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“RELIGIÃO E VIOLÊNCIA”
Ano 6 - Nº 25
Agosto de 2011
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Monoteísmo e violência
Por: Antonio Carlos M. Magalhães

Uma das páginas importantes a respeito da discussão sobre o monoteísmo como “saída” da religião é a da relação entre monoteísmo e violência. Meu interesse é refletir sobre alguns aspectos desta relação, especialmente com a reflexão sobre o papel do símbolo. Parto do princípio de que há uma simbologia com forte potencial de violência no monoteísmo. Naturalmente, o leitor não deve entender esta reflexão como uma visão absoluta do autor, como se este restringisse o monoteísmo à violência. Minha questão é oriunda de outra perspectiva: na tradição e na simbologia do monoteísmo há elementos fortíssimos de violência, algo que deve ser estudado e refletido cuidadosamente por todos que têm um vínculo com a fé.
É preciso definir os conceitos, antes que seja empreendido o esforço de interpretação sobre alguns dos aspectos implícitos no tema proposto. Algo que deve ter se tornado objeto de consenso no estudo da religião e da reflexão teológica mais crítica é que a tradição judaico-cristã carrega consigo uma herança de violência em sua história. Até aí, nada muito diferente de outras religiões, não de todas. Uma leitura rápida e superficial da história ocidental revela o caráter violento de muitas das manifestações do judaísmo e do cristianismo. Não foi somente das páginas gloriosas do martírio que viveu esta tradição, mas também da morte aparentemente sem sentido, da humilhação imposta a outros, da execração de alteridades, da destruição. Violência é algo do qual entendemos bem na tradição judaico-cristã. Se isto pertence à história desta tradição, qual o sentido de falar em violência simbólica? Seria violência simbólica um produto desta violência histórico-social, aparentemente mais visível e concreta, inegável para quem estuda os caminhos da tradição judaico-cristã?
Falar de violência simbólica e da relação entre símbolo religioso e violência é tocar na primeira linguagem da religião: o símbolo. O símbolo convida para a reunião, para o cruzamento das partes rompidas, dos acordos desfeitos, o que o torna um aspecto fundamental da religião, segundo Croatto sua primeira grande linguagem. “O símbolo é a chave da linguagem inteira da experiência religiosa. Assim como a experiência da Realidade transcendente (o Mistério ou qualquer que seja o seu nome) é o núcleo do fato religioso, o símbolo é, na ordem da expressão, a linguagem originária e fundante da experiência religiosa, a primeira e a que alimenta todas as demais 1. É preciso, porém, incluir uma visão mais ampliada do símbolo, visto que este não é somente uma linguagem religiosa, mas, de certa forma, é a religião em seus aspectos primordiais. Em virtude de sua relação intrínseca com a dimensão do mistério e do sagrado, a religião vive em símbolos.  “A religião fornece nome ao inominável, uma representação ao irrepresentável, um lugar ao ilocalizável. Realiza e satisfaz, ao mesmo tempo, a experiência do Abismo e a incapacidade de aceitá-lo (...). Ela é, por excelência, a apresentação/ocultação do caos. Constitui uma formação de compromisso, que prepara ao mesmo tempo a impossibilidade para os humanos de fecharem-se no aqui-e-agora de sua existência real e sua impossibilidade, quase igual, em aceitar a experiência do Abismo 2. O símbolo na religião é algo que conhece as formas arquetípicas, é vivenciado nas diferentes mudanças culturais, é redimensionado nas biografias, pois ele é a mais alta expressão daquilo que é religião. O símbolo aponta para esta necessidade religiosa que não se conforma em reconhecer uma transcendência sem relação; ele teima justamente em superar a distância, em aproximar longitudes, ainda que respeitando-as. Ao fazer isto, a religião “(...) corresponde à recusa dos humanos em reconhecer a alteridade absoluta, o limite de toda explicação estabelecida, o avesso inacessível que se constitui em todos os lugares em que chegamos, a morte que habita em toda a vida, o não-sentido que margeia e penetra todo sentido.” 3
É importante acentuar que a questão do símbolo não se restringe aos limites da indicação, da informação, mas da participação. “O símbolo, energizado pela metáfora, comunica não simplesmente uma idéia do infinito, mas uma certa realização do infinito.” 4 O símbolo nos faz participar daquilo para o qual aponta. Eis aí algo de fundamental importância para a compreensão do poder que determinadas imagens têm na construção de sentido de mundo. Desta maneira, o símbolo não é algo que possa ser superado conceitualmente por uma teologia considerada padrão para práticas de um grupo ou de grupos em determinada tradição religiosa. Tampouco o símbolo pode ser descartado pelos inconvenientes que ele traga consigo ou pelas múltiplas associações que ele desperte. Ele se encontra na zona dos sentidos fundamentais, das imagens que oferecem as formas incontornáveis de uma cultura, das dimensões arquetípicas de uma civilização, daquilo que fornece as maneiras e os conteúdos mais relevantes na elaboração de uma visão de mundo, de divindade, de experiência religiosa. O símbolo dá constantemente o que pensar, é a teia na qual existimos. Interpretar o símbolo é, pois, trabalhar com oferta de sentido, maneiras de leitura e compreensão. Mas é sempre importante considerar que as formas específicas através das quais os sujeitos religiosos se apropriam dos símbolos e suas associações assumem feições próprias, constroem manifestações concretas a serem melhor estudadas em ensaios apropriados para este fim.
Discutir o tema da violência simbólica é algo que pode evocar várias associações e interpretações, por isto o primeiro passo foi delimitar o sentido de símbolo para em seguida matizar o tema da violência e sua relação com o símbolo. Coloco duas perspectivas ao me aproximar do conceito de violência simbólica e usá-lo neste ensaio. Em primeiro lugar, violência simbólica significa as expressões e os elementos da estrutura simbólica – especialmente as suas expressões em forma de narrativa fundante; mítica – que trazem no seu bojo sinais e, por conseguinte, potencial de violência social, política e cultural. Não uso violência simbólica somente como usurpação simbólica da alteridade religiosa, o que significaria um bom conceito e que estaria relacionado mais às formas históricas pelas quais as religiões (em especial as monoteístas) usurparam o universo simbólico do outro, mas antes este ensaio se concentra nos aspectos presentes na estrutura simbólica da tradição judaico-cristã que possibilitaram, alimentaram e sedimentaram as imagens violentas no imaginário e nas práticas das pessoas e comunidades. Este aspecto é de fundamental importância para o desenvolvimento da presente reflexão. Seria mais cômodo falar de violência simbólica enquanto usurpação dos símbolos de tradições religiosas consideradas concorrentes. O pressuposto é, porém, nesta reflexão, de outra natureza. Muito mais importante para a tematização da violência é estabelecer a relação de práticas violentas com a estrutura simbólica, de mostrar que a violência faz parte da estrutura simbólica da religião e não é somente algo periférico aos seus elementos constitutivos fundamentais.
Parto, portanto, do pressuposto de que a história de violência imposta aos pensamentos desviantes internos e às alteridades, que assumiu feições de extrema crueldade e que hoje ainda teima em fazer calar iniciativas mais ousadas pela real convivência fraterna entre as diversidades, é, em parte – e quero frisar em parte – diretamente relacionado à violência simbólica aqui entendida como elementos dentro de uma estrutura simbólica, especialmente as narrativas fundacionais de uma tradição, no caso a tradição judaico-cristã, que sedimenta, alimenta e insufla as práticas violentas. Parafraseando Debray: símbolos se transformam em forças sociais. Ou recorrendo à tese de Hannah Arendt sobre o nazismo: o nazismo não foi um acidente ou expressão bárbara da cultura alemã, mas um desdobramento “natural” da forma como a cultura foi construída também nas suas dimensões simbólicas. Colocando em nosso contexto latino-americano, a espoliação e expropriação dos indígenas por parte dos portugueses e espanhóis não foram um acidente, um equívoco, mas extensão da lógica dominante e da estrutura simbólica religiosa da época.
A partir desta definição mínima apresento aqui a minha hipótese central para esta reflexão: a tradição judaico-cristã vive, em grande parte, numa estrutura simbólica que tem na violência um de seus pilares.  Sem violência não há salvação no cristianismo, não há divindade, não há antropologia. A violência não é um acidente de percurso ou uma anormalidade surgida como corrupção de princípios bons e ideais nos primórdios, dissociado de imagens violentas. A estrutura simbólica convida à guerra, o símbolo da cruz está marcado pela morte, a lógica sacrificial é operante, o castigo eterno é violento. Este dado é importante porque a reflexão teológica ou outras leituras da religião devem pressupor primeiramente a compreensão do significado do símbolo na religião. Normalmente a linguagem teológica tem se concentrado nas formas doutrinárias de interpretação do símbolo, esquecendo que a doutrina é, dentre as linguagens da religião (símbolo, mito, rito e doutrina) a mais restrita, porque mais condicionada pelos interesses eclesiásticos e pelos campos de normatividade da tradição. Ao lidarmos com o símbolo, fazemo-lo, normalmente, infelizmente, a partir de certa assepsia doutrinária e a partir de parâmetros de normatividade bem definidos. Neste sentido o trabalho hermenêutico pode tornar-se um ato de estranhamento em relação aos aspectos mais profundos da religião, que residem justamente nas primeiras três linguagens da religião. De certa forma, foi mais fácil para a teologia construir seu discurso pressupondo parâmetros rígidos, em vez de lidar diretamente com o universo que é considerado mais diluído e, por conseguinte, equivocadamente mais abarcador, justamente o do símbolo. Tal prática da interpretação teológica se distanciou de uma leitura da religião dentro dos seus marcos referenciais maiores. O símbolo não é confuso, é polissêmico; não é unidirecionado, mas associativo; não evoca somente uma única imagem, mas diferentes ícones. Antes, porém, de qualquer função específica, o símbolo é constitutivo de sentido vital, mas o sentido vital pode exigir as leituras para as diferentes formas de morte que subjazem à estrutura simbólica da religião.  
A relação entre aspectos da tradição judaico-cristã e o fenômeno da violência é, muitas vezes, de um enorme fascínio. A destruição do mundo e o resgate de uma família, o bom e belo êxodo da libertação acompanhado da espoliação e invasão, a destruição da terra e dos céus para, enfim, a chegada do paraíso e a destruição dos que praticam coisas inaceitáveis pela moral cristã fazem parte deste fascínio. Tal fascínio deveria evitar a idéia de que chegamos a uma solução deste dilema se tivermos uma boa explicação de modelo de sacrifício como suplantador de todos os sacrifícios, assim como fazem René Girard e Franz Hinkelammert. É cômodo partir do pressuposto de que o sacrifício do cristianismo é um anti-sacrifício, é o fim dos sacrifícios, mas isto pode ser bastante relativizado a partir de uma linguagem doutrinária baseada no amor, que deixa de lado a complexidade da religião, da não linearidade da experiência religiosa e da estrutura simbólica. 
Fato é que nos movemos dentro de uma estrutura de símbolos e de configurações históricas bem concretas em que a violência é parte integrante da religião, e assim o é porque é parte integral da própria vida. Seja no universo mítico-simbólico, seja na construção da história concreta, as imagens de terror e tortura, as invasões e os sofrimentos, as marcas da violência passaram a ser elementos fundamentais e, em alguns casos fundacionais, da tradição judaico-cristã. Não seria muito proveitoso, do ponto de vista da construção do conhecimento sobre a religião, que, a priori, tivéssemos uma boa explicação de cunho antropológico ou exegético para explicar as várias manifestações da violência e de seu fascínio na tradição judaico-cristã e com isto achássemos uma aparente solução para o problema da violência nesta tradição a partir de um ponto que seria considerado uma suspensão conceitual da realidade e dos elementos indesejáveis da estrutura simbólica. O máximo que conseguiríamos seria uma explicação aceitável pelos pares. A saída que muitos encontram para o dilema é desdizer a violência através de exegeses pouco atentas à complexidade simbólica da religião, e nunca nos esqueçamos que a exegese funcionou como exercício interpretativo de um determinado programa teológico, basta comparar a diferença entre as exegeses construídas dentro do programa de uma teologia dialética protestante e aquelas elaboradas num programa da teologia da libertação. Os textos dizem o que têm que dizer; o que se espera deles no programa teológico hegemônico. Mas religião é outra coisa. O que importa à religião é a forma como as suas memórias são construídas e suas imagens representativas são elaboradas e transmitidas. Muitas de nossas memórias e imagens são marcadas por um fascínio pela violência, porque a violência é constitutiva de nossa estrutura simbólica.
O fascínio pela violência inclui uma estética masoquista do martírio, um Deus que nos salva matando o filho, uma cruz que todos nós devemos carregar, imagens de muitos inimigos da fé, do mundo que precisa ser odiado e da morte dos infiéis. Em muitas pinturas da Idade Média, por exemplo, encontramos afrescos representando o martírio de santos e santas, numa forma de representação tal que o que temos é, sem dúvida, uma estética da violência em códigos religiosos. O martírio é belo. É para olhar, contemplar e desejar.
Muitas outras representações nas narrativas atestam isto que estou dizendo: a divindade da tradição judaico-cristã assume feições ciumentas, vingativas, beligerantes. As grandes características das culturas plasmaram a tradição judaico-cristã, mas também receberam decisivas influências desta. Numa sociedade guerreira emerge a divindade autoritária e militar, numa cultura com forte pensamento sacrificial a divindade salva ao matar ou permitir a morte. Alguns dirão que isto está no campo das influências entre cultura e prática religiosa, mas há algo mais a ser pensado: isto constitui nossas estruturas simbólicas mais profundas e transforma isto em herança permanente da fé e da reflexão teológica.
A violência como elemento fundamental de símbolos religiosos aponta para dois aspectos na tradição judaico-cristã: 1) o ato de matar e ser morto se torna uma pedra-de-toque da existência e do imaginário. A violência aqui se torna estética e religiosamente desejável, mais até, objeto de veneração e fascínio. A relação com a idéia de salvação, sacrifício, etc, é intrínseca. Só somos salvos por aquilo que nos fascina; 2) A construção de um caráter exemplar, que deverá ser seguido por aqueles que abraçam esta estética da violência. O mito vira ética, o símbolo é decodificado em prática, a violência simbólica passa a ser padrão de comportamento.
O sacrifício de Cristo é um dos centros da memória cristã. É sabido que a teologia contemporânea, incluindo a Teologia da Libertação, tem encontrado formas não sacrificialistas para interpretar a morte de Cristo. O destaque maior é dado justamente ao aspecto da memória perigosa desta morte. Em outras palavras, a morte de Cristo é fruto de uma vida perigosa. A questão é que na estrutura simbólica, que tem na violência um elemento fundamental, a interpretação passa por outros códigos e o símbolo, por ser polissêmico, abre várias perspectivas de interpretação. Uma delas é a associação que a violência praticada por judeus a Jesus Cristo deveria receber uma vingança histórica, recurso usado não somente por Hitler, mas que esteve presente em algumas das boas interpretações de teólogos na história do cristianismo. Uma outra forma de interpretação do símbolo é a possibilidade de usar a crucificação como forma de evangelização. Segundo esta visão, a pessoa poderia, no momento de crucificação, descobrir o salvador crucificado, maior representação do amor de Deus no mundo.
É importante perceber esta ambigüidade presente no cristianismo: o símbolo em torno do sacrifício e que tem na violência um de seus pilares é maior do que aquilo que consideramos o centro do próprio cristianismo: as narrativas em torno de Jesus Cristo. Aliás, as imagens sacrificialistas e violentas pertencem aos aspectos estruturantes destas narrativas. A teologia normativa não oferece muitos subsídios para lidar com a complexidade desta estrutura simbólica complexa e dinâmica, pois ela se concentra em um ou outro aspecto desta tradição.
Acho importante destacar que não temos como sermos radicalmente marcionistas. Para mim foi Marcião um verdadeiro clássico da teologia, no sentido de fazer as perguntas mais relevantes, e mesmo que não concorde com todas as suas respostas, concordo plenamente com a sua pergunta: o que fazer com as imagens cruéis e des-graçadas de Deus? Como reunir as imagens de profundo afeto com aquelas de profunda intolerância? Todos nós procuramos soluções marcionistas do tipo: façamos uma seleção dos textos libertadores; fiquemos com o Novo Testamento; não abordemos os textos que falam da crueldade de Javé. Todas elas são soluções marcionitas.
Religião lida com as questões vitais. Uma religião que não lide com o tema da violência, incorporando-a às dimensões profundas da divindade, não teria como ser relevante para o cotidiano das pessoas num contexto violento, semita e posteriormente ocidental. Lembremo-nos: a tradição semita é a única das grandes tradições culturais e religiosas que dá ênfase a uma relação eu-Tu (transcendência). Uma face somente amorosa e piedosa desta divindade representaria uma profunda assimetria para com a realidade das pessoas. “De todas as tradições que estudei minuciosamente, a semita é a única na qual as regras do jogo exigem que a divindade seja considerada como absolutamente o outro”. 5
É, porém, uma alteridade que consegue captar e potencializar dimensões profundas da própria vida das pessoas que com ela se relacionam. Uma das origens para isto é que para os semitas era uma divindade patrona da tribo. A rigidez das leis sociais e religiosas é fruto desta forma de conceber a divindade.  Além disto, é importante que esta imagem da divindade patrona da tribo já é construída em processos militares e em lutas internas. Em outras palavras: as imagens violentas em torno da estrutura simbólica da tradição judaico-cristã residem em seu âmago, não é algo periférico ou algo que possa ser superado por uma das representações desta divindade, no caso a imagem de Jesus de Nazaré. Se fosse assim, poderíamos crer que a teologia normativa resolve o problema da ambigüidade e polissemia do símbolo. O que não é verdade. A teologia é somente um exercício hermenêutico na forma de interpretar e acompanhar as práticas em torno de estruturas simbólicas. Religião é algo mais amplo que a teologia, o símbolo da cruz algo mais complexo que o significado teológico da cruz de Cristo, a estrutura simbólica que inclui a violência da vida divina mais rica que o rosto amoroso de Deus. Tudo isto habita na vida religiosa, no cotidiano das pessoas. Violência e amor, ódio e paixão, sofrimento e bálsamo, condenação e perdão não são universos díspares e princípios antagônicos. Todos eles estão na estrutura simbólica da tradição judaico-cristã e todos eles estão contidos na própria vida humana.
Neste sentido, quão ingênua pode ser a ética imperativa: faça isto ou faça aquilo, cumpra a verdadeira ordem de Deus, obedeça à lei do amor, etc, pois coisas aparentemente antagônicas pertencem a uma mesma estrutura simbólica, elas não se enfrentam enquanto universos díspares, mas como irmãos da mesma casa. O Deus destruidor e vingativo está na mesma estrutura simbólica do Deus amoroso e amigo. Mais do que isto: ambos são o mesmo Deus. Assim, somos filhos e filhas de uma divindade na qual coabitam luz e trevas, somos filhos de um casamento misto. A divindade na qual cremos é aquela que resgatou o mundo do caos e que terá um prazer mórbido de destruir tudo antes de vir o paraíso. Não nos apressemos, pois, em separar um do outro, pois isto significaria uma atomização e destruição de nossas próprias identidades.
Haverá uma ética consistente tendo como base esta constatação da ambigüidade e aparente contradição? Se quisermos uma ética da mudança, não deveríamos começar por uma seleção rigorosa do que é ou não permitido nas imagens da divindade? Estaríamos aqui no campo da ética imperativa a partir de determinados postulados bem delimitados. Creio que esta tem sido e continuará sendo uma saída para este dilema. Creio, porém, que há outras alternativas também. Uma que eu reputo como possível é de estabelecermos um diálogo mais detalhado e criativo com a riqueza e a dinâmica esta estrutura simbólica. Lembremo-nos: aquilo que procuramos simplesmente negar ou reprimir virá com mais força nas ações e nos desejos. As dimensões violentas negadas e colocadas no quarto de despejo da religião tendem a ressurgir com força. Melhor é o diálogo com os diferentes aspectos desta violência simbólica presente nesta concepção de divindade judaico-cristã. No ocidente é assim: quanto mais nós entendemos dos aspectos da divindade, mais nós entendemos de nós mesmos. Quanto mais imergirmos nos diferentes aspectos que constroem estas simbologias marcadas pela violência, melhores condições teremos de uma re-interpretação mais autêntica do universo religioso no qual se vive e o qual se interpreta no contexto brasileiro e, creio, maiores condições teremos de superar eticamente o lamaçal da violência no qual estamos todos metidos.

Referências bibliográficas:

ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus. Quatro milênios de busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. São Paulo : Companhia das Letras,1994.

CAMPBELL, Joseph. Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo. Editora Landy. 2002.

CASTORIADIS, Cornelius. Os destinos do totalitarismo e outros escritos. Porto Alegre : L&PM, 1985.

CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo : Paulinas, 2001.

DEBRAY, Régis. Deus. Um itinerário. São Paulo : Companhia das Letras, 2004.

CROATTO, Severino, As linguagens da experiência religiosa, p. 81.

CASTORIADIS, Cornelius, Os destinos do totalitarismo e outros escritos, p. 113.

CASTORIADIS, Cornelius, Os destinos do totalitarismo e outros escritos, 113.

CAMPBELL, Joseph, Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa, p. 35.

CAMPBELL, Joseph, Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa, p. 93. DEBRAY, Régis. Deus. Um itinerário. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus. Quatro milênios de busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Antonio Carlos Melo Magalhães (Doutor em Teologia, Prof. da Universidade Estadual da Paraíba –PB)