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DESASTRES SÓCIO-AMBIENTAIS E A LUTA PELA JUSTIÇA ECOLÓGICA
Ano 5 - Nº 21
Outubro de 2010
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Crítica
 
Justiça ecológica: limites e desafios
Por: Ivone Gebara

Uma das coisas que tem chamado minha atenção é o fato da importância dos desastres ecológicos para a mídia mundial, com freqüência apresentados com muito sensacionalismo e como um novo investimento global urgente. Há um excesso de coberturas, programas e publicações em relação aos diferentes desastres ecológicos através do mundo. Embora pareçam catastróficos, não conhecemos exatamente as proporções reais dos mesmos, visto que são manipulados por técnicas fotográficas apuradas. Entretanto, podemos observar o enorme espaço de comunicação pública que lhes é consagrado e o interesse provocado por essas transmissões. Poderíamos até nos alegrar diante desse fato aparentemente revelador do grande cuidado pela sorte do planeta azul e de seus habitantes. Porém, muitos de nós não estamos de fato convencidos de que é o cuidado e o amor pelo planeta e suas complexas formas de vida, o foco primeiro das reportagens. A suspeita nos invade porque a excludente ideologia capitalista tem usado de todos os meios para continuar reinando no mundo.
Ao mesmo tempo constata-se um significativo cansaço de voltar a noticiar as grandes questões sociais que continuam sem solução em nosso país e em outros. Os famintos da cidade e do campo já não são notícias interessantes. Os sem teto exigindo moradia e os sem terra exigindo reforma agrária parecem sem espaços para expor suas insolúveis dificuldades. As mulheres violentadas e as crianças vítimas de maus-tratos são notícia uma ou outra vez, quando há possibilidade de transformar o fato em manchete. Os milhares de delinquentes que vagam pelas ruas, realizando pequenas infrações cotidianas, não são mais uma preocupação que de fato valha uma discussão pública séria, em vista de medidas pedagógicas e políticas eficazes a nível nacional e internacional. Entretanto, são as grandes nuvens de poluição, as queimadas, os enormes blocos de gelo se derretendo no Ártico, as fotos que mostram a destruição da camada de ozônio e até a simulação dos enormes buracos negros, que parecem não só impressionar e preocupar, mas interessar muita gente. A produção de vídeos ecológicos entrou para o mercado cinematográfico com um enorme sucesso. Os seres humanos devem agora salvar o planeta da extinção dos animais, das árvores, das geleiras, dos rios e dos mares. Eles, os responsáveis pela destruição do meio ambiente, são convocados pela mídia e pelos cientistas a salvar o planeta. Aos seres humanos parece ter sido entregue um poder imenso – destruir e salvar. Nessa linha, as instituições religiosas continuam com os mesmos conteúdos teológicos do passado e abordam de maneira muito tímida as diferentes questões da atualidade. Temem perder suas seguranças e seu velho poder diante das exigências do novo momento histórico. Iniciativas alternativas, embora existam, são pouco expressivas nos diferentes países do continente.
Há uma ecologia que interessa às grandes corporações nacionais e internacionais. É uma ecologia que tem a ver com os mega investimentos no setor de tecnologias para a criação da chamada vida saudável. Esta é alimentada pela propaganda que difunde igualmente idéias sobre o “ecologicamente correto”. Produtos alimentícios, aparelhos domésticos, automóveis, papéis dos mais diferentes tipos, têm seu consumo autorizado à vontade quando o selo de produto ecológico está presente. Mas quem nos garante isso? E, a quem estamos favorecendo ao consumi-los? Estariam eles modificando as persistentes relações injustas entre os diferentes grupos humanos? Estariam eles sanando o problema da fome de muitos países e de muitas regiões de nosso país? Estariam de fato provocando mudanças qualitativas nas periferias do mundo?
Surgem idéias bonitas sobre a vida saudável e as formas de mantê-la, mas ignora-se a vida insalubre de boa parte da população exigindo saúde, moradia decente e trabalho. Não entram na prática da justiça ecológica os programas de construção de redes de esgoto, de saneamento básico, de não sobrecarga das redes atualmente existentes com a construção de imensos edifícios à beira mar ou nos centros urbanos. Não se fala da água perdida pelos canos furados do sistema precário de distribuição de águas em muitas cidades e em muitos bairros do imenso Brasil verde e amarelo. Não se fala do absurdo de promover uma indústria automobilística sem controle político e social, extremamente poluidora do ar e desgastadora dos nervos e da emoção dos condutores de veículos no engarrafamento das grandes cidades. Não se fala no aumento do tráfico aéreo e de suas conseqüências nocivas.
Os problemas sociais imediatos, aqueles que nossos olhos podem ver e nossos corpos sentir, são esquecidos ou tornados coisa banal. Para muitos, isso não é ecologia!
A ecologia social não tem mais espaço público significativo. Aliás, não se percebe a injustiça social como um problema ecológico, ou seja, como um problema que tem a ver com a “oikia”, a nossa casa comum, origem da palavra e da ciência ecológica.
A falta de preocupação ecológica é na verdade a mesma falta de preocupação com a justiça social e está ligada a falta de um projeto político que favoreça o bem da nação. Essas carências podem ser vistas a olho nu em tempos de eleição, mostrando a vergonhosa incompetência da maioria dos candidatos nas propagandas eleitorais. Os candidatos correm em busca de um lugar ao sol sem se darem contas da falta de preparo da maioria. Esta nunca é vista como um problema ecológico. O que mais aparece como ecologia é a alienação da real ecologia; é o distanciamento dos problemas de nosso cotidiano, dos sofrimentos reais de nossos corpos, para nos fixarmos nas abstrações de certo discurso ecológico aterrorizante e nitidamente capitalista e mediático. Há uma retórica ecologista sem nenhuma prática ecológica. Há uma moda ecológica como se fosse um verniz de modernidade ou de boa educação. Há uma culpa ecológica que acaba sempre pesando sobre os mais pobres.
A expulsão dos índios de suas terras, a escravidão dos peões nas empresas agrárias, a falta de assistência aos enfermos do campo e da cidade, as ameaças de que são vítimas lideranças que buscam o bem comum não têm nenhum significado ecológico. O enorme desperdício de alimentos, a falta de cuidado em transportá-los, a falta de higiene em manuseá-los, o excesso de pesticidas e conservantes agregados quase nada aparece como preocupação política e clamor por uma ecojustiça. Para muitos, infelizmente, o problema social não é um problema ecológico.
A banalização da injustiça social, a volta ao individualismo selvagem, a submissão a uma economia de mercado que excita a um consumismo doentio, vai diminuindo a responsabilidade coletiva de todos nós em relação a uma qualidade de vida para todos. Então, assistimos a volta das acusações contra os pobres; fala-se de sua ignorância crescente, de sua incapacidade de cidadania real, de sua falta de formação profissional, de seus vícios, de sua incapacidade de planejar gastos. E os políticos com uma paternal arrogância, sobretudo em tempos de eleição, querem abraçar os pobres, os malcheirosos, os descamisados, os que destroem com sua sujeira o meio ambiente, prometendo-lhes aliança eterna e salvação das várias adversidades que sofrem. Fotografam-se, filmam-se cenas de falsos abraços e sorrisos amarelos, acreditando que para os pobres é uma honra sair ao lado de tão insigne pessoa. Acirram-se os populismos e os messianismos. Cada um a sua maneira se torna um messias anunciando o compromisso com o meio-ambiente, com os bancários, com os policiais, com as mulheres, com os camponeses, com as crianças, com os idosos, com os gays. Cada um se julga profeta e messias naquele espaço decisório da pré e da eleição. Tudo isso é sintoma grave da perda da seriedade da POLÍTICA e da falta de sentido ecológico. Ao perdermos o sentido da política e a importante responsabilidade dos políticos de profissão estamos decretando a destruição de nossa casa comum, estamos em regime de anti-ecologia, ou seja, estamos contribuindo para a degradação de nosso meio vital e de nossas relações.
Ao reduzirmos a ecologia às grandes realizações cinematográficas sobre os buracos negros estaremos inadvertidamente nos afundando na lama e no lixo que se acumula nos bairros populares, aliás, lixeira barata para muitos bairros ricos. Ao limitarmos a ecologia a não destruição das florestas e dos grandes rios, próximos ou distantes de nós, estaremos limitando as condições reais de vida da população humana, carente de formação técnica e de educação ética para enfrentar o futuro próximo. Sem dúvida não se pode destruir a floresta e nem matar os rios, mas não se pode igualmente esquecer daquilo que está em relação direta e imediata com os corpos marginalizados das grandes periferias do mundo. Não se pode esquecer de meu corpo, de seu corpo e das condições necessárias para uma digna vivência, obra sem dúvida coletiva.
Fechados num ecologismo estreito e sem uma visão política realista do mundo no qual vivemos nos esquecemos facilmente da miséria real, da miséria material e moral que nos assola em forma de alcoolismo, delinqüência, criminalidade que toca, sobretudo, os mais jovens de nossos filhos. Nossas prisões estão cheias de jovens traficantes habitantes das muitas “cracolândias” do país, repletas de assassinos que foram capazes de matar por um par de sandálias, que tiraram a vida de um colega por ciúme da namorada ou para alimentar um vício qualquer... Nossas prisões continuam a reproduzir entre grades e muros o mesmo tráfico destruidor da vida que os levou ao exílio prisional. Reproduz igualmente uma podre hierarquia de privilégios entre os habitantes de uma mesma prisão e seus responsáveis. A insalubridade externa se reproduz com maior gravidade no sistema prisional, continuando a mortífera poluição e corrupção das relações humanas.
A cultura imediatista consumista que cresce no meio de nós é ecocida, isto é, é assassina do planeta e de seus habitantes. E esta cultura vem de nós em graus de criatividade e responsabilidade diferentes.
Os primeiros responsáveis pelo ecocídio encontram-se deitados nos berços esplendidos espalhados pelos rincões da pátria amada. Os outros seus cúmplices mais imediatos, somos todos nós que não nos dispomos a entrar numa organização política e intelectual para repensar a convivência humana no planeta. A violência material e moral que produzimos, elevada a uma potência inacreditável, desencadeia outras que se cruzam e se entrecruzam na misteriosa interdependência de todas as coisas e de todas as classes sociais.
A nova ecologia universal e globalizante, a moda ecológica, contribui para a irresponsabilidade em relação à república, à res- pública ou às coisas públicas que eliminam as aquisições do movimento social com discursos sobre os feitos de um ou de outro astro das políticas nacionais e internacionais.
E nascem os heróis da pátria, os ídolos que apaixonam o público e ao mesmo tempo os traem e alienam; nascem as grandes causas distantes de nós, mas que aparecem como urgências maiores que o choro de uma criança enferma de fome...

Contudo, de longe, alguns de nós ainda conseguimos ouvir uma voz de ontem, que em meio aos muitos ruídos de nosso tempo consegue ressoar hoje na frágil memória de nosso corpo:
“Ai de vós escribas e fariseus, intelectuais e políticos, que apenas iludis os outros e não moveis nenhuma palha para ajudar o seu vizinho”... 
“Ai de vós que ajuntais para vós tesouros que a traça e o caruncho destrói”...
“Ai de vós, hipócritas que se põem de pé nas esquinas e nas sinagogas para serem vistos pelos homens”...
“Guardai-vos dos falsos profetas que estão disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes”...
“Insensatos vós que construís vossa casa sobre a areia movediça, sabei que em breve ela ruirá”...
 “Expulsem com autoridade os espíritos imundos que continuam enganando o povo...”.
“De graça recebestes de graça dai...”.
“Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça...”.

Esta voz interior nos convida insistentemente a “esperar contra toda a esperança” e a “sermos servidores uns dos outros com reciprocidade e justiça”.
Ainda é tempo de dizer-lhe: Assim seja.

 

Ivone Gebara
Setembro de 2010