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TRAGÉDIA, MEMÓRIA E ESPERANÇA SOLIDÁRIA
Ano 5 - Nº 19
Março de 2010
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Dia Internacional da Mulher

Além de rosas e bombons
Um bate-papo feminista a propósito do centenário do Dia Internacional da Mulher

No ano de 2010 comemora-se o centenário de instituição do Dia Internacional da Mulher. A data, mais do que uma festividade, é um perturbador estímulo à reflexão: no dia 8 de março de 1857, 129 mulheres e meninas trabalhadoras da indústria têxtil morreram carbonizadas dentro de uma fábrica enquanto reivindicavam melhores condições de vida e trabalho. Em 1910, o Congresso Internacional de Mulheres, realizado na Noruega, escolheu a data desta tragédia para instituir o Dia Internacional da Mulher. Hoje, passado um século, a data costuma ser celebrada com homenagens, bombons e flores. As mulheres as recebem de bom grado. Mas querem também discutir e sonhar com novas e mais saudáveis relações entre homens e mulheres, numa sociedade justa e inclusiva.
Dentre as mulheres que discutem, sonham e, com seus talentos, buscam construir essa sociedade mais igualitária, está a teóloga Sandra Duarte de Souza. Mestre e doutora em Ciências da Religião, Sandra é professora de Ciências Humanas e Sociais da Faculdade de Teologia e do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo e editora da revista Mandrágora, publicação do MANDRÁGORA/NETMAL - Grupo de Estudos de Gênero e Religião da mesma Universidade. Em parceria com a professora Carolina Teles Lemos, da Universidade Católica de Goiás, ela acaba de lançar o livro A casa, as mulheres e a igreja: relações de gênero e religião no contexto familiar, pela Fonte Editorial.

Você tem pesquisado e escrito no campo da teologia feminista. A velha expressão “sou feminina, não feminista” ainda repercute na Igreja? Afinal, o que é teologia feminista?
Ser feminista é lutar por direitos políticos e políticas públicas voltadas para as necessidades específicas das mulheres. Mas a interpretação da palavra “feminismo” foi cultivada pela mídia de maneira muito negativa. Um movimento pela autonomia das mulheres era uma idéia que não caía bem no século 19. Quando as mulheres começaram a lutar por seus direitos, buscou-se desqualificar o ser feminista. Ainda hoje, numa sociedade marcada pela cultura patriarcal, a palavra é carregada de preconceito. Ao mesmo tempo, persistem as piadas relacionadas ao sexo ou à inteligência das mulheres; usa-se a imagem da mulher para vender cerveja.
Se feminismo já é um termo problemático, pense isso no contexto religioso e particularmente cristão, no qual há toda uma construção que secundariza as mulheres. Nós tratamos Deus como homem – uma divindade que tem poder e que, portanto, só pode ser homem. A teologia feminista é recente na história do pensamento cristão, embora haja iniciativas pioneiras, como a de Elisabeth Cady Stanton, que em 1898 publicou a “Bíblia da Mulher” – que não é essa Bíblia rosa que está sendo vendida nas livrarias. Tratava-se de uma nova leitura da Bíblia.
Os estudos desenvolvidos nos EUA e França têm grande importância para as reflexões que se desenvolvem no Brasil. Há algumas teólogas que podem ser citadas como referência, como as americanas Rosemary Radford Ruether, Mary Hunt e Mary Daily. Entre as latinoamericanas, Ada María Isasi-Díaz e Maria Pilar Aquino. O Brasil também conta com pesquisadoras na área, como Ivone Gebara e Luiza Tomita, católicas, e Nancy Cardoso Pereira e Tânia Mara Vieira Sampaio, metodistas. Mas publicar livros com a palavra feminista no título é difícil, há muita rejeição por parte das editoras religiosas, que preferem termos como “teologia na perspectiva da mulher”, e “teologia feminina”.

Hoje já se ouve falar mais em “teologia de gênero” do que “teologia feminista”. Houve uma mudança de conceito?
Gênero é uma ferramenta de análise que permite pensar a temática de maneira relacional, ou seja, desconstruindo “construções sociais” baseadas em todo um sistema de relações sociais nos quais se inserem homens e mulheres. Joan Scott escreveu em finais da década de 80 um artigo que consagrou o uso do termo gênero, cujo título é “Gênero uma categoria útil para a análise histórica”. Nem todas as feministas concordam com essa abordagem. Algumas consideraram que a categoria “gênero” terminou esvaziando do feminismo seu conteúdo político. Mas a abordagem de gênero não antagoniza com o feminismo. Ela aprimora o olhar feminista. As teologias que têm empregado gênero como categoria analítica são teologias feministas.

As distinções entre características femininas e masculinas (“menina é melhor em português, menino em matemática”; “mulher é mais emocional, homem é mais racional”) criaram funções ditas masculinas e funções femininas, o que se percebe também na Igreja. Por exemplo: mais mulheres na docência, mais homens na administração. Como você vê essa questão?
Essa dicotomia é baseada numa leitura essencialista; ou seja, acredita-se que as mulheres tenham uma natureza diversa à do homem, o que lhe confere características e papéis distintos.  O grande problema é o que se constrói sobre o dado biológico: não se deveriam atribuir funções ou construir hierarquias sobre essas diferenças.  Se no passado não tínhamos mulheres em várias atividades, é porque elas eram impedidas de exercê-las. É claro que o feminismo não nega a existência das diferenças biológicas, mas ele surgiu como um movimento disposto a discutir politicamente as igualdades. Surgiu discutindo, por exemplo, o direito absoluto que os homens tinham sobre o corpo das mulheres – o que lhes dava, até, direito de matar.
Mas, voltando para o campo religioso, vemos que somos muito essencialistas. Ainda existe todo um discurso que, baseado em Agostinho e Tomás de Aquino, desqualifica a mulher. Estes teólogos se alimentam dos filósofos clássicos. Tomás de Aquino era aristotélico. E Aristóteles dizia que alguns (homens) nasceram para dominar e outros para serem dominados. Tanto para Agostinho quanto para Tomás de Aquino nós somos menores e são os homens que orientam nossa vida. Fomos associadas ao mal, ao demoníaco, estamos seduzindo o tempo todo... Lutero dizia que as meninas falam mais cedo porque “ervas daninhas crescem mais rápido”... Pois, é, Lutero! Calvino aconselhava as mulheres a não abandonar os seus maridos mesmo que fossem severamente espancadas. Elas só poderiam abandoná-los em caso de risco à vida. Mas, como saber o quanto uma pessoa vítima de violência pode suportar?
E não é preciso ir tão distante. No final dos anos 90, no jornal oficial de minha própria igreja, um pastor publicou artigo no qual ele aconselhava às mulheres serem submissas a seus maridos, pois, se eles não encontrassem em casa o que queriam, poderiam ir “buscar em outro lugar”. O texto bíblico estava sendo usado para justificar a infidelidade masculina! Mesmo no âmbito das faculdades de teologia, as mulheres ainda estão em posições periféricas, ministrando aulas complementares como sociologia, antropologia, psicologia. De maneira geral, as matérias básicas como teologia sistemática e Bíblia são ministradas pelos homens.

Recentemente a imprensa noticiou o aumento de homens e mulheres nas creches e escolas infantis do ensino público no estado de São Paulo. Dizia a reportagem ser muito positivo poder contar com o ponto de vista masculino e com a referência de figura paterna na educação das crianças. Você concorda com este ponto de vista? E na Igreja, existe essa tendência de termos homens ensinando crianças?
Quando um trabalho se “masculiniza” ele ganha valor. Veja o que acontece com a inserção dos homens no mundo da culinária. Se as mulheres são boas cozinheiras, os homens são grandes “chefs”. Quando um homem cuida de criança todos dizem “uau, que fantástico!” Mulher cuidando de criança é natural. Mas na Igreja ainda é bem raro ver homens lecionando para classes de crianças na Escola Dominical ou cuidando do berçário. Ainda se entende que é um “desperdício” empregar homens nestas funções; eles seriam melhor aproveitados lecionando para os adultos. Embora, como Igreja, digamos que é das crianças o Reino dos Céus, o trabalho com crianças não é valorizado.

A imprensa também tem noticiado a existência de igrejas (no Brasil e no exterior) que estão promovendo lutas de “vale-tudo” para atrair os jovens. Um dos pastores entrevistados afirma que é  necessário “injetar masculinidade”  nos ministérios. Diz que os homens na faixa de 18 a 34 anos “caem no sono” porque as igrejas têm “tons pastéis”. Há um recrudescimento do machismo no jovem de hoje?
O homem é socializado para tornar-se agressivo. Por que o seguro de carro é mais barato para mulheres do que para homens? Simplesmente porque os meninos são criados para serem mais competitivos, mais agressivos, e isso se reflete nos acidentes de trânsito. Essa agressividade é devida apenas a testosterona? Eu acredito que é muito mais pelo contexto cultural que a favorece.
Desde cedo os meninos jogam games violentos, praticam artes marciais, são ensinados numa cultura de violência, e é isso o que aparece agora na iniciativa dessas igrejas.  Existe a idéia de que se a agressividade do menino não for estimulada, ele pode se transformar em homossexual. Outro dia uma amiga minha discutiu essa questão na escola de seu filho. O menino chegou em casa com uma espada de brinquedo e ela foi à escola reclamar que o brinquedo de luta contrariava os valores defendidos por sua família. A resposta da professora foi que o menino, uma criança tranqüila, era muito “banana” e que era necessário estimular sua “masculinidade”.
Por que não podemos deixar os meninos brincarem com bonecas? A boneca ensina o cuidado com o outro. Nós, mulheres, não somos naturalmente cuidadoras, somos ensinadas a cuidar do outro. Cuidamos dos filhos, dos maridos, dos pais, de todo mundo... menos de nós mesmas. Já aos meninos são dados carrinhos. O carro ensina a autonomia, a condução da própria vida. O menino que brinca com o carro, mesmo que esteja dentro de casa, imagina a rua... Em contrapartida, boneca e fogãozinho restringem a menina ao espaço doméstico que sempre foi conferido à mulher. Mas o menino também é vítima desta socialização. Ele nunca pode estar no espaço doméstico. Tanto que, quando o homem fica desempregado, ele não fica em casa. Muitos ficam no bar. Adolescentes saem cedo da escola porque precisam trabalhar, precisam ser “produtivos”.
Particularmente no contexto da alta concorrência religiosa busca-se um diferencial de mercado. Uma vez que as igrejas perderam sua identidade, todas se parecem iguais. Muda-se o rótulo, mas o conteúdo é o mesmo. Oferecer um novo “produto”, como a luta, é uma tentativa de se diferenciar. O que pode gerar adesão por algum tempo, uma vez que se trata de produto descartável.
Há também um recrudescimento dos fundamentalismos, o que afeta as relações de gênero. Entre os fundamentalistas, tem havido um grande reforço da submissão das mulheres. Na literatura americana, há muitos livros escritos para as mulheres que estabelecem um perfil feminino desvantajoso nas relações de força.
Este conceito tem que ser desconstruído na Igreja. E essa desconstrução passa pelo gabinete pastoral, que é o lugar de poder da Igreja. Embora o poder regulador da Igreja esteja mais relativizado nestes tempos de secularização, o que o pastor ou pastora fala ainda faz muita diferença para o fiel. Se o pastor aconselha a uma mulher vítima de violência doméstica que não tome nenhuma atitude, que fique em casa, ela pode não amanhecer viva. Isso é muito sério. Não sei se todos os pastores têm consciência do poder que exercem sobre a vida dos fiéis.
Pesquisa da socióloga Maria das Dores Campos Machado (Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar) mostra que quando a adesão à igreja é só da mulher, a dinâmica familiar não muda muito.  Quando a adesão é do casal ou do homem, a possibilidade de mudança é enorme. A Igreja entra como um elemento regulador importante. Diminuem os problemas relacionados a alcoolismo e violência doméstica. O estudo mostra a importância da liderança religiosa e do papel da Igreja na construção de novas relações

Entrevista a Suzel Tunes