Tempo e Presença Digital - Página Principal
 
“RACISMO AMBIENTAL E CRIMINALIDADE – DESAFIOS À DEMOCRACIA”
Ano 6 - Nº 24
Abril de 2011
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
A guerra contra o crime e a desconstrução da democracia
Por: Dr. André Moisés Gaio, Sociólogo, Prof. na UFJF

As taxas de criminalidade violenta explodiram no mundo ocidental desde a década de 1980 e as explicações sobre as causas de tal explosão estão sempre determinadas por aquilo que Matza (1964) chamou de perspectiva correcionista, ou seja, a necessidade de explicar o crime pela estratégia para melhor controlá-lo.
No estudo sobre as causas da explosão das taxas de criminalidade no Brasil 1, enfrentamos o mesmo problema que Garland (2001) mencionou quando buscou explicar a experiência do crime na modernidade tardia em relação aos casos britânico e estadunidense, ou seja, que o mesmo parece desafiar nossa capacidade de compreendê-lo. Para Garland, explicar o que ocorreu é quase tão controvertido como explicar por que ocorreu (Ibid,6).
O sociólogo acima citado vem desenvolvendo uma produção rica, especialmente no estudo da punição e das condições que possibilitaram a emergência de estratégias para o controle social na modernidade tardia. O livro The culture of control (2001) tem merecido ampla atenção e vivo debate no campo da criminologia.
Garland procurou se dedicar ao estudo da experiência (nova) coletiva do crime e da insegurança, concentrada, especialmente na experiência da Grã- Bretanha. As novas estratégias de controle social do crime e do desvio precisaram, segundo ele, de um suporte popular que apenas poderá ser revelado a partir do estudo das estruturas sociais e do desenvolvimento das sensibilidades culturais que antecedem e subjazem às estratégias de tal controle. Por outro lado, devemos trabalhar, de acordo com o sociólogo, para revelar também como a percepção de tal contexto e o impacto emocional deste, em parte da população, foi cuidadosamente organizado visando obter resultados específicos por políticos, pelos policy makers e pelos formadores de opinião.
O processo político foi determinante para a construção do novo controle social do crime, mas tal controle, para que existisse, deveria receber a ressonância popular de rotinas sociais e sensibilidades culturais pré-existentes. Tais rotinas e sensibilidades são condições extrapolíticas que tornaram o novo controle social possível.
O modelo explicativo proposto por Garland foi construído, tendo como objetivo explicar os casos da Grã-Bretanha, principalmente e dos Estados Unidos, mas o autor, mesmo reconhecendo que as dinâmicas de outros países devem possuir suas peculiaridades, acredita também que outros países foram afetados de alguma forma pelos mesmos impulsos encontrados nos países supracitados na construção da cultura do controle, da vivência contemporânea do crime.
Por que a pesquisa sobre as causas do aumento da criminalidade na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos foi substituída por outra que optou pela gênese da percepção moderna sobre o crime? Depois de décadas de produção acadêmica e também da intervenção dos especialistas ligados aos sistemas criminais dos países supracitados sobre o fenômeno da criminalidade na modernidade tardia e suas causas, nos parece que Garland, na tradição do pensamento criminológico crítico, observa o crime como uma construção política, um fenômeno que emerge a partir das interações sociais em um mundo construído a partir de relações de poder já dadas, marcadas pela desigualdade de recursos de poder. As teorias criminológicas produzidas desde a década de 1970, teorias do controle e das oportunidades, são analisadas como fazendo parte, mais do que explicando as causas dos crimes, do complexo da nova experiência do crime.

Transformações históricas na modernidade tardia
A cultura do controle recebeu impulsos decisivos advindos das transformações sociais e econômicas operadas a partir da segunda metade do século XX.  Para Garland, as transformações decorrentes da dinâmica da produção capitalista e das trocas no mercado e os correspondentes avanços na tecnologia, no transporte e nas comunicações, a reestruturação da família e da vida familiar, as mudanças na ecologia social das cidades e nos subúrbios, o surgimento dos meios eletrônicos de comunicação e a democratização da vida social (Ibid, p. 77,78).
Após a década de 1960 é que as transformações supracitadas, segundo o autor em questão, produzem seus efeitos mais decisivos e, ao mesmo tempo, os Estados Unidos e a Grã-bretanha experimentam um aumento importante nas taxas de delito registrado. Sustenta Garland (Ibid, p.89) que existiu um “vínculo causal entre a transição para a modernidade tardia e a crescente susceptibilidade da sociedade em relação ao crime”.
A criação de um mercado de massas, a disponibilidade de novos produtos que se tornaram alvos para a prática de roubos e furtos (automóveis, equipamentos musicais) e ao mesmo tempo estimularam a criação de uma cultura do consumo, auxiliada pela progressiva importância da televisão, desenvolvendo uma mesma demanda para ricos e pobres; a mudança da estrutura familiar e do estilo de vida característico dessa instituição, especialmente pelo aumento do número de divórcio e da família monoparental, a entrada maciça da mulher no mercado de trabalho, a multiplicação das moradias ocupadas por uma só pessoa; as transformações na ecologia e demografia social, especialmente a difusão do automóvel privado, a migração da classe média e dos ricos para os subúrbios, geralmente longe do trabalho, a alocação de pobres e minorias em locais afastados das cidades, sem equipamentos urbanos adequados e sem comércio (nova forma de segregação), a decadência de lealdades locais, a ausência de contatos diretos entre as pessoas, a privatização da vida individual e familiar; o impacto da televisão na criação de padrões de consumo, no aumento da visibilidade dos crimes e da violência, na maior exposição de personagens importantes , rompendo cada vez mais a noção de intimidade, com importantes impactos na vida política e cultural; a democratização da cultura o discurso da igualdade e a política da igualdade de direitos provocou uma diminuição da deferência por autoridades e pelos ricos e invadiu também a esfera familiar, a escola, a prisão, a política, surgiu também, nesse processo, o que Garland chamou de um “individualismo moral”, uma diminuição do indivíduo de laços de dependência em relação aos grupos e a possibilidade de cada um optar por estilos pessoais quanto aos valores e aos modos de agir.
As transformações da modernidade tardia acima sublinhadas foram decisivas para forjar uma situação, nos marcos da expansão das taxas de crimes, em que a cultura do controle encontrou fortes estímulos para se desenvolver.
A crise do welfare state e as escolhas políticas realizadas no sentido da sua superação, todavia, tiveram uma influência decisiva nas novas modalidades encontradas para combater a criminalidade e serão tratadas de modo mais detalhado a seguir.

A cultura do controle
O controle social contemporâneo do crime exibe duas novas e distintas linhas da ação governamental: em primeiro lugar uma estratégia adaptativa enfatizando a prevenção e a parceria; a segunda, uma estratégia do Estado soberano enfatizando o aumento do controle e uma punição expressiva. Tais estratégias em muito diferem daquelas do Estado liberal e de bem-estar que as precederam.
A estratégia de controle desenvolvida na modernidade tardia, de acordo com o modelo produzido por Garland, se assenta no fato de que altas taxas de crimes se tornaram fatos sociais normais e as soluções liberais e do Estado penal de bem –estar foram percebidas como incapazes de receber e processar, adequadamente, as soluções para diminuir as taxas de criminalidade.
A necessidade de o Estado reconhecer esta nova realidade do crime, sem aparecer que ele se retrai em face desta nova situação, se constitui um complicado e recorrente problema político. A solução encontrada foi ele se concentrar nos efeitos do crime (custos, vítimas, medo etc) mais do que nas causas. Tal solução também só seria possível na medida em que se pudesse estabelecer na base da construção de difíceis  parcerias com a sociedade civil (comunidades, empresas, comércio) enfatizando a prevenção do crime e redefinindo a missão organizacional de agências como a polícia, as prisões etc.
Muitas vezes, contudo, o Estado se mostra ambivalente quanto a tais parcerias e reassume muitas vezes o discurso e o mito do Estado soberano. Os resultados são modos mais intensivos e expressivos de policiamento e de punição cujo objetivo é convencer a população de que o Estado ainda mantém sua autoridade.
Voltando à solução supracitada, é preciso discutir em que condições históricas ela pôde prosperar e de quais fontes derivava o apoio social e a ressonância social da parceria preventiva entre Estado e sociedade civil.
A parceria preventiva envolveria toda uma nova estrutura de acordos em que o Estado e as agências não-estatais coordenariam suas práticas com o objetivo de melhorar a qualidade da segurança através da redução das oportunidades para o crime e a extensão da consciência sobre o problema do crime. Tal parceria envolveria os seguintes aspectos: coordenação de agências tais como aquelas ligadas a transporte, habitação, planejamento, educação, assistência social com o trabalho da polícia e da justiça criminal em um esforço para aumentar as responsabilidades quanto ao controle do crime; parcerias público-privadas tais como seminários para discussão sobre a criminalidade, vigilância (câmeras etc) de certas áreas visando aumentar as energias e os interesses dos cidadãos e das associações comerciais para propósitos de prevenção ao crime.
Esta estratégia também considera a aceitação de um conjunto de construtos criminológicos: criminologia das oportunidades, um estilo de governança (responsabilização ambígua, governo à distância) e um conjunto de técnicas e conhecimentos advindos de modos de pensar e agir previamente estabelecidos.

A ESTRATÉGIA DA SEGREGAÇÃO PUNITIVA
Sentenças pesadas e aumento do aprisionamento (encarceramento em massa), restrições à defesa, three strikes, construção de presídios de segurança máxima, prisão de crianças e adolescentes, punição corporal, inflação do código penal, publicização dos condenados, especialmente nos crimes sexuais, tolerância zero aos pequenos delitos, são medidas que demonstram uma forte onda punitiva na modernidade tardia.
O movimento e a retórica da lei e ordem cuja origem remonta aos anos finais da década de 1960, tough on crime, são instrumentalizados pelo Estado para advertir e confortar a população e de encontrar na mesma um apoio para a qual este processo de punição se torne um momento expressivo de liberação de tensões e de gratificação pela unidade face ao crime.
Ainda sobre a estratégia de punição cabe aqui registrar a necessidade de participação de um ator que, se não é novo, é trabalhado a partir de uma nova perspectiva: a vítima. A vítima- vítima real, família da vítima, vítima potencial- é utilizada e invocada para apoiar medidas de segregação punitiva (leis são criadas com os nomes das vítimas). O novo imperativo é o de que as vítimas devem ser protegidas, suas vozes devem ser ouvidas, suas memórias honradas e seus ódios expressados.
A retórica do debate sobre a punição invoca a figura da vítima-tipicamente uma criança, mulher ou idoso, sempre um cidadão correto e íntegro que deve expressar toda a sua angústia e sofrimento e que deve ser absolutamente protegida e ter seus direitos garantidos.
Os direitos e a segurança do criminoso, cujo tratamento na política penal liberal e do bem –estar eram privilegiados, agora são completamente ignorados e, portanto, a vítima passa a ter todas as atenções.É um jogo de soma zero em que as vítimas ganham e os criminosos perdem.
A vítima é tomada agora, em certo sentido, como uma figura que representa uma experiência comum e coletiva e não uma experiência individual e atípica. A publicização das vítimas reais serve como metonímia para o problema da segurança pessoal. A visão da vítima como todo homem ou toda mulher tem enfraquecido a antiga noção de “público” e ajudado a redefinir e desagregar o coletivo. A vítima deve ter voz, opinar sobre o processo, sugerir sentenças.

A NOVA EXPERIÊNCIA DO CRIME
A historicamente situada experiência do crime é constituída e vivenciada por indivíduos situados que incorporam um complexo de práticas, conhecimentos, normas e subjetividades que foram uma cultura.
Falar sobre a experiência do crime é falar sobre o significado que os crimes têm para uma cultura singular em um momento preciso.
A experiência coletiva do crime tenderá a ser altamente diferenciada e particularmente estratificada nas sociedades modernas. Grupos sociais são diferentemente colocados em respeito aos crimes, diferencialmente vulneráveis à vitimização, diferentemente amedrontados sobre seus riscos, diferencialmente orientados por valores, crenças e educação a respeito de suas causas e de suas soluções.

CLASSE MÉDIA
A classe média tinha sido o grupo que dava boa dose de suporte à política penal do Estado liberal e de bem-estar e que também promovia uma abordagem profissional e técnica das questões relativas ao crime. Além disso, os profissionais (assistentes sociais, psiquiatras, psicólogos, juízes etc) eram recrutados no interior deste grupo social.
A classe média tinha uma atitude civilizada em relação ao crime, especialmente sustentando a existência de circunstâncias sociais mais do que a responsabilidade individual para o ato criminoso, sustentavam também programas sociais de prevenção em vez de punir. A classe média tem sido um signo de distinção cultural, marcada opinião educada, humanista sobre temas sociais.
A classe média, além disso, até recentemente estava espacialmente distante do crime, da insegurança e dos eventos criminosos. Suas crianças estavam estudando em escolas disciplinadas e livres do crime, das drogas e da violência. Suas rotinas não estavam expostas ao teatro do crime e o medo do crime não ocupava um lugar proeminente em suas consciências. Ela preferia a imagem do criminoso como alguém pouco socializado, com pouca educação e para o qual propunha reformas sociais e um tratamento correcional justo. O crime era apenas um problema social. O que ocorreu para que a classe média deixasse de apoiar tais posições?
A primeira hipótese é a de que a classe média não resistiu à pressão da opinião popular sobre a formulação das políticas, tanto porque tal formulação se tornou mais politizada como porque os profissionais pertencentes a tal grupo social  perdem status e credibilidade
A segunda hipótese é a de que tal grupo social passou a apoiar menos o penalismo liberal e de bem-estar.A verdade é que ambas as situações ocorreram.
Soluções de mercado, individualismo e ênfase na auto-iniciativa corroeram o apelo coletivista. A procura por gerenciadores de crises no sistema criminal superou a antiga importância dos profissionais que antes atuavam no sistema. O aumento do crime foi associado ao penalismo liberal e à falência institucional do mesmo.
Os ideais de generosidade e reabilitação dos criminosos foram, progressivamente, sendo derrotados e, portanto, os valores culturais da classe média foram associados ao apoio à onda de criminalidade (direitos humanos).
Outro marco importante foi a diminuição da distância espacial em relação ao crime. O aumento das taxas de criminalidade atingiu a classe média, especialmente os crimes contra o patrimônio. O aumento da desordem urbana (gafiti, incivilidade, vandalismo etc) também contribui para um aumento da exposição deste grupo à questão do crime, especialmente ao medo de ser vitimado. Cada um que era assaltado ou roubado comunicava sua experiência a outros e, então, o crime deixava de ser uma abstração estatística para ter um significado vívido na consciência popular e na psicologia individual.
O aumento do uso de drogas e as imagens reproduzidas pela mídia de crianças se drogando fez também soar o alarme para as famílias de classe média de que medidas mais duras deveriam ser tomadas.
A mídia dramatizava e reforçava a experiência pública do crime. Aliás, a importância progressiva da televisão no cotidiano dos cidadãos coincidiu com o aumento das taxas de criminalidade. A cobertura da tv aos eventos criminosos intensificava uma abordagem emocional dos mesmos. A proeminência e popularidade dos crime shows na tv vem já dos anos de 1960 e os mesmos enfatizam os dramas de revanche e moralidade, ressentimentos, histórias de criminosos que burlaram a justiça etc. A representação operada pela mídia sob a forma de uma nova inflexão emocional de nossa experiência do crime, sem dúvida, jogou um papel importante par a construção da nova estratégia punitiva; todavia é preciso novamente sublinhar: sem a nossa experiência coletiva do crime, de nossa rotina já deslocada pelas altas taxas de criminalidade, a cobertura da mídia apenas não seria suficiente para jogar ao chão o penalismo liberal.
As profundas mudanças na estrutura familiar da classe média também contribuíram para minar sua visão generosa e humanista do crime, particularmente a participação da mulher no mercado de trabalho ampliou também sua exposição ao risco do crime e, portanto, do medo a ele associado.
As transformações da economia que levaram a classe média ao desemprego criaram também uma sensação de precariedade, o que alguns chamam de insegurança ontológica.

O governo através do crime
O cientista social Jonathan Simon produziu outra importante contribuição, a mais decisiva, segundo pensamos, encontrada em seu livro O governo através do crime: como a guerra ao crime transformou a democracia americana e criou a cultura do medo (2007). A preocupação de Simon, seguindo a tradição foucauldiana, foi perceber que, através do crime, uma nova governamentalidade estava sendo criada porque os americanos construíram uma nova ordem civil e política estruturada em torno do problema do crime violento (ibid,3). Desde a década de 1960, nesta nova ordem, valores como liberdade e igualdade foram profundamente revisados e novas formas de poderes institucionalizados em nome da repressão às ondas de crimes violentos.
Para Simon, e isto é muito importante, o crime se tornou central ao exercício do poder para todos, desde o Presidente dos Estados Unidos ao professor em sala de aula (ibid, 04).
A hipótese trabalhada por Simon, que o mesmo reconhece ser polêmica, de que a elite estadunidense está governando através do crime, característica mais decisiva da sociedade e da lei norte-americana contemporâneas, nos remeteriam a três importantes dimensões: o crime tem se tornado um significante e estratégico tema, devemos esperar que as pessoas estejam prontas para aceitar o novo enquadramento da categoria de crime para legitimar intervenções que podem ter outras motivações e, por último, as tecnologias, os discursos e as metáforas do crime e da justiça criminal devem se tornar características visíveis em todas as instituições e onde as mesmas podem facilmente gravitar em torno de novas oportunidades de governança (05).
Governar através do crime não se confunde com o exercício de poder de um governo para reprimir ou prevenir a criminalidade. Trata-se aqui do desenvolvimento de novas formas de governamentalidade 2 ,em que o tema do crime produz novas estratégias de assujeitamento, de governo, de normalização, de poder e de dominação; portanto, escreve Simon, o governo através do crime não pode nos tornar mais seguros, não pode diminuir o medo e a sensação de insegurança, especialmente porque tal governo produz um modelo específico de cidadão comum: a vítima do crime.

O crime na democracia moderna tardia
O crime deve definir, em escala antes nunca considerada, o real problema para um governo, bem como o tratamento adequado para tal problema deve se tornar um modelo para um bom governo. Para Simon, o novo enquadramento do tema do crime quer dizer que todos os grandes problemas sociais deverão ser reconhecidos e enfrentados a partir desse fenômeno social. A educação, a saúde, o esporte, a renda etc serão como um fundo de um quadro em que o crime aparece sempre em primeiro plano.
O governo através do crime diz respeito à criação de um tipo de racionalidade de governo em que as formas de conhecimento relacionadas ao crime, as populares e as científicas, ultrapassam o seu domínio inicial e se convertem em instrumentos para enquadrar outros temas importantes.
O governo através do crime é um capítulo da história do liberalismo e, portanto, não tributário, em hipótese alguma, de qualquer referência a ditaduras ou governos autoritários.
A ênfase na punição, na prisão em massa, no estabelecimento de penas longas, na produção de tecnologias de vigilância, na produção dos vários indivíduos perigosos, apenas deve ser encarada como um estímulo a que cada cidadão seja responsável por seu autogoverno, um tema caro ao liberalismo norte-americano, mas de um liberalismo específico, aquele que emerge após a crise do liberalismo do New Deal.
O autor em questão sublinha que o governo através do crime redefine as formas pelas quais o poder se exerce sobre classes, etnias, gêneros, mas afirma também que toda a sociedade, pessoas e instituições, para gravitar em torno da nova governamentalidade.

Estrutura rizomática do governo através do crime
O Estado tem um papel importante no estabelecimento da nova ordem, mas muitas instituições da esfera da sociedade se incumbiram de produzi-la e ampliar o seu alcance.
A criação do processo de lei e ordem desde a década de 1960, muito se deveu às iniciativas de Presidentes da República e Procuradores Estaduais no sentido de produzirem a legislação que deveria atender o cidadão típico da modernidade tardia e a quem todo o esforço do governo deveria responder: a vítima do crime.
O criminoso, um sujeito racional porque tem a capacidade de avaliar os custos e os benefícios que uma ação criminosa poderia lhe proporcionar, passou a receber um tratamento duríssimo a partir de filosofias da punição baseadas na dissuasão (deterrence) e incapacitação (incapacitation) 3.  A adoção de sentenças mínimas 4, da three strikes 5, two strikes, ampliação da pena de morte, tolerância zero, lei antidrogas, legislação sobre a pedofilia e crimes sexuais, além de outras numerosas iniciativas em termos de legislação penal que alteraram profundamente as formas de controle político e social do cidadão.

A prisão em massa
Com uma população carcerária de quase 2.5 milhões de detentos e 5 milhões cumprindo penas na comunidade, em liberdade provisória (parole ou probation), a prisão tornou-se, segundo Simon, uma instituição de socialização tal como a família ou a escola. O mesmo autor nos informa que um em cada três afroamericanos um em cada sete hispânicos, e um em cada dezessete brancos irão para a cadeia durante suas vidas (ibid, 141), caso seja mantida a atual tendência de punição dura e longa. Simon afirma que a prisão se transformou em instituição política decisiva no novo estilo de governar, especialmente porque é através dela que se enfrenta o medo e a insegurança sentidos pelo cidadão e que afeta o senso de pertencer a uma comunidade específica através da residência e da frequência a parques e ruas (ibid, 154).
A prisão afasta o risco de que o cidadão se exponha ao perigo. Como apenas a incapacitação é a meta e, portanto, a reabilitação perdeu sua legitimidade, programas sociais são abandonados porque não funcionariam para prevenir os crimes e recuperar o criminoso. A prisão proporciona a visibilidade do trabalho do político porque a punição se torna uma obra exposta à visão do público, das vítimas.
A prisão também regula o direito de votar e ser votado. Em vários Estados ex-detentos ou presos em parole ou probation perdem temporária ou definitivamente o direito de votar e ser votado.

Família, escola e trabalho
O governo através do crime não pode prescindir de governar as relações domésticas, o processo educacional e o mercado de trabalho.
De uma estrutura completamente segura e livre do crime, a família passa a ser um risco potencial para crianças e mulheres. A justiça criminal passa a se especializar na criação de agência para tratar dos crimes envolvendo membros das famílias. Os pais, no estágio atual, devem encarar a si mesmos como tendo um mandato moral e legal para gerenciar os riscos de crimes no ambiente doméstico (ibid, 178). 6 A criminalização da vida doméstica, especialmente concentrada na pedofilia e na agressão masculina às mães ou esposas, é uma oportunidade para a intervenção do governo na esfera privada, na família. A governança da família, segundo Simon, foi também um resultado perverso da atuação da segunda geração de feministas.
Ambientes livres de drogas e disciplinados são os objetivos da nova governança nas escolas e no mercado de trabalho. Para atingir tais objetivos vem sendo mobilizadas tecnologias para detectar metais e câmeras de vigilância para inibir a violência nas escolas e nos locais de trabalho. Muitos trabalhares são periodicamente submetidos a testes para verificar a presença de drogas (legais e ilegais). Nas escolas e empresas não há mais a privacidade das correspondências e todos os sítios acessados por alunos e trabalhadores são constantemente vigiados.

Conclusão: guerra ao crime
As contribuições de David Garland e Jonathan Simon explicam muitas das mudanças na democracia  da modernidade tardia. Simon, mesmo que evite comentar os limites e as  contribuições de autores que discutem a democracia em termos normativos, descritivos ou semânticos, indica que as transformações operadas desde a segunda metade da década de 1960, especialmente nos Estados Unidos, mudaram o conteúdo e a racionalidade da governança. A guerra contra o crime é, portanto, uma metáfora que ajuda a explicar não somente a multiplicação de tipos penais, a força de instituições como a prisão etc, mas as novas dimensões do exercício do poder e da dominação.

BIBLIOGRAFIA
BECK, Ulrich(1994). Risk society. Towards a new modernity. Londres, Sage Publications.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix ( 1996). Mil platôs. Rio de Janeiro, Editora 34. V.1.
FELSON, Marcus(1994). Crime and Everyday. New York, Prentice-Hall.
FOUCAULT, Michel (2004). Naissance de la biopolitique. Paris, Gallimard.
GARLAND, David(2001). Culture of crime control. Chicago, The University of Chicago.
MATZA, David (1964). Delinquency and drift. New York.
PERALVA, Angelina(2000). Violência e democracia. São Paulo, Paz e Terra.
SIMON, Jonathan (2007). Governing through crime: how the war on crime tranformed american democracy and created a culture of fear. New York, Oxford University Press.

1- Nesta década, o homicídio doloso tem se mantido entre 38 e 40 mil ocorrência anuais, o que nos mantém sempre entre os três países que mais assassinam pessoas.

2- Jonathan Simon, inadvertidamente, se utiliza os vocábulos governamentalidade e governança como se ambos fossem intercambiáveis, mas consideramos apenas o primeiro como sendo de inspiração foucauldiana.

3- Propõem, em resumo, que apenas o medo de ser punido e/ou a adoção de penas longas podem reduzir o crime.

4- Um juiz não deve observar circunstâncias atenuantes na prática de um crime, mas aplicar sentenças já determinadas para cada tipo penal.

5- Prisão perpétua após o indivíduo cometer três crimes considerados graves. Tal iniciativa teve origem na Califórnia e se espalhou para a maioria dos estados norte-americanos.

6- Toda a paranóia com equipamentos de segurança e contratação de vigias, se justificam pelo novo status adquirido pelos pais a partir do governo através do crime. É necessário também sublinhar que toda a criminologia que se concentra nas oportunidades para o crime é outro importante indutor dos gastos familiares com equipamentos de segurança.