ano 1    n° 3    maio/junho de 2001
 

A Rasa é um bairro de população majoritariamente negra, localizado na periferia da cidade de Búzios (município de Armação dos Búzios), recentemente emancipado de Cabo Frio. Não existem dados quantitativos sobre a população da Rasa, nem sobre a sua situação jurídica. O laudo apresentado pela Fundação Cultural Palmares apenas recolhe algumas das histórias contadas por um número restrito de informantes da localidade sobre a origem do bairro e de sua população. Conta-se que os atuais moradores da Rasa são descendentes de escravos que, trazidos de Angola para trabalhar na Fazenda Campos Novos, conseguiram fugir e se refugiar nas matas daquele litoral. Depois da abolição, eles teriam se somado aos ex-escravos da Fazenda de Campos Novos, que continuaram trabalhando para seus antigos senhores sob o regime de arrendamento. Cultivavam pequenas roças e trabalhavam nas grandes plantações para pagar a terra que ocupavam. Há pouco mais de vinte anos, a abertura de estradas, a intensa circulação de linhas de ônibus e a transformação de Búzios em um balneário turístico de fama internacional, trouxe inúmeras transformações à Rasa. A urbanização e a especulação imobiliária tornaram impossível a continuidade das pequenas lavouras no bairro. O turismo e a chegada de pessoas de outras cidades, atraídas pela oportunidade de empregos, transformaram a Rasa em um bairro urbanizado. Apesar disso, a experiência de uma unidade social e étnica ainda é possível em função principalmente da presença da Igreja Assembléia de Deus, fundada nos anos de 1950 e desde então sob a responsabilidade de uma mesma família de pastores negros.

A árvore e o mapa
Os dois senhores e duas senhoras que participaram da oficina, com uma média de 60 anos (Dona Elza, Uia, Seu Pedro e Seu Geraldo), deixaram claro que não existe, para eles, uma memória pronta e única da Rasa, que represente toda a "comunidade". Os mesmos acontecimentos foram contados como sendo vivenciados separadamente por cada uma das três famílias ali representadas. Apesar disso, ao longo do exercício e com o apoio da equipe do Projeto Territórios Negros, eles puderam construir um consenso em torno da seqüência de acontecimentos vividos por seus antepassados, que permite falar em uma história comum.
Assim, a árvore da memória da Rasa foi dividida em quatro partes que correspondem a quatro gerações. As raízes, os bisavós africanos daqueles moradores. O tronco, seus avós, já libertos, que moravam e trabalhavam na Fazenda Campos Novos, pagando arrendamento aos antigos senhores. Os galhos da árvore, seus pais, que continuaram pagando arrendamento até cerca de 1950, quando foram despejados por Antonio Paterno, conhecido como "Marquês". A partir dessa data é que eles transferiram-se para a Rasa, passando a pagar arrendamento para uma outra família de grandes proprietários, os Gonçalves, lembrados pela violência contra os negros e que dominou todo esse período, até muito recentemente.
Finalmente, as folhas, representando eles mesmos, foi a geração que, a partir de meados dos anos de 1970, começou a comprar lotes para morar. Merece destaque, nesse período, a chegada em grande número de pessoas vindas de outros municípios, que iam se estabelecendo nos terrenos desocupados dos loteamentos. A população negra do local nunca teria se apossado desses terrenos, como os que chegavam de fora, em função da proibição estabelecida pelo pastor do bairro. Segundo o pastor, os filhos de Deus nunca poderiam se apossar de algo que não fosse deles.
O reconhecimento oficial do grupo como comunidade remanescente de quilombos não foi relacionado entre os momentos marcantes na história das suas famílias. Pelo contrário, os participantes tinham mais dúvidas que certezas sobre o significado de tal reconhecimento e o Sr. Pedro, por exemplo, reclamava dos seus efeitos imediatos. Ele foi procurado em outubro de 2000 pelo jornal O Globo que trazia a informação de que as terras de sua casa teriam sido tituladas, como uma primeira etapa do processo de titulação de toda a "Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa". Apesar de não ter tido qualquer contato com os órgãos responsáveis pelo processo de titulação (Fundação Cultural Palmares ou ITERJ), a matéria publicada tem lhe causado problemas com os moradores vizinhos. Alguns deles, por não estarem incluídos entre os "remanescentes", ficaram temerosos de perder suas terras e passaram a ver o Sr. Pedro como um símbolo desse medo (cf. depoimento de Seu Pedro, Rasa).
Aparentemente, as únicas pessoas que têm informações sobre o reconhecimento do bairro da Rasa como terra de remanescentes de quilombo são: o pastor Luiz, da Assembléia de Deus, e o vereador Walmir, apontados como os representantes da Rasa ("são eles que lutam por nós"). mas, apesar de convidados, nenhum dos dois pôde estar presente na Oficina. O trabalho de construção da árvore foi dificultado porque as pessoas que estavam trabalhando na recuperação da memória do bairro pararam com seus esforços. Foram ameaçadas por pessoas contrárias à investigação sobre quem eram os antigos proprietários daquelas terras.
Quanto ao mapa, os participantes fizeram um esquema bastante simples e resumido do bairro, onde se destacam a praça, a igreja, a escola, a delegacia e a quadra esportiva. Baseados no mapa, localizaram como pontos positivos, a presença de um colégio com segundo grau, o transporte freqüente, a água encanada e a rede de luz elétrica. Sobre os pontos negativos do bairro, citaram a falta de saneamento básico, de hospital e de creche, o desemprego e a divisão territorial entre Cabo Frio e Búzios, que dificulta o acesso a certos serviços públicos. A Associação de Moradores é constituída apenas por "gente de fora".


 

“As mesmas coisas que a Dona Rosa passou nós passamos, nossos pais passaram também. Só que os nossos pais, quando veio o despejo das terras, eles saíram. E hoje nós estamos aqui porque nós queremos que viesse a reforma agrária, nós precisamos, nossos filhos, nossos netos não têm mais nada porque o povo de fora entraram e tomaram nosso lugar e nós ficamos morando só num lote. Então nossos bisavós chegaram em um navio negreiro e ali nós ficamos a vida inteira morando naquele lugar. E hoje não temos direito. Nós moramos dentro de um cubículo, num lote, o povo que chegava e invadia aquelas terras e hoje eles dizem ser dono dos lugares. E por isso nós estamos aqui para uma luta, para que o governo faça alguma coisa. Os escravos chegaram, os meus avós contam, que ali chegava o navio e aquele povo fugia. E quando acabou a escravidão, eles voltaram. E aí começou a crescer. Na Rasa só tem duas famílias. Todo mundo ali é parente. Os escuros são tudo parente.” UIA – RASA


“Foram lá me entrevistar porque eu era o mais velho do lugar. Meu pai era do tempo do cativeiro. Então eles colocaram na mente do povo que aquele povo de fora tinha que entregar aquilo tudo par a mim, que aquilo era meu. E o povo se alvoroçou contra mim.[...] não me deram título nenhum e saíram fora. Não me falaram mais nada. Não me falaram mais nada. Quando eu vim de lá para cá ontem, o pessoal ficou tudo grilado”. SEU PEDRO – RASA




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