão de mundo de muitos de nós – está igualmente presente na forma como a cidade acolhe esses atuais “refugiados ambientais”. Há e haverá cada vez menos espaço para eles, para esses “indesejáveis” que aumentarão ainda mais as favelas e as periferias inóspitas, e que grande parte da população urbana vê acima de tudo como “futuros marginais”.
Não foi por acaso que, nos dias seguintes ao segundo turno das eleições presidenciais, vimos esse “racismo de origem” causar escândalo no twitter e na internet, na medida em que uma estudante de direito, entre outras pessoas, postava declarações repugnantes sobre os nordestinos, tentando culpabilizá-los pela derrota de seu candidato.
É a partir dessas questões que gostaria de mostrar a vocês, a partir do próprio Mapa, quem essas comunidades e populações veem como responsáveis pelas situações de conflito que vivenciam.

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No que concerne a processos produtivos, todos os números majoritários presentes no slide dizem respeito a atividades que, ou negam o território à população que a ele tem direito, ou a expulsam para utilizá-lo em grandes projetos, sejam eles quais forem. Na listagem estão presentes as “Monoculturas”, responsáveis por 14% dos conflitos; a “Mineração, garimpo e siderurgia”, com 7%; as “Madeireiras” e as “Barragens e hidrelétricas”, ambas com 6%; a “Indústria química e de petróleo/gás”, 5%; a “Pesca industrial e carcinicultura”, 4%; e, todas com 3%, a “Pecuária”, as “Hidrovias, rodovias e gasodutos” e os “Agrotóxicos.

Dos 12% dos conflitos classificados como “outros”, vale citar os principais: a “Indústria do turismo”, com um total de 19% desses 12% dos casos; o “Setor imobiliário”, com 15%; as “Carvoarias”, com 10%; os “Aterros sanitários e depósitos de resíduos, 8%”; e a “Infraestrutura portuária”, a grande ‘novidade’ atual, presente em 6%.
Se enveredarmos por outro caminho nessa estatística sem vencedores dignos, o dado que mais choca é o fato de o primeiro lugar na lista dos “responsáveis” ser ocupado pela omissão e/ou conivência que as populações identificam nas “Ações das autoridades governamentais”, em 22% dos conflitos. Se a esse número somássemos os 8% das “Políticas públicas e legislação ambiental” e os 4% de responsabilidade que as comunidades atribuem à “Atuação do Judiciário e do Ministério Público”, teríamos um total de 34% dos casos.

5. Racismo, xenofobia e fundamentalismo: aliados a serviço do colonizador e do capital
Esse quadro lamentável, em que Estado e empresas são cúmplices na construção de um modelo de desenvolvimento cuja “sustentabilidade”,  tem por base acima de tudo o lucro e a ganância do capital, tem raízes históricas que se imbricam na razão de ser deste encontro. Pois essas raízes tiveram no cristianismo a terceira base de sustentação desse triângulo, e é preciso que os erros de ontem sejam coletivamente reparados.

Como bem reconhecemos, a colonização do Brasil e dos demais países da América Latina teve como ponto comum o genocídio e a destruição das culturas e tradições dos povos originários. Dois séculos mais tarde, a eles se somaria outro quase genocídio e outra quase destruição: a dos povos africanos, trazidos como escravos e encarados igualmente como objetos usáveis e descartáveis.

Oswald de Andrade escreveu um pequeno poema que gostaria de citar neste momento. Seu título é enganoso: “Erro de Português”. Escreveu ele:

“Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português”.

O racismo, que pressupõe mais que a invisibilização do outro e a incapacidade de reconhecer a beleza e a importância da diferença e da diversidade, é mais que constituinte da nossa história, pois permanece no nosso imaginário. A própria arquitetura de nossas cidades representa o triunfo do colonizador, nas mais diferentes facetas, assim como sua ocupação. E, quando falo do colonizador, sabemos bem que estamos falando do europeu branco e cristão. Daquele que “vestiu o índio” cobrindo suas “vergonhas” de trapos e miçangas mas, ao mesmo tempo, estuprando as mulheres espiritual, emocional e também fisicamente, como depois faria com as africanas que aqui chegavam.
Pretender apresentar a miscigenação que nos caracteriza como algo desejável é negar como ela foi forjada, ao longo dos séculos e, lamentavelmente, até os nossos dias. Como demonstramos através do Mapa, as índias continuam a ser estupradas e infectadas pelos braços e abraços do agronegócio, do garimpo e da mineração. As meninas negras encontram igual destino nas grandes e nas pequenas cidades, totalizando a maioria absoluta das adolescentes seviciadas, engravidadas e depois levadas para o turismo sexual e para a prostituição. A questão de gênero não pode nem deve ser esquecida na nossa análise.

Também pela internet e muito antes que qualquer jornal noticiasse o assunto, acompanhamos um caso emblemático de intolerância religiosa: no dia 23 de outubro, uma negra, Bernadete Souza Ferreira dos Santos foi torturada e presa, em Ilhéus. Seu crime? Protestar contra a presença de Policiais Militares numa área do INCRA, cuja jurisdição é da Polícia Federal: um assentamento cujo nome é uma homenagem a Dom Hélder Câmara e do qual é Coordenadora de Educação.  Agredida, Bernadete, que é também Mãe de Santo, incorporou Oxossi, o que teve como consequência ser colocada pelos PMs não numa fogueira, mas num formigueiro, para que o “demônio”saísse de seu corpo.
Desde a realização da 3ª Jornada, muitas coisas mudaram: a ALCA foi enterrada; Evo Morales foi eleito; Condolezza Rice e sua “alma branca” deixaram de ser notícia; mas o “Império”, embora falido, mantém sua beligerância. O “novo”, que para alguns se instauraria com o governo Obama, mostrou-se irremediavelmente velho. Aos dois anos iniciais de Lula seguiram-se mais seis, e dentro de um mês e meio ele deixará a Presidência da República para uma sucessora por ele escolhida - coisa duplamente inédita na nossa história, pois, além da sucessão vitoriosa, trata-se também da primeira mulher a chegar ao posto entre nós.

O hemisfério Norte, onde estariam os países conhecidos como “desenvolvidos”, se vê envolvido por uma onda cada vez mais abrangente de fundamentalismos e de xenofobia. Entre nós, porém, ainda é o racismo que impera. E seria absoluto, não fosse pela desigualdade de classes que ele tão bem alimenta. No Brasil, ele atinge acima de tudo os negros; nos demais países da América Latina, os povos originários, que lá são os majoritários.

Por outro lado, a desigualdade e o racismo estão sendo mais que nunca denunciados e combatidos entre nós, e, nesse sentido, há muito a ser comemorado. No caso brasileiro, destaco especialmente o grau de protagonismo alcançado por algumas dessas populações antes invisíveis, como os quilombolas, por exemplo, e as conquistas do movimento negro, através de políticas como as cotas, o PROUNI e outras mais.

Aliado a isso, o mero fato de estarmos aqui reunidos, discutindo fraternalmente essas questões, mantém viva a minha utopia, que penso é a de todas e todos nós: que um dia o Mapa da injustiça ambiental vá minguando, até deixar de existir. E que a “terra habitada” do ecumenismo o seja, cada vez mais, por aquelas e aqueles que nela trabalham e que nela constroem suas vidas, suas famílias e seus sonhos de felicidade.

* Entre os dias 11 e 15 de novembro de 2010 o Fórum Ecumênico Brasil (FE Brasil) e o Fórum Ecumênico Sulamericano (FE Sul), promoveram, em Itaici, interior de São Paulo, Brasil, a 4ª Jornada Ecumênica Latino Americana, tendo como tema“Ecumenismo, Ecologia, Economia e Vida”.

Definição usada pelo GT Combate ao Racismo Ambiental / RBJA. Cf. http://racismoambiental.net.br/.

Sobre essa questão, ver “Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcende a cor”, em http://racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/tania-pacheco/desigualdade-injustica-ambiental-racismo/.