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SOBRE JANELAS E NEVOEIRO
Ano 1 - Nº 1
Outubro de 2006
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Página de KOINONIA
 
Movimentos Sociais e Responsabilidade Social Empresarial: um diálogo

O seminário Relações entre os Movimentos Sociais e o Setor de Responsabilidade Social Empresarial* reuniu ONGs (do universo ABONG), Movimentos Sociais, Entidades Ecumênicas, Fundações de Empresas e de Organizações autodenominadas do Movimento pela Responsabilidade Social da Empresas. Dos conteúdos diversos, alguns deles novos para nossas organizações, destacam-se alguns temas:

- Discutir Responsabilidade Social das Empresas (RSE) não é um processo que se deva conectar com a possibilidade de fundos empresariais para o financiamento das atividades sociais. Esses devem ser chamados de “investimento social empresarial”.

- Ao se separarem os dois termos, “investimento social” e “responsabilidade social”, abre-se um campo político no qual alguns agentes se consideram militantes por um “ideal de Responsabilidade Social das Empresas”.

- O “ideal” defendido pelos agentes políticos do movimento pró-RSE defende que a Responsabilidade Social é um critério ético capaz de avaliar todas as relações que envolvem uma Empresa, desde o sócio-ambiente de onde eventualmente adquire matéria prima, do sócio-ambiente em que se instala (a comunidade onde se insere), passando por toda a cadeia produtiva até o produto e seus meios de divulgação e público atingido. Mas ainda mais: a Responsabilidade Social deve incluir as iniciativas da empresa como setor da sociedade co-responsável pela democracia e pelo desenvolvimento. Os militantes dessa concepção defendem que, por ser “ideal” ela não é necessariamente atingível, mas pode ser implementável, em processos lentos e paulatinamente negociados no ambiente mais precioso às empresas: o mercado.

- Esta posição última é anunciada como “em disputa” no “movimento de RSE” por seus agentes. Ao menos duas posições interagem: uma de que não se deve considerar a RSE como valor a agregar às marcas das empresas, logo, um capital adicional em concorrências de mercado; outra de que a promoção de uma cultura de RSE pode promover no mercado certo “constrangimento quantitativo”, do tipo: “se a maior parte das empresas adere à RSE, o mercado passará a exigir esse valor agregado”.

- Finalmente, sobre a posição mais geral de que as empresas devem cumprir uma função social. Ficou claro que, ainda que conste na Constituição brasileira assertiva no sentido de que as empresas devam cumprir uma função social, o ente social empresa tem, no sistema capitalista, o fim de produzir resultados; em resumo, “empresas são para dar lucro”. Assim, que qualquer ação social e pública que as inclua não pode descurar do fato de que as empresas não abrirão mão do lucro, ou por outra, não irão além de sua missão: lucrar. Nesse último sentido os entes sociais empresas também devem dialogar com o Estado, tanto sendo regulador social como sendo agente promotor de eqüidade e desenvolvimento.

Postas essas poucas afirmações oriundas do Seminário podemos destacar aspectos éticos e desdobramentos de ação a serem considerados desde a perspectiva ecumênica.

Ética de negócios

Como o Seminário pôde confirmar, as empresas movem-se por uma ética de negócios constituída pela capacidade de acumular capital ao capital que as inaugurou. Se reduzirmos as empresas a seu mínimo mais abstrato teremos seu capital, por exemplo, conversível em moeda, cuja posse tem seus proprietários. A permanência de uma empresa - ou seja, em última instância, de um capital investido em uma atividade - depende exclusivamente de resultados. Caso sejam negativos, a empresa pode se converter em puro capital e migrar para outra atividade.

Essa possibilidade de fluxo na forma pura de capital informa uma ética, um comportamento de quem decide nas empresas em qualquer empreendimento. Por exemplo, se a lógica da atividade de uma empresa no campo social estiver informada por essa mesma ética, empreendimentos sociais devem dar resultados, e devem garantir a continuidade da permanência do capital investido. Caso não ocorram os resultados esperados a lógica decorrente da ética é de que o investidor pode e deve migrar para outro investimento mais eficiente.

Ética de solidariedade

Para falar de ética de solidariedade o melhor caminho é partir de uma definição, cujo olhar vem dos acúmulos de reflexão no campo ecumênico. Por definição os Movimentos Sociais (conjunto de Movimentos Populares, Ongs, Entidade Ecumênicas e Pastorais Sociais, conforme definido no Seminário) se compõem de entes cujo resultado último é a solidariedade. Movimentos Sociais são promotores de solidariedade social, tanto na forma de representação de interesses de grupos organizados como na forma de grupos de cidadãos, todos em defesa de Direitos Humanos (no sentido também integral usado no Seminário, que incluem Direitos Civis e Políticos e Econômicos, Sociais e Ambientais) para todas as pessoas.

Nesse sentido último, por definição, as organizações dos Movimentos Sociais existem como relações. Se buscarmos sua abstração última, encontraremos um rol de relações. Não têm um capital abstrato, por exemplo, conversível em moeda. Se transladarmos nossa linguagem para aquela capitalista e usarmos uma imagem comparativa poderemos afirmar que são entidades cujo capital são as suas relações.

Assim, aquelas organizações sociais que se pautam por uma ética de solidariedade estão imbricadas nos compromissos estabelecidos pelas relações que as constituem. Daí que, por exemplo, o comportamento dessas organizações diante de qualquer iniciativa ou empreendimento social seja avaliar tanto os resultados como os processos a partir das relações que contraiu/construiu. Não é possível para esse tipo de organizações simplesmente mudar de atividade porque mudaram de prioridade ou porque os resultados não foram os esperados. Relações foram contraídas/construídas segundo uma ética tal que a própria organização reproduziu-se ou modificou-se no conjunto das relações e compromissos assumidos. Quem muda de empreendimento e muda de relações é quem pode abstrair em última instância delas, as relações. E essa é uma ética de negócios, inviável de ser aplicada por organizações da ética de solidariedade.

Que pensar então sobre a relação Movimentos Sociais e Empresas?

Parece que o diálogo entre essas duas éticas é ou impossível ou um tanto distante de ser estabelecido. Por princípio, Lucro e Solidariedade não dialogam.

No entanto, o Seminário apresentou uma mediação em favor de que essa relação aconteça de modo viável em um ambiente democrático, ao apresentar o “Movimento da RSE” como um agente intermediário cuja “missão” é trabalhar pela função social (lato senso) das empresas.

Para os Movimentos Sociais coloca-se a possibilidade de dialogar com esse “Movimento da RSE”. Este último, sim, parece ser o protagonista indicado para o diálogo com as empresas. Mesmo sabendo de que não há uma posição unificada naquele “Movimento” o diálogo com os Movimentos Sociais traria conteúdos críticos e olhares sobre a realidade próprios de um campo de relações de solidariedade.

Sobre esse diálogo possível os campos conceituais e de critérios éticos de aproximação estão dados. Por parte dos Movimentos Sociais um conjunto de relações e um ideal comum de promoção dos Direitos Humanos para todas as pessoas. Por parte do “Movimento de Responsabilidade Social Empresarial” o próprio tema geral do ideal de responsabilidade social aplicado às empresas, mas que, para seus atores, pode ser pensado como responsabilidade social de qualquer ente social. No limite de possibilidade as interações avançariam quando se encontrassem Responsabilidade social com Direitos Humanos (sempre bom lembrar: Direitos Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Ambientais).

Por último, e não menos importante, ressaltamos que os diálogos sobre o tema proposto pelo Seminário, usando a linguagem de estratégias e empreendimentos, não são sem “custo” para quem se pauta por uma ética de solidariedade. Sempre e em qualquer promoção essas organizações se arriscam, por que estão em jogo as avaliações e opiniões oriundas de suas relações, aquelas que as constituem.

Nesse sentido, apenas para registro, discordamos de que o que ocorreu no Seminário foi “só um debate” e ainda não um diálogo. Porque as organizações de solidariedade presentes no Seminário estiveram ali com as suas relações, arriscando-se às críticas e incompreensões oriundas até mesmo de seus aliados, componentes de suas relações constituintes. Assim, consideramos que um bom passo foi dado e riscos foram assumidos coletivamente.

* Evento promovido pela Coordenadoria Ecumênica de Serviço/Cese, pelo Processo de Articulação e Diálogo entre as Agências Ecumênicas Européias e Parceiros Brasileiros/ PAD e pela Fundação AVINA, nos dias 26 e 27 de setembro, em Salvador, Bahia.